“A Bolívia, como país rico, também está em disputa geopolítica a nível mundial. Somos muito ricos em minerais, em gás, em ouro, em terras raras”, afirmou Horácio Villegas Pardo, ex-embaixador da Bolívia no Brasil, em entrevista exclusiva ao ComunicaSul (confira abaixo), alertando que “interesses externos estão atuando para tomar de assalto a presidência em agosto próximo”. A partir de 2006, recordou Villegas, houve um “crescimento exponencial da economia que se explica principalmente pela nacionalização dos hidrocarbonetos, pela distribuição da riqueza e pelo crescimento do mercado interno”.

O ex-embaixador ressaltou que Evo Morales (2006-2019) e Luis Arce (2020-2025), ambos do Movimento Ao Socialismo (MAS), foram os presidentes responsáveis pela grande transformação rumo à industrialização, contribuíram para romper com as amarras do neoliberalismo e do imperialismo. Mas, infelizmente, as divisões no campo nacional e popular neste momento estão agudizando problemas e trazendo consequências “não somente políticas, mas principalmente econômicas”. A dimensão política, avalia, “seguramente aparecerá na sua real magnitude em agosto deste ano, nas eleições presidenciais”, podendo “facilitar o retorno da direita ao poder”.

Como analisas o processo de industrialização e nacionalização dentro do atual modelo político e econômico implementado pelo governo boliviano?

O atual processo de industrialização boliviano não pode ser compreendido sem um olhar a longo prazo: a chegada do Movimento Ao Socialismo (MAS) ao poder em 2006, que se constituiu em um marco histórico. É neste momento que se logra a retomada do controle estatal, nacional, dos hidrocarbonetos, principalmente do gás. Nisso se constitui o modelo econômico, a base do modelo estatal da Bolívia nos últimos 20 anos. Se em 2005 o nosso Produto Interno Bruto (PIB) foi de quatro bilhões de dólares, após aplicarmos o modelo, com as diferentes medidas, o país teve taxas de crescimento ao redor de 5% anuais, alcançando um PIB de 42 bilhões de dólares.

O crescimento exponencial da economia se explica principalmente pela nacionalização dos hidrocarbonetos, pela distribuição da riqueza e pelo crescimento do mercado interno

O crescimento exponencial da economia se explica principalmente pela nacionalização dos hidrocarbonetos, pela distribuição da riqueza e pelo crescimento do mercado interno, que se constituem as bases do modelo. Dentro disso, a base do processo de industrialização dos nossos hidrocarbonetos e das nossas matérias-primas. Isso se constitui como fase culminante do nosso modelo econômico. Com a industrialização, não vamos mais vender unicamente o gás como matéria-prima. O lítio é outro exemplo: se bem tenhamos as maiores reservas mundiais e ainda vendamos matérias-primas, estamos trabalhando para logo agregar valor.

De toda as formas, a recente inauguração da indústria Siderúrgica de Mutum, na fronteira com o Brasil, foi um sonho dos bolivianos por mais de 50 anos. Inaugurada há poucas semanas, a siderúrgica é resultado de um trabalho iniciado em 2010. Portanto, não se pode entender a industrialização sem a estrutura que leva até ela, a modificação na nossa economia, todas as mudanças profundas para compreender tudo o que ocorreu.

E como isso repercutiu no cotidiano dos bolivianos?

A qualidade de vida das pessoas tem melhorado notavelmente, pois se há um avanço tão notável na economia, isso se traduz em que as condições de vida da população – e dos trabalhadores como tal – progrida. No modelo de vida neoliberal a que a Bolívia era submetida até 2005, qualquer trabalhador, seja operário ou de serviços, tinha instabilidade no emprego e sobrevivia com um salário paupérrimo. Suas condições laborais eram completamente marcadas pela insegurança.

Com a chegada de MAS ao poder isso muda drasticamente e a taxa de inflação é reduzida à mínima expressão. Passamos a ter um salário real e um salário nominal crescentes, trabalhadores que passam a ter maior poder de compra, podendo adquirir mais produtos para a sua subsistência. A população boliviana passa a ser beneficiada com as mudanças estruturais, em comparação com a de outros países, onde os salários dos trabalhadores não conseguem satisfazer as necessidades básicas. As condições de vida melhoram notavelmente e há mais estabilidade.

Mais salários e mais empregos.

Exato. Começa a haver um círculo virtuoso do crescimento. Onde a economia está bem, as empresas e os empregos estão bem, e a população vive melhor. É um modelo que lamentavelmente a direita e as oligarquias nunca lograram construir, com níveis de pobreza de 70 a 75% e uma economia paupérrima. Essa era a herança neoliberal. Com o modelo introduzido pelo presidente Evo Morales (22 de janeiro de 2006 – 10 de novembro de 2019) isso muda drasticamente. É uma situação que lógico não caiu do céu, foi resultado de decisões políticas.

Acompanhei o golpe de Jeanine Áñez em 2019, a queima de entidades de camponeses em Santa Cruz pela direita, prisões e assassinatos de opositores em Cochabamba e La Paz. Atualmente, está ocorrendo uma divisão no campo das forças nacionais e do MAS. Qual é a sua avaliação?

Esta divisão do movimento que governou a Bolívia praticamente durante os últimos 18 anos, como qualquer partido político no mundo, contém diferenças e vozes discrepantes. Porém, lamentavelmente, o MAS não conseguiu resolver seus problemas internos. Ocorreram atitudes bastante desacertadas que levaram até esta divisão entre as linhas do presidente Arce e do ex-presidente Evo. É preciso entender que em 2019 existiu um golpe de Estado, um rompimento do governo eleito democraticamente e que foi realizado por forças do exterior e por forças internas da Bolívia.

A partir das eleições de 2020, quem escolhe o nome de Luis Arce para ser candidato, junto com as organizações sociais, é o presidente Evo Morales. Então não se consegue admitir como esta divisão se dá num momento em que a Bolívia necessita retomar um projeto que estava em andamento. Estas disputas internas por manter-se ou seguir no poder levam a consequências não somente políticas, mas principalmente econômicas. A dimensão política seguramente aparecerá na sua real magnitude em agosto deste ano, nas eleições presidenciais.

Lamentavelmente, as mesquinharias do poder fazem com que não se respeitem nem mesmo a história do partido nem de líderes natos das democracias latino-americanas. Isso pode fazer com que governos neoliberais que tanto dano fizeram a Bolívia retornem ao poder, sob o argumento principalmente econômico. Assim, sob condições conjunturais atuais, se nega tudo o que foi construído durante os últimos 20 anos, onde esta divisão se vê de forma palpável na população boliviana, que não as compartilha, das quais está cansada. Colocando a todos os do partido [na mesma crítica], não se consegue ver o que o MAS fez de bom ao país.

Esta divisão pode ter uma consequência fatal no sentido que se instaure novamente um governo antipopular, um governo antinacional. Porque o que tem caracterizado os governos de direita, a todos os governos neoliberais, é justamente não querer que a Bolívia progrida e se desenvolva. Nós tivemos uma história de 180 anos de amarras, onde a maioria das nossas populações e dos povos indígenas não se desenvolvia, não estava incluída no Estado como atores políticos. O que havia era uma casta blancoide, uma casta vinculada a interesses imperiais que sempre controlaram e dominaram o poder.

Obviamente os que para manter o poder necessitavam perpetuar as condições de subdesenvolvimento são esses mesmos que vieram alimentar a disputa pelo MAS. Com a divisão, essa direita tem grande chance de voltar ao poder. Repito: essa disputa era desnecessária, são pequenezes que faz com que não se respeite a história do movimento social e popular, nem de seus dirigentes.

Na sua avaliação, o que Evo e Arce deveriam fazer?

A título pessoal, considero que Evo Morales tem ainda muito apoio da população boliviana, que recorda da estrutura histórica do seu governo. As pessoas dizem que nunca se viveu tão bem como durante aqueles anos. Acredito que há esta lembrança e isso se reflete nas pesquisas: Evo tem entre 20 e 25% de apoio, enquanto Arce está sem sustentação, com cerca de 2 e 3%. É preciso respeitar a realidade, porque ela se impõe. Então, para continuar com o projeto nacional e popular, a liderança do presidente Evo é fundamental. Lamentavelmente, não se logrou conseguir nestes cinco anos canais para continuar o desenvolvimento e haja um corte muito drástico no que se vinha realizando. Creio que é preciso respeitar a realidade e não se fez a tarefa no momento correto.

Agora o presidente Arce não está permitindo que o órgão eleitoral possibilite a candidatura de Evo e há um 20-25% da população boliviana sem ter com quem votar. Nesta desordem eleitoral aparecem candidatos com discursos eleitorais que vão ganhando força, como o que aconteceu na Argentina ou em outras latitudes, mesclando política e evangelho…

Lamentavelmente, vejo uma situação bastante complexa quando não se permite a candidatura do ex-presidente Evo Morales. Com isso se abre uma porta muito grande para que radicalismos tomem força e consigam se constituir como governo. A consequência disso é um retrocesso. A Bolívia dispararia novamente nestes índices de subdesenvolvimento, nos quais nossa economia pouco ou nada avançaria, tendo uma grande quantidade de recursos naturais.

Porque a Bolívia, como país rico, também está em disputa geopolítica a nível mundial. Somos muito ricos em minerais, em gás, em ouro, em terras raras. É claro que há muitos interesses externos atuando em nosso país e estas divisões internas colaboram muito com este jogo.

E o papel do Brasil nisso tudo?

A participação do presidente Lula e de seu governo é muito importante na região. A nível sul-americano temos sempre a lembrança deste Lula unificador, com Kirchner na Argentina, Chávez na Venezuela, Correa no Equador, Evo Morales em Bolívia, Lugo em Paraguai e Mujica no Uruguai.

Lula teve uma participação transcendental, importantíssima, e acredito que a nossa América precisa de uma unidade muito mais ampla e os países pequenos muito mais do irmão maior, que necessita estar à altura da história e das circunstâncias.

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Last Update: 16/03/2025