Desde a volta de Donald Trump à Casa Branca, líderes europeus sabiam que não poderiam mais contar com os Estados Unidos da forma como haviam contado nos últimos 80 anos. O que não imaginavam é que Trump chegasse tão longe, a ponto de passar a tratar antigos aliados como novos inimigos. “A distância entre as duas margens do Atlântico está aumentando”, disse a CartaCapital Cyrille Bret, especialista em Rússia e Leste Europeu do Instituto Jacques Delors, em Paris. Para ele, o choque de valores entre a Europa e o atual governo norte-americano é tão grande que “a própria coesão do Ocidente está em jogo”.

O giro dos EUA na Europa tem a Ucrânia como pivô: em três anos de guerra, o Congresso norte-americano aprovou cinco pacotes de apoio militar aos ucranianos, no valor total de 175 bilhões de dólares. Os europeus, que deram 50 bilhões no mesmo período, querem continuar a manter o front, mas Trump decidiu ter chegado a hora de parar de gastar e começar a lucrar.

Um documento secreto obtido pelo jornal britânico The Telegraph publicado na terça-feira 17 de fevereiro mostra que ­Washington quer impor à Ucrânia um acordo por meio do qual obteria concessões de exploração de minerais estratégicos, petróleo, gás e infraestrutura portuária num valor estimado em 500 bilhões de dólares, fardo mais pesado para o PIB ucraniano de hoje do que aquele imposto aos alemães pelo Tratado de Versalhes, no fim da Primeira Guerra Mundial. Se a proposta prosperar, o desfecho da guerra será bom para os EUA e a Rússia, enquanto a Ucrânia ficará mutilada e endividada, tendo à sua retaguarda uma Europa alijada do festim.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização do Tratado do Atlântico Norte funcionou como uma apólice de seguro abrangente e sem data de validade, graças à cláusula de autodefesa mútua, segundo a qual um ataque a um dos integrantes deve ser respondido pelos demais. Era também um seguro barato para os europeus, pois até 2014 só três dos 32 integrantes da Otan – norte-americanos, gregos e britânicos – investiam o correspondente a 2% do próprio Produto Interno Bruto em defesa, como combinado.

Ainda na campanha eleitoral de 2016, Trump tinha avisado que, se eleito, mudaria essa equação financeira na Otan. Em 2024, o número de países que cumprem a meta orçamentária da aliança subiu para 23, mas a mudança não foi suficiente para pacificar a questão. A Otan, considera Bret, tornou-se uma aliança que traz “menos confiança e mais desafios para os europeus”, uma vez que eles “têm de duplicar o financiamento de sua própria apólice de seguro de vida, pois o orçamento de Trump 2.0 não vai mais cobri-la”. Para o pesquisador, “os vínculos transatlânticos deixaram de ser um ‘relacionamento especial’ e passaram a ser um relacionamento do tipo ­‘fornecedor–cliente’”, focado mais em acertos pontuais do que numa aliança incondicional.

As divergências vão, no entanto, além da questão do orçamento de defesa e dos arranjos de um possível pós-guerra na Ucrânia. No campo político, integrantes do governo Trump, dentre os quais Elon Musk é a figura mais influente, estridente e agressiva, fazem oposição ativa contra alguns dos atuais líderes de países como França, Alemanha e Reino Unido, enquanto apoiam e promovem partidos de extrema-direita, caso da AfD, o Alternativa para a Alemanha.

O vice-presidente dos EUA, JD ­Vance, disse na Conferência de Segurança de Munique, em 13 de fevereiro, que “em Washington, há um novo xerife na cidade”. Trump é apresentado aos antigos aliados europeus, portanto, como uma autoridade policial e coercitiva, não cooperativa e aliada.

A coesão do Ocidente está em jogo

Diante de uma plateia atônita formada por políticos e comandantes militares cheios de medalhas no peito, Vance deixou claro quem é o inimigo desse novo xerife: “A ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia, não é a China, não é nenhum outro agente externo. O que mais me preocupa é a ameaça que vem de dentro”. O vice de Trump referia-se às leis europeias de proteção de dados, que limitam o poder das big techs no Velho Continente. Ele criticava ainda as medidas judiciais tomadas por países europeus contra a interferência externa em suas eleições. A declaração tinha como norte a proteção irrestrita da liberdade­ de expressão, o que coloca a nova administração dos EUA numa posição crítica não apenas em relação ao padrão europeu de regulação, mas ao brasileiro também.

Além das questões de defesa e de liberdade de expressão, Trump diverge dos rumos da transição energética, com a qual os europeus buscam substituir os combustíveis fósseis por outras fontes de energia. A Casa Branca retirou-se do Acordo de Paris e anunciou o aumento nos investimentos em petróleo, a despeito da aceleração das mudanças climáticas.

Geograficamente, pode ser que a Europa tenha deixado de ser o território em disputa que foi durante as duas guerras mundiais, à medida que o novo front de tensão global se desloca para o Sudeste Asiático e para a região do Pacífico, onde o crescimento da China desafia a hegemonia norte-americana. No campo político, entretanto, a União Europeia transformou-se em um espaço de oposição a valores que Trump, Musk, Vance e o novo secretário de Estado, Marco Rubio, defendem. Eles “querem simplesmente abolir a ordem internacional que seus antecessores estabeleceram em 1945. Essa ordem é baseada em três pilares: liberalismo econômico, democracia e Estado de Direito, que eles querem substituir por protecionismo, interferência autoritária e abolição de todas as normas que possam impedir a liberdade do poder americano”, escreveu Nicole Gnesotto em artigo publicado no boletim do Instituto Jacques Delors.

Esse desencontro com os EUA pega a Europa em seu momento mais vulnerável em 70 anos de história, com dificuldade econômica, fragilidade energética, ­ameaça militar, envelhecimento populacional e cisão interna pela extrema-direita.

Uma das prováveis consequências, diz Gnesotto, é os países europeus, individualmente, se submeterem aos EUA, abrindo mão de compromissos ambientais, do desenvolvimento de uma indústria continental de defesa e da proteção de dados, o que pode levar a uma desagregação ainda maior da União Europeia. “Se as democracias europeias continuarem minimizando esse desafio, provavelmente sofrerão muito nos próximos quatro anos”, adverte Bret. •

Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fogo amigo’

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Last Update: 20/02/2025