Florestan Fernandes e os posseiros (2)
por Helena Costa
Entre os vários trabalhos que tratam do expurgo de 1964 encontrei até uma tese sobre a história da Unesp que, no capítulo dedicado à unidade de Rio Preto, passa por alto e nem sequer menciona a brutal repressão de que foi alvo, marcando sua trajetória até hoje! Belo serviço prestado à História… Mas há outros trabalhos, e bons.
Um deles é resultado de um feito coletivo monumental. Organizado por Zuleika Aum Attab, estudante e professora da casa, intitula-se Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto: Uma história de conquistas e divergências (2016), Além de reconstituir a crônica da intervenção desencadeada na escola em 1964, traz numerosos depoimentos e testemunhos dos atingidos. Uma comissão se encarregou de fazer cerca de 60 entrevistas.
Dessas leituras ressaltou a figura de Wilson Cantoni, formado em Ciências Sociais pela FFCL-USP, a Maria Antonia, sociólogo e professor da casa desde a fundação em 1957. Cassado e caçado, exilou-se no Chile. Faria distinta carreira internacional, sendo docente da FLACSO até a queda de Allende, atuando na Organização Internacional do Trabalho, na Costa Rica e nos Estados Unidos. E voltaria para morrer precocemente de câncer em Rio Preto, berço de sua esposa Marli, em 1977.
Pois foi Cantoni quem fez os contatos com os posseiros de Santa Fé do Sul e de Porto Epitácio, até trazendo a Rio Preto cerca de 40 deles e hospedando-os nas dependências da Faculdade. E isso após um desfile pela cidade, capitaneado por Jofre Correa: pode-se imaginar o escarcéu dos nativos, que alucinaram fantasiando uma revolução às suas portas. Cantoni era igualmente membro ativo da Campanha da Escola Pública, em plena expsnsão pelo país todo.
Foi assim que, quando Florestan Fernandes prestou-se a fazer uma conferência em que alertava para a ameaça de privatização contida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, os posseiros hospedados no prédio da Faculdade compareceram, tal como me lembrava de ter visto na foto.
O movimento das Ligas Camponesas crescia em âmbito nacional. Elas eram criadas por todo o território e a liderança de Francisco Julião se impunha. Numerosas em São Paulo, ss mais conhecidas e aguerridas eram as de Pernambuco e Paraíba. Reivindicavam a reforma agrária (uma das “reformas de base” do governo Jango) e a distribuição das terras do latifúndio improdutivo. O Brasil inteiro acompanhou as reportagens que Antonio Callado fez para o Correio da Manhã, e que, reunidas em livro, podem ser lidas até hoje. Muito depois surgiria Cabra marcado para morrer, documentário de Eduardo Coutinho que registra o assassinato de um dos líderes e o desmantelamento de tudo. Ambos – reportagens e filme – são documentos preciosos sobre o período.
Como Cantoni era muito querido em sua escola de origem na USP, foi um dos responsáveis pela participação da Faculdade de Rio Preto na Campanha da Escola Pública e pela presença de seu ex-professor Florestan (a quem chamava familiarmente de ”Efe-Efe”, mas só pelas costas). E também se encarregou de grande número de contratações, como atestam, entre outros, em entrevistas e depoimentos, Maurício Tragtenberg e Michel Löwy, a quem recrutou, nas palavras deste último, “para seu assistente”. Em homenagem ao professor mais influente que a casa já teve, após seu falecimento, e assim que possível dada a ditadura, o Centro Acadêmico Wilson Cantoni foi batizado com seu nome. Do Centro consta o “Núcleo de Ação pela Reforma Agrária”, que neste ano de 2024 está realizando uma Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária. Como se vê, mantem acesa a chama de seu heroi epônimo, hoje nome de rua em Rio Preto e em São Paulo,
João Pedro Stédile interessou-se pelo caso e providenciou um contato com o historiador Clif A. Welch, que me enviou seu livro com a biografia de Jofre Correa, dirigente do movimento dos posseiros, e mais a indicação de um vídeo de 30 minutos no YouTube.
O Diário da Região, de Rio Preto, tem publicado muitas matérias, artigos e reportagens sobre a saga da Faculdade de Filosofia, que traumatizou a história da cidade, e do país, Só falta achar a foto.
Helena Costa é Professora Emérita da FFLCH-USP