Fim de ciclo à vista

por Antonio Machado

Por trás da briga pelo dinheiro público curto, grupos de centro já articulam outro eixo de poder

A série de derrotas aplicadas pelo Congresso na votação dos vetos do presidente Lula a trechos de projetos de lei e na urgência para o decreto legislativo que susta o aumento das alíquotas do IOF tem significados de longo alcance. A análise de que se trata apenas de disputa pela liberação de emendas para os parlamentares aplicarem verbas orçamentárias em seus redutos eleitorais é simplista.

Está mais para fim de ciclo.  Não necessariamente do fim da era do PT, vitorioso em cinco das seis últimas eleições presidenciais. É o fim do ciclo da prodigalidade no trato dos dinheiros públicos. E, possivelmente, dos lobbies econômicos entranhados no Estado, no vácuo da governança pífia, sem plano para entusiasmar a política.

Empinar crescimento econômico à base do keynesianismo hidráulico, em que a despesa pública corre à frente da receita estimulando o consumo em vez do investimento que expande a produção, exauriu-se, com implicações que vão muito além do embate entre o dirigismo do Estado e o liberalismo econômico. O que se fez desde o plano real, em 1994, até agora não tem mais espaço de ser feito nem por meio de aumentos sucessivos dos tributos nem do endividamento público.

Ambos baterem no limite da aceitação social, caso dos impostos, e da disposição de os gestores dos recursos de caixa das empresas e dos capitais ociosos do mundo em seguirem absorvendo os títulos de dívida do Tesouro Nacional emitidos para sustentar gasto corrente, não para mover o investimento em atividades inovadoras, capazes de competir nos mercados globais. A exploração de commodities rende divisas, mas sem o efeito difusor das inovações tecnológicas.

O encurtamento das opções de política econômica para um governo convicto de que o consumo movimenta a oferta, ou seja, a produção, na velha tradição do populismo latino-americano, está forçando uma mudança de diretrizes. Não só econômicas, mas políticas, já que as bases de apoio parlamentar foram formadas com a sedução monetária dos dinheiros orçamentários e a entrega de órgãos estatais.

Se para tal o dinheiro ficou escasso, cobrar mais imposto provoca azia política e se endividar gera a contrapartida do juro sideral, algo tem que mudar, começando pelo mindset dos governantes e dos que se dispõem a sucedê-los. Para os mais atentos, está mudando.

Partidos procuram visões

A urgência para a votação do decreto legislativo que vai sustar o aumento unilateral pelo governo do IOF foi aprovado pelo placar de 346 deputados a favor a 97 contra, com 70 ausências no plenário.

A lapada no governo só não foi mais chocante pela falta de hábito dos dirigentes do Congresso em se postarem como chefes de poderes constitucionais em relação aos outros dois, o Executivo e o STF. É um processo em transição quanto mais os presidentes da Câmara e do Senado deixarem de agir como líderes de bancada governista. Pior: despachantes de emendas para deputados e senadores.

Foi o que se viu com a instalação da CPMI sobre a roubalheira dos aposentados e pensionistas por sindicatos e entidades supostamente associativas sob as barbas dos caciques do INSS e do Ministério da Previdência. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o fez com ar constrangido, como se livrar a face do governante importasse mais que achar os responsáveis pela tunga dos velhos e doentes.

A expectativa de mudanças a caminho se fia no comportamento mais ousado de Alcolumbre (UB-AP) e Hugo Motta (PR-PB), presidente da Câmara, ambos refletindo o sentimento dos líderes dos partidos de centro e de direita, cujas direções já trabalham por um nome de consenso contra a reeleição de Lula ou de quem ele indicar.

Como esse trabalho ainda se dá mais no bastidor, o que a imprensa noticia é o jogo corporativo do parlamento, com Motta e Alcolumbre na vitrine. É mais que isso. As chefias dos partidos mais robustos começam a discutir o que fazer para tirar o país do enrosco – não visível pelo laxismo fiscal que explica o juro pela hora da morte e a aflição do governo para o Congresso aprovar os projetos eleitoreiros já anunciados. Já era…

Falta a inteligência digital

Não é qualquer mudança que fará a diferença. Não se trata, por exemplo, de arrumar dinheiro miúdo cortando benefício social nem eliminando desoneração tributária. Trata-se de passar a limpo as rubricas, todas, da lei orçamentária, e os programas parafiscais.

Mas isso não sem considerar como o país se insere no mundo e as transformações dos modelos de produção e de gestão dos negócios. Na nova geopolítica, cada país procura o seu lugar no mundo sob a influência de três macrotendências: a relocalização das cadeias de produção, a transição energética e a inteligência artificial.

Das três, tecnologia é a tendência que pede passagem no Brasil, puxada por um grande programa de inteligência digital – a língua franca dos algoritmos inserida em todos os aspectos da vida atual e futura. Não é questão de aprender, mas de integrar iniciativas tecnológicas já disponíveis no Brasil, faltando executá-las para sermos um destino privilegiado para o investimento tanto de grupos nacionais quanto de gigantes empresariais e financeiros globais.

Começa pela injeção de inteligência digital na administração dos governos, sobretudo o federal, liberando forças de transformação.

Virão delas as reformas focadas em encontrar para cada problema sensível, como o nó tributário e a complexidade regulatória e de controle, as soluções que favoreçam a criação de novas atividades empresariais, desinterditem a veia empreendedora, revigorem os mercados regionais, motivem as gestões públicas, especialmente as municipais, e mobilizem a juventude numa onda de entusiasmo.

Uma história de recomeço

Como nos atrasamos demais, não mais importa política industrial a fim de esticar o prazo de vida de negócios terminais. Nem política tecnológica desperdiçada em produção de estudos para publicação em revistas acadêmicas. É preciso decisão, movimento e aplicação.

A nota destoante do malaise formal de Brasília é que há sinais de que lideranças políticas se apercebem de que algo terá de mudar, e não no sentido maquiavélico para tudo continuar como está.

O senso de sobrevivência acorda forças sobrenaturais. Além de crescimento sustentado ser fator de coesão nacional, a adoção da inteligência digital e de cadeias de blocos de dados, ou “blockchain”, permitem a gestão em tempo real e o cruzamento de informações para melhorar a focalização do gasto, diminuir a evasão e combater a corrupção.

Com apoio político, liderança moderna e engajamento da sociedade, desponta a chance de a política recuperar o protagonismo perdido ou partilhado com outras instâncias como o Judiciário. Exercido a posteriori, o controle abastarda a política, em paralelo à ascensão dos poderes não eleitos. O fato é que todo mundo adora uma história de recomeço.

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Last Update: 21/06/2025