Em 24 de novembro de 2013, nove meses após assumir o papado, Francisco publicou Evangelii Gaudium (“A Alegria do Evangelho“), sua primeira exortação apostólica. O documento marcou, desde o início, a rota que ele pretendia imprimir à Santa Sé – e foi, desde então, a síntese mais clara de seu compromisso com os pobres e com a justiça social.

Francisco, nascido Jorge Mario Bergoglio, já havia sinalizado esse caminho ao adotar o nome do santo de Assis, símbolo da entrega radical aos despossuídos. Costumava responder às acusações de “comunismo” ressaltando que a opção pelos pobres está no centro do Evangelho — e nunca pareceu se incomodar com o rótulo. Em 2016, chegou a afirmar que cristãos e comunistas compartilham o mesmo ideal.

Evangelii Gaudium acabou se tornando a confirmação histórica de que essas “acusações” tinham algum fundamento. O texto vai além da perspectiva moralista ou assistencialista com que setores religiosos frequentemente abordam a pobreza. Francisco reconhece os avanços da ciência e da tecnologia, mas aponta com precisão o obstáculo à sua capacidade de gerar bem-estar: o modo de produção capitalista.

Sem rodeios, escreve que o mandamento “não matarás” também se aplica aos mecanismos econômicos que condenam multidões à exclusão e à morte. “Devemos dizer ‘não’ a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Essa economia mata.”

Diferente de Leão XIII, que na encíclica Rerum Novarum criticou os excessos do capitalismo mas preservou sua lógica, Francisco parece romper com a ideia de que bastaria corrigir distorções. Questiona diretamente a crença na autorregulação do mercado: “nunca confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico”. Denuncia a “nova idolatria do dinheiro” e a “globalização da indiferença”, que expressariam, para ele, uma “crise antropológica profunda” e a negação da primazia do ser humano.

Esse olhar radical ganhou desdobramentos na encíclica Laudato Si’ (2015), que amplia a crítica à lógica destrutiva do capital para o campo ambiental. Mas Francisco não foi o primeiro progressista a ocupar o trono de Pedro. João XXIII e Paulo VI, responsáveis pelo Concílio Vaticano II, também foram vozes dissonantes. O que distingue Bergoglio é o contexto: assumiu o papado em uma década de ascensão da extrema-direita global, sucedendo dois pontífices conservadores, um deles declaradamente anticomunista.

Ainda assim, conseguiu nomear a maioria dos cardeais que escolherão seu sucessor. Há chances reais de continuidade, ainda que o conclave sempre guarde espaço para surpresas. Caso se mantenha a linha, o novo Papa poderá reiterar o compromisso que Francisco firmou diante de movimentos populares em 2014: “digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

Caberá ao novo pontífice se posicionar diante de problemas que Francisco não sanou, mas não se furtou a enfrentar. Em sua última aparição pública, na véspera de sua morte, ele denunciou mais uma vez os crimes cometidos por Israel em Gaza. Seu legado é o de alguém que não apenas levou a sério a opção pelos pobres inscrita no Evangelho — mas a radicalizou.

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Last Update: 21/04/2025