Nos meses anteriores à invasão israelense, a cidade de Rafah, no extremo sul de Gaza, era uma tábua de salvação, um lugar no qual milhares de palestinos buscavam abrigo ou tentavam arrecadar dinheiro para cruzar a fronteira com o vizinho Egito. Agora, imagens de satélite e vídeos de rede social publicados por soldados israelenses posicionados ao redor da cidade mostram estradas alargadas para permitir a passagem de veículos blindados, cercadas por destruição total, incluídos prédios arrasados na cidade antes movimentada.
Vídeos de rede social e imagens de satélite mostram a destruição do posto de passagem de Rafah, a última rota restante para sair de Gaza, depois de forças israelenses tomarem o controle da área no início de maio. Logo depois, Israel disse ter conquistado o “controle operacional” de todo o corredor de Filadélfia, uma estreita faixa de terra em paralelo à fronteira com o Egito, onde a presença israelense é proibida pelo tratado de paz de 1979 entre as duas nações.
As forças israelenses também construíram uma nova estrada entre os postos de controle de Rafah e Kerem Shalom, conhecida como Passagem de Davi, e alargaram partes da estrada que acompanha o corredor de Filadélfia para facilitar o trajeto de veículos militares. Um vídeo de rede social postado por um soldado judeu próximo ao Mediterrâneo, numa área antes pontilhada por tendas, mostra uma torre de vigilância improvisada na sombra de outra usada até recentemente por soldados egípcios, um conjunto de escavadeiras militares e equipamentos de construção. As medidas parecem ter como objetivo apoiar a presença duradoura de tropas israelenses em Gaza, indicando que o fim dessa guerra que dura mais de nove meses, a mais longa da história de Israel, não está próximo.
“É quase uma guerra eterna”, afirmou Nadav Weiman, chefe da Breaking the Silence, organização de veteranos israelenses que criticam as políticas de Estado e dos militares.
Rafah, antes uma cidade com cerca de 200 mil habitantes, inchou quando mais de 1 milhão de deslocados buscaram abrigo ali, amontoando-se perto do único posto de passagem ao sul de Gaza, um farol para aqueles que conseguiam sair, até que as forças israelenses assumiram o controle e destruíram a passagem. Isso sufocou o suprimento de auxílio que fluía pelo sul de Gaza. Desde o início de maio, nenhum caminhão com mantimentos entrou em Rafah, enquanto dados da ONU mostram que menos de 2,5 mil caminhões entraram no enclave em três meses, uma fração do socorro necessário.
As mudanças em Rafah estão alinhadas com a construção militar israelense em outros locais de Gaza, entre elas a escavação de uma zona-tampão ao redor da fronteira com o território israelense e a construção do corredor Netzarim, que divide o território e isola a Cidade de Gaza dos centros populacionais ao sul. O jornal israelense Haaretz estima que Gaza agora perdeu cerca de 26% de seu território para os militares, em consequência dessas mudanças.
Quando questionadas se as tropas israelenses continuariam a ocupar o corredor de Filadélfia em longo prazo, as Forças de Defesa de Israel disseram não comentar “planos operacionais”. As atividades em Rafah perturbaram seus aliados no Cairo e em Washington, pois ultrapassaram as linhas vermelhas previamente estabelecidas pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que em maio prometeu recusar o fornecimento de armamento ofensivo se Israel “entrasse em Rafah”.
Um oficial egípcio em serviço que falou com a Sinai Foundation for Human Rights, grupo de monitoramento de direitos humanos, disse que foi o dia mais triste da sua vida quando foi instruído a retirar suas tropas do lado egípcio do corredor de Filadélfia. Os militares egípcios, acreditava ele, temiam novos confrontos semelhantes a uma troca de tiros entre as duas forças que ocorreu no fim de maio e matou dois soldados egípcios. “Fui informado que esse corredor é proibido para qualquer presença militar israelense”, disse, acrescentando que os principais líderes militares e políticos do Egito há muito se referiam a ele como uma “linha vermelha”.
A presença de tropas israelenses em Rafah, particularmente no corredor de Filadélfia, também põe em risco as frágeis negociações de paz, pois o Hamas exigiu a retirada completa das forças de Gaza. Israel continua a negociar, mas busca um acordo que permita manter uma presença no enclave mesmo com uma pausa temporária nos combates. “É possível que esta seja uma tática para negociações”, disse Ahmed Salem, líder da Fundação Sinai para os Direitos Humanos. “O Hamas entende o valor do corredor, e controlar a travessia de Rafah é um dos seus recursos financeiros mais importantes.”
Estradas alargadas e novos postos de controle dariam suporte a uma presença duradoura
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, fez uma visita altamente simbólica à passagem de Rafah nos últimos dias, inspecionando um posto de vigilância no corredor da Filadélfia, pouco antes de voar para Washington para discursar no Congresso e se encontrar com Biden. Ele descreveu um entendimento “de que a manutenção por nós do corredor de Filadélfia e da passagem de Rafah é vital para o futuro”. A pressão militar israelense, afirmou, é uma forma de adiantar um acordo para libertar cerca de 116 reféns ainda mantidos pelo Hamas e outros grupos militantes em Gaza. “Essa pressão dupla não está atrasando o acordo, está a avançá-lo.”
Netanyahu insistiu que Israel deve continuar a combater o Hamas, apesar dos apelos por cessar-fogo e um acordo de troca de reféns agora proposto pelos mais altos níveis das FDI. O primeiro-ministro disse recentemente: “Não pretendo encerrar a guerra antes que cada meta tenha sido alcançada”, e mencionou continuar a luta até o próximo ano.
David Mencer, porta-voz de Netanyahu, afirmou: “Com a fase intensiva desta guerra chegando ao fim, o primeiro-ministro fala sobre um conflito mais longo, a necessidade de entrar em Gaza para derrotar os terroristas quando eles levantarem suas cabeças, conforme necessário”. E acrescentou: “Ele não fala sobre uma guerra sem-fim. Todos os israelenses querem que a guerra acabe o mais rápido possível, não somos suicidas”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Exército de ocupação’