Repercutiu na imprensa nacional a notícia protagonizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, que processou um servidor da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). A ação, por ofensas feitas em um grupo de WhatsApp, tramita no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), solicitando indenização de R$30 mil.
Quais as ofensas?
As ofensas teriam ocorrido no ano de 2023, quando Dino era Ministro da Justiça, no primeiro ano do governo Lula. Num ambiente de polarização que perdurou após a eleição de 2022, eram comuns discussões de baixo nível.
Nesse cenário, o servidor da Alerj realizou postagens em um grupo de assuntos condominiais chamado “Proprietários do Líder”, afirmando que Dino “se associa ao crime organizado”. No mesmo grupo, ainda o chamou de “petralha” e “vagabundo”.
Trata-se de algo pouco civilizado, uma expressão de atraso, que não deveria ser considerado aceitável por uma pessoa pública. No entanto, uma autoridade pública teria, por sua função social, a obrigação de receber críticas e responder a elas politicamente quando necessário, esclarecendo e educando — principalmente alguém que se identifica como de esquerda.
Primeiro round: esfera criminal
Entretanto, esse exemplo de civilidade não foi o que ocorreu no caso em questão. Em vez de educação, optou-se pela repressão. Denunciado pelo Ministério Público, o servidor foi acionado criminalmente.
Foi então celebrado um acordo, com o servidor aceitando pagar multa no valor de um salário mínimo para encerrar o procedimento na esfera criminal. Já é questionável que a situação tenha evoluído a esse ponto por uma crítica, mesmo que ofensiva, a uma figura pública.
Ação civil
Encerrado o procedimento criminal, a representação de Dino moveu nova ação contra o servidor — desta vez, na esfera cível. Agora, solicita-se uma indenização de R$30 mil, por supostos danos morais causados pelas acusações sem provas e pelo uso de linguagem depreciativa.
Mesmo que se ignore o peso irrisório que acusações sem provas e palavras ofensivas, vindas de um servidor da Alerj, possam ter contra um Ministro da Justiça, e se aceite que houve algum dano (algo questionável), cabe perguntar como tais danos poderiam ser efetivamente aferidos.
Para tanto, os advogados do ministro sustentam que o réu utilizou a visibilidade do grupo para causar danos morais. Nessa tese, é difícil dizer o que é mais absurdo: a suposta enorme influência de um réu desconhecido ou o amplo alcance de um grupo de condomínio ser capaz de afetar a imagem de um ministro. Seria necessário imaginar que a moral do próprio ministro fosse extremamente frágil para sustentar tal alegação.
ADPF 338
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 338 trata justamente da constitucionalidade do artigo 140 do Código Penal, que prevê aumento de um terço da pena para crimes contra a honra (difamação, calúnia e injúria) quando as vítimas forem servidores públicos no exercício de suas funções.
Esse ponto é polêmico, pois pode ferir a liberdade de expressão e de crítica dirigida a agentes públicos. Tanto que defensores da liberdade de imprensa — entre eles a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) — denunciam que a norma pode ser usada para intimidar jornalistas e outros críticos do governo ou de servidores públicos.
Somente no início deste ano, a matéria foi pautada 11 vezes no STF. Até o momento, prevalece o entendimento de manter a causa de aumento apenas no crime de calúnia. Contudo, uma das sessões serviu como palco para a exposição da postura de Flávio Dino.
Nessa ocasião, o ministro André Mendonça afirmou: “ainda assim, ‘ladrão’ é uma opinião sobre a pessoa, não é um fato específico”. Ao que Dino retrucou: “ministro André, para mim, é uma ofensa grave. Eu não admito que ninguém me chame de ladrão, viu?”, disse.
Dino argumentou ainda que “essa tese da moral flexível que inventaram é a tese que degrada o serviço público, desmoraliza o Estado”. E continuou: “quero só informar Vossa Excelência que, por favor, consignemos todos: eu não admito. Na minha ótica, é uma ofensa gravíssima, não é crítica.”
A audiência seguiu nesse tom, com Dino impondo agressivamente seu entendimento de que o Estado brasileiro seria uma espécie de entidade infalível e, portanto, incriticável. É nítida sua preocupação em defender o Estado burguês, revelando desprezo pelos direitos democráticos. Assistimos a um retrocesso de séculos: de um Estado de Direito democrático a um Estado de contornos absolutistas e teocráticos.
No dia 7 deste mês, o julgamento foi suspenso:
Decisão: Após o voto do Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente e Relator), que julgava parcialmente procedente o pedido desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, para declarar a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto do inciso II do art. 141 do Código Penal, excluindo-se de sua aplicação os crimes de difamação e injúria, permanecendo válida tão somente no âmbito da calúnia, propondo a fixação da seguinte tese: “A causa de aumento de pena do inciso II do art. 141 do Código Penal aplica-se exclusivamente ao crime de calúnia”, no que foi acompanhado pelo Ministro André Mendonça; e do voto do Ministro Flávio Dino, que julgava improcedente a arguição, no que foi acompanhado pelos Ministros Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes, o julgamento foi suspenso. Ausente, justificadamente, o Ministro Nunes Marques. Plenário, 7.5.2025.
Sem oposição
Em determinado momento da sessão, um dos ministros indagou: “se o cidadão não puder chamar um político de ladrão?” A pergunta expôs o absurdo da matéria, que parece servir apenas para justificar o uso do aparato estatal contra seus opositores.
É um caso escandaloso: um cidadão, por se manifestar em um grupo de WhatsApp, em ambiente privado, pode ser condenado a pagar R$ 30 mil a um ministro. Tal medida serve apenas para esmagar economicamente quem ousa criticar.