Poder, Nietzsche e fast food no filme “Obediência”

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

O telefone toca e uma estressada gerente de uma lanchonete fast food ouve a voz de um suposto policial avisando que uma atendente da loja roubou dinheiro de uma cliente que veio prestar queixa. Nas próximas horas ela cegamente obedecerá as ordens de um suposto policial ao telefone para além dos limites dos seus valores e consciência.

O homem é o mais medroso e desprotegido animal da natureza. Por isso necessitou do seu semelhante e fez surgir a consciência de si, a última e derradeira fase da evolução do sistema orgânico. É o que há de menos forte e acabado nesse sistema. Por isso, é a fonte de uma multidão de enganos – o seu espírito gregário e de submissão, para obedecer e fazer obedecer, por exemplo.

Nietzsche (1844-1900) afirmou isso no século XIX na sua obra A Gaia Ciência, bem antes da maior comprovação desse diagnóstico: o holocausto nazista promovido por subordinados imbuídos de autoridade e que apenas “cumpriam ordens” das autoridades superiores.

Mesmo depois da maior evidência empírica da História, pesquisadores ainda procuraram provas “científicas” para que fossem publicadas em anais acadêmicos. Como o famoso e controvertido Experimento Milgram sobre a obediência à autoridade realizado em 1961 pela universidade Yale no qual um avental branco de laboratório, estetoscópio e a prancheta do pesquisador Stanley Milgram conferiram autoridade suficiente para “cobaias” obedecê-lo a administrar choques elétricos em supostas vítimas atrás de uma parede (mesmo ouvindo gritos), apesar do experimento conflitar com a consciência e valores dos participantes.

Mas não é necessário chegar a tanto para sermos nietzschianos. Diariamente, pequenos golpistas, escroques de toda sorte e psicóticos comprovam o diagnóstico do pensador alemão. Talvez, esses membros da escória humana sejam os maiores psicólogos da consciência, explorando centímetro por centímetro nossas fraquezas, medos e ressentimentos.

Esse é o tema do filme Obediência (Compliance, 2012, disponível na Amazon Prime Video) baseada em um bizarro caso real de 2004 envolvendo uma lanchonete do MacDonald’s localizada em uma cidadezinha rural no estado de Kentucky. Uma gerente recebe o telefonema de um investigador da polícia denunciando que sua empregada roubou uma soma de dinheiro de um cliente.

O dia de Sandra (Ann Dowd), gerente de uma lanchonete da fictícia rede Chicken Wich de frango frito, já começou conturbado: um funcionário deixou um freezer aberto no dia anterior gerando prejuízo de 15 mil dólares em picles e bacon estragados. É sexta-feira, dia de grande movimento, e um supervisor da rede fará uma visita de inspeção a qualquer momento, disfarçado de cliente.

O telefone toca e uma voz diz ser um policial chamado Daniels (Pat Healy) e pergunta se a loja tem uma atendente loura. “Sim”, Sandra responde. “Chama-se Beacky” (Dreama Walker). Daniels diz que na delegacia está uma cliente da Chicken Wich prestando queixa de que Beacky roubou dinheiro da sua bolsa e que ele pode vê-la fazendo isso através da câmera de segurança.

Sandra conduz Beacky para um quarto privativo dos empregados enquanto o policial Daniels permanece na linha telefônica. Em seguida, a voz do policial, passo a passo, começa a orientar Sandra a fazer uma revista na atendente: a tirar cada peça de roupa e depois as roupas íntimas da funcionária.

Constrangida e perplexa, Beacky nada sabe sobre o dinheiro e, sem alternativa, obedece as exigências da voz do suposto policial, repetidas pela estressada Sandra – dividida entre os clientes que cada vez mais lotam a lanchonete, a falta de bacon e picles, o fantasma do “cliente secreto”, além de um potencial escândalo policial.

A voz do policial Daniels é ao mesmo tempo calma e determinada, sem deixar de fazer elogios à postura “profissional” de Sandra ao telefone e como está conduzindo aquele delicado caso.

O filme foi baseado em uma caso real em 2004 de uma gerente de MacDonald’s que caiu na isca de um psicótico que tinha uma estranha necessidade de fazer as pessoas cometerem crimes de abusos somente obedecendo aos seus caprichos, sempre ocultados por trás de um personagem supostamente investida de autoridade.

Organização vertical nos torna vulneráveis

Duas coisas chamam a atenção na construção narrativa de Obediência: primeiro, como as técnicas vocais e recursos retóricos e entonações como uma narrativa radiofônica podem ser mais envolventes do que as imagens – a capacidade de visualizar os eventos em nossas mentes que tornam-se mais vívidos do que qualquer filme ou vídeo.

E segundo, como as primeira sequências do filme constrói a paisagem humana de pessoas comuns em um trabalho entediante, submetidos a uma rotina altamente hierarquizada (gerentes e supervisores em uma rede de fast food) submetida à pressão por desempenho.

Enquanto assistimos ao filme, a situação para nós parece totalmente irracional: como alguém obedeceria ordens de uma voz pelo telefone, executando procedimentos que claramente entram em conflito com seus próprios valores e consciência?

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Last Update: 30/12/2024