“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.” Muitos leitores devem reconhecer esta célebre frase de Walter Benjamin. Nossa cultura, marcada em grande medida pela voracidade do mercado, não se dedica a erguer monumentos – mas, antes, a produzir objetos de consumo. Podemos, então, especular que uma sociedade orientada pelo consumo desenfreado caminha, a passos largos, rumo à barbárie. Indo além, é possível associar a expansão ilimitada do fetiche da mercadoria à emergência dessas novas formas de barbárie.
Vale acrescentar uma breve explicação sobre o conceito de fetichismo da mercadoria, já que nem todos os leitores de CartaCapital passaram pelo primeiro capítulo de O Capital, onde Karl Marx o apresenta. Tentarei resumi-lo aqui, de uma forma tão indecorosa que talvez faça Marx se contorcer no túmulo: o “brilho” da mercadoria, que enfeitiça os consumidores nas sociedades capitalistas, advém da parcela de morte do trabalhador inserida no “corpo” da mercadoria. Essa parcela de morte da qual o trabalhador não tem consciência – o que Marx chama de alienação – é inseparável dos objetos que o trabalhador produz.
O fetiche seria, portanto, o brilho oculto dessa parcela de morte que é indissociável da produção de mercadorias. Por que indissociável? Porque o salário que o trabalhador recebe esconde um “truque” fundamental do capitalismo: ele não corresponde exatamente ao valor do tempo que o trabalhador dedica à produção. Assim, uma parte do trabalho, ocultada sob o fetiche da mercadoria, não é remunerada. É dessa diferença que advém o lucro do capitalista. Esse gap, do qual o operário não tem consciência, entre o valor real de seu trabalho e o salário recebido, é um “pedaço de morte” que rouba parte da vida do trabalhador. Um tempo não vivido para si, mas alienadamente entregue ao outro.
Volto ao pensamento de Benjamin. As chamadas sociedades de mercado – e aqui me dou conta de mais uma barbaridade: a associação cada vez mais estreita entre o laço social e o “mercado” – passaram, nos tempos recentes, a disseminar também mercadorias de comunicação virtual. Refiro-me aos computadores, tablets e telefones celulares, que todos usamos e que vêm produzindo mais uma forma de barbárie: os crimes virtuais, frequentemente cometidos sob o manto do anonimato.
Não costumo ser catastrofista, mas não posso ignorar a nova barbárie que se impõe diante dos nossos olhos – e diante da qual ainda tateamos, sem saber como reagir. O anonimato nas redes sociais, aliado a corações e mentes embebidos pelas mais diversas formas de fetiche, cria um contexto perverso em que adolescentes, sem encarar o semelhante frente a frente, sem sequer sair de casa, tornam-se capazes de levar um colega, ou mesmo um desconhecido, à morte ou ao suicídio.
É recente a tragédia da menina de 8 anos que morreu ao aspirar desodorante em um desafio proposto por colegas virtuais. Quem é o responsável por sua morte? Ninguém… Foram as redes sociais – ou melhor, as antissociais. O que facilitou a possibilidade desse crime? Talvez o mandato inconsciente que Lacan batizou como “imperativo do gozo”: se você pode, você deve. Com o agravante de que o anonimato e a falta de regulamentação das redes favorecem, em nome da chamada “liberdade de expressão”, a disseminação desse imperativo.
Lacan, ao tratar desse fenômeno, não poderia prever a voracidade das “viralizações” virtuais, covardes e anônimas, capazes de desmoronar nossa frágil civilidade e o precário respeito pelo sagrado direito, tanto nosso quanto dos outros, à dignidade e à vida. Se as redes sociais não forem regulamentadas e não se submeterem a essas mesmas normas de civilidade, estaremos todos, ativa ou passivamente, contribuindo para viver sob o domínio dessas novas formas de barbárie.
É interessante – e tenebroso – pensar que, no capitalismo, as próprias pessoas acabam se tornando mercadorias. Esse fenômeno se manifesta, antes de tudo, na linguagem: trabalhadores frequentemente dizem que estão com dificuldade em “se vender” ou que se sentem “fora do mercado”, quando percebem que suas habilidades profissionais já não têm mais utilidade, à medida que as máquinas substituem o trabalho humano. Pessoas altamente competentes tornam-se “obsoletas”.
Fico a me perguntar, talvez de forma ingênua, o que será do capitalismo quando todo o trabalho humano se tornar dispensável. Se mais da metade da humanidade deixar de conseguir vender sua força de trabalho, de onde virá o dinheiro para comprar mercadorias e impulsionar o sistema? •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fetiche e barbárie’