Educação não é gasto, é investimento.” Cunhada pelos movimentos sociais que atuam em defesa de um ensino público de qualidade, a clássica palavra de ordem ecoa no vazio em um país onde a austeridade fiscal tornou-se dogma e enxerga esse setor como vítima preferencial. Um levantamento divulgado na terça-feira 9 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Inesc, aponta que as restrições orçamentárias impostas pelo teto de gastos no governo Temer, aprofundadas no governo Bolsonaro e, embora menos draconianas, mantidas no novo arcabouço fiscal de Lula foram diretamente responsáveis pelo fracasso do Brasil no cumprimento das metas decenais do Plano Nacional de Educação (PNE).

A análise do Inesc sobre o ensino público compreende o período de 2019 a 2023 em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal. “Salvo raras exceções, os recursos financeiros voltados à educação básica (ensinos infantil, fundamental e médio) permanecem estagnados em um patamar inferior ao ideal nesse período, aumentando apenas nos anos em que as regras fiscais sofreram algum tipo de flexibilização”, diz o documento. O estudo revela que, além dos óbvios efeitos nefastos sobre os investimentos em salários de professores e funcionários, compras de materiais e equipamentos e modernização da infraestrutura das escolas, o congelamento das verbas da educação é também cruel com os estudantes brasileiros, ao aprofundar problemas como a exclusão de pretos e indígenas da sala de aula, o fechamento de escolas nas regiões Norte e Nordeste e o aumento da distorção entre a série cursada e a idade do aluno.

Assessora política do Inesc e responsável pelo estudo, Cleo Manhas afirma que o fracasso no PNE deixou a lição de que, sem um financiamento maior, a educação brasileira pode entrar em colapso: “Muitas metas não foram alcançadas e em algumas até tivemos retrocesso. Com relação ao financiamento, começamos em 5,1% do PIB e terminamos com 5,1% do PIB, ou seja, não foi acrescido nada. Houve até mesmo momentos de queda desse financiamento”. Para que o novo PNE seja cumprido dentro do prazo, acrescenta Manhas, é preciso mais financiamento para a educação: “Mais recursos, e não menos. Para isso, é preciso tirar a educação, assim como a saúde, do alcance do novo arcabouço fiscal”.

De acordo com o estudo, entre 2019 e 2021 apenas sete estados gastaram mais do que a média nacional, de aproximadamente 5 mil reais anuais por aluno das redes públicas estadual e municipal. Já em 2022 houve um salto, atribuído pelo Inesc ao liberou-geral que antecedeu as eleições, com 14 estados acima da média, seguido de um novo aumento nos gastos em 2023, pela ausência do teto: “Mesmo que 2023 tenha sido o melhor período de dotação orçamentária, por não ter sofrido o impacto do teto, os gastos com educação foram prejudicados com o novo arcabouço fiscal e, mais uma vez, faltaram recursos para o Brasil garantir um ensino de qualidade na rede pública”, diz o documento.

Manhas aponta que a flexibilização das regras contribuiu de forma imediata para o aumento dos investimentos na educação: “Nós fizemos a comparação de cinco anos, quatro anos com a regra do teto de gastos e 2023, que é o ano em que não teve nenhuma incidência de uma regra tão leonina, pois não havia o teto de gastos e ainda não tinha sido aprovado um novo arcabouço fiscal”. A brecha permitiu a alocação de mais recursos para a educação no ano passado: “Ainda insuficiente, porém mais que no quadriênio anterior”, afirma a assessora política do Inesc.

O investimento está estagnado em 5,1% do PIB. “Não foi acrescido nada”, lamenta assessora política do instituto

Para Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, o atual governo, apesar de ter uma visão sobre a educação claramente mais progressista que seus antecessores, não conseguiu ainda reverter a estagnação do setor. Nesse sentido, Araújo não vê diferenças significativas entre o teto de gastos e o novo arcabouço fiscal: “A atual política não difere, pois mantém limites para a aplicação de recursos financeiros na educação pública. Garantir o direito à educação para todas as pessoas exige mais recursos financeiros. Temos um total de 47 milhões de matrículas na educação básica. No entanto, temos mais de 80 milhões de ­pessoas que não têm acesso à educação escolar e não concluíram a educação básica. Os números mostram o tamanho do desafio e a necessidade de mais investimentos”.

O educador Daniel Cara avalia que, “diante de um país com tantas desigualdades e déficits educacionais, o teto de gastos é a tragédia temerista e o arcabouço fiscal é a tragédia lulista”. Cara diz apoiar o atual governo, mas avalia que a equipe econômica erra: “Não tem projeto, apenas se dedica a administrar a crise com o mercado, que busca impor seus desígnios. Para o arcabouço fiscal sobreviver, ele exige restringir os recursos vinculados. Como o teto dos gastos públicos operava, na prática, contra as maiores vinculações, que são saúde e educação, o arcabouço fiscal tem o mesmo alvo. Alvo fácil para o mercado: atacar o povo”.

Para Araújo, uma das saídas para o governo é baixar a taxa de juros aplicada hoje pelo Banco Central, opção que, dado o divórcio do governo com o presidente do BC, Roberto Campos Neto, não é imediata: “Ao reduzir o pagamento dos juros e amortizações das dívidas, o governo poderá aplicar esses recursos para investir em políticas públicas que atendam à demanda da população”. Outra saí­da apontada pelo presidente da CNTE é restabelecer de forma integral os 75% do fundo social do pré-sal, para que sejam efetivamente aplicados em educação: “E também colocar de fato o PNE no Plano Plurianual do governo federal, bem como incluir os planos de educação na Lei de Diretrizes Orçamentárias e nas Leis Orçamentárias Anuais”.

Cleo Manhas pede atenção aos efeitos do novo arcabouço fiscal sobre o financiamento da educação em 2024 e nos próximos anos: “Estamos vendo que já estão discutindo flexibilizar os mínimos na Constituição. Isso a gente não pode permitir que aconteça”. •

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Garrote fiscal’

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Última Atualização: 11/07/2024