Financeirização Necessária e Insuficiente

por Fernando Nogueira da Costa

Como especialista em Finanças, incomoda-me a crítica dos meus companheiros de esquerda ao enriquecimento por meio de ativos financeiros em suposta defesa do obtido apenas com salários. Até a maturidade, a renda mensal do trabalho costuma ser muito superior ao rendimentos mensais dos juros compostos.

Na fase do envelhecimento, se o trabalhador investiu regularmente desde o início de sua carreira profissional, colhe os resultados dos juros sobre juros. Provavelmente, seu ganho financeiro será superior ao ganho com aposentadoria.

A crítica da esquerda à “financeirização” está enraizada em princípios moralistas. Deriva de uma visão religiosa da relação de produção e distribuição de riqueza.

É possível entender essa crítica, porém, merece receber, por sua vez,  uma avaliação crítica se não ficou anacrônica diante a realidade contemporânea dos trabalhadores em busca de enriquecimento financeiro para arcar com a aposentadoria. Necessitam de acumulação de reservas financeiras para sua fase inativa com longo envelhecimento e necessidades de cuidados com a saúde.

A esquerda, historicamente, valoriza a remuneração baseada no trabalho, visto como a única atividade produtiva e capaz de gerar valor real para a sociedade. O salário é percebido como uma compensação direta pela força de trabalho, esforço e criatividade empregados no processo produtivo.

Abomina os rendimentos gerados por ativos financeiros como juros, dividendos, ou ganhos de capital por meio de especulação, quando não critica os aluguéis de ativos imobiliários. São vistos como desvinculados da produção direta de bens e serviços.

Esse tipo de renda é percebido como uma forma de acumulação não dependente do trabalho produtivo, isto é, dos trabalhadores, mas sim da posse de capital. Ora, os trabalhadores com Educação Financeira planejam uma “sobra” da renda do trabalho para essa acumulação de reservas financeiras ao longo da vida! Isso dá trabalho e exige esforço contínuo!

Mas a esquerda mais dogmática se tornou anacrônica por achar “o capitalismo ainda é aquele” do século XIX. Em uma cobrança irrealista, demanda o sistema financeiro não favorecer quem já possui capital, reforçando a dinâmica de concentração de riqueza. Houve a transformação da riqueza material, inclusive imobiliária, em riqueza escritural com juros compostos, aluguéis ou ganhos de capital, garantidos por contratos, inclusive por meio de investidores institucionais.

A esquerda critica esse mecanismo porque ele agrava desigualdades, consolidando o poder econômico e político em um pequeno grupo. Deveria perceber a desigualdade no sistema capitalista ser insuperável, embora a pobreza seja superável. A experiência do dito “socialismo realmente existente” fracassou por adotar uma economia de comando central, totalitária, burocrática e ineficiente.

Salários, por definição, tendem a ser mais distribuídos e acessíveis à maior parcela da população, sendo menos concentradores de riqueza. Mas não acompanham todos os ciclos de vida dos trabalhadores! Na fase inativa, viverão com as baixíssimas pensões da Previdência Social?!

Na perspectiva marxista, a renda financeira é interpretada como uma forma de exploração. A obtenção de lucros financeiros basear-se-ia em relações de propriedade capazes de incentivar o capital extrair mais valor do trabalho alheio,  indiretamente, em vez de contribuir diretamente para o processo produtivo. Já os salários são vistos como a forma pela qual o trabalhador participa, mesmo sendo de forma desigual, do valor criado pelo seu próprio esforço.

Na perspectiva pós-marxista, a demanda por alavancagem financeira para aumentar a escala de produção, inclusive de serviços intangíveis, gera mais empregos ou ocupações e renda. A gestão do dinheiro pelos trabalhadores, feita no sistema financeiro, é geradora de um funding – fonte de financiamento – indispensável para esse dinamismo econômico-financeiro.

Portanto, os trabalhadores são participantes ativos (clientes) das três funções principais do sistema financeiro: pagamentos, gestão de dinheiro e financiamento. É uma ficção um capitalismo sem sistema financeiro!

A especulação financeira é criticada porque, de maneira cíclica, infla bolhas de ativos e gera instabilidade (boom e crash) em crises financeiras. Evidentemente, afetam o emprego dos trabalhadores e a economia produtiva.

Mas é a maneira de correção periódica dos excessos de compras de ativos existentes diante a emissão primária, a fabricação ou a construção de ativos novos. Quando os valores de mercado dos primeiros disparam diante os valores intrínsecos ou fundamentados, a correção em uma economia de mercado globalizada é por meio da explosão da bolha e desvalorização daqueles até ficarem abaixo destes.

Haverá, então, uma fase de “queima do capital excedente”, isto é, fusões e aquisições com concentração no mercado por meio de compras dos concorrentes. Os preços dos ativos existentes gradativamente voltam a ficar acima do preço de construir ou fabricar ativos novos – e retoma-se um ciclo de investimento e crescimento da renda.

No entanto, a esquerda sem este conhecimento da dinâmica sistêmica, em geral, vê apenas o enriquecimento por meio de salários como mais sustentável e vinculado ao crescimento econômico “real”. Necessita estudar os escritos de não-ficção sobre as Finanças!

De um ponto de vista moralista (e não ético), a remuneração pelo trabalho é mais facilmente aceita como legítima, enquanto a renda gerada por ativos financeiros é percebida como “não merecida”, dado se basear na posse de capital, e não no esforço ou mérito individual. Ora, os trabalhadores não acumulam também capital financeiro e se tornam rentistas?

Na verdade, o acesso ao enriquecimento por ativos financeiros não tende a ser restrito a quem já possui capital ou conhecimento específico, perpetuando desigualdades intergeracionais. Cada vez mais trabalhadores, destacadamente os universitários, mas não só, enriquecem, seja com renda fixa (juros compostos), seja com renda variável (valorização de ações).

Os salários, embora também reflitam desigualdades, não devem ser vistos como o único mecanismo de redistribuição democrático. Principalmente em contextos de políticas públicas para promover maior justiça social, a assistência social como bolsa-família ou RBU (Renda Básica Universal), além das pensões, são remunerações essenciais para os mais pobres.

Na realidade, o crescimento da renda financeira, sem a pressuposta correspondência com a economia “real” (como a financeira fosse à parte ou irreal), não leva a distorções como a “financeirização” da economia. Os recursos não são direcionados para o “setor” (sic) financeiro em detrimento da produção, inovação e investimento em infraestrutura, inclusive porque esse processo todo depende de financiamento.

A esquerda critica o enriquecimento por ativos financeiros porque ele é visto como símbolo de um sistema econômico desigual e explorador. O capitalismo por definição valoriza a acumulação de capital em detrimento do trabalho. Para ela, o enriquecimento por meio de salários é percebido como mais justo, produtivo e diretamente relacionado à contribuição individual para a sociedade.

Ora, ela tem de rever seus conceitos, baseados em individualismo metodológico, e pensar na atual longevidade humana com um longo de ciclo de vida inativa. A “financeirização”  sistêmica é necessária!

PS.: o algoritmo 1-3-6-9-12 indica “quanto é suficiente” para ter reservas em múltiplos de salários anuais por idade:

  1. aos 35 anos: ter 1 salário anual acumulado.
  2. aos 45 anos: ter 3 vezes o salário anual acumulado.
  3. aos 55 anos: ter 6 vezes o salário anual acumulado.
  4. aos 65 anos: ter 9 vezes o salário anual acumulado.
  5. aos 75 anos: ter 12 vezes o salário anual acumulado.

Com esse valor, é possível um saque mensal por cerca de vinte anos (240 meses) no mesmo valor presente da receita total líquida. Esses cálculos considera juros de 0,5% a.m. para capitalizar a sobra. O trabalhador-investidor terá, então, condições de viver mais vinte anos, sacando mensalmente o equivalente ao último salário.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]

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Last Update: 09/12/2024