
Festival de Parintins: a salvaguarda de rituais e lendas indígenas
por Allan Carlos Moreira Magalhães
O Festival Folclórico de Parintins, que marca o confronto entre os Bois-bumbás Garantido e Caprichoso, é muito mais do que uma festa. É a celebração da diversidade cultural e dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, estando presente em todos os itens que são apresentados no Bumbódromo (arena onde se dá a disputa dos Bois-bumbás), como as letras das toadas, as alegorias e os rituais indígenas, que mostram para o mundo o universo cultural amazônico formado pelos indígenas, pelos negros e pelos brancos, com suas relações conflituosas, suas crenças, disputas por terras e pelo direito de existir.
O Complexo Cultural do Boi Bumbá do Médio Amazonas e Parintins, no qual o Festival é um dos seus elementos de composição, enquadra-se na definição de Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, pois corresponde à “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”, tanto que o Iphan, em 2019, registrou como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. [1]
E, em decorrência deste registro, é demandada uma série de ações colaborativas entre o poder público e a comunidade para a sua salvaguarda, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão e a revitalização. O poder público deve, portanto, elaborar, em conjunto com a comunidade, um plano de salvaguarda para os bens culturais registrados que consiste num instrumento de planejamento coletivo para nortear e potencializar as iniciativas de proteção, valorização e promoção.
Em âmbito federal, o Iphan conta com um Manual para a elaboração dos Planos de Salvaguarda [2]. Mas a promoção e valorização do PCI não ocorrem unicamente com os Planos ou a partir deles, em que pese a sua essencialidade. Há iniciativas que partem da própria comunidade ou de outros grupos e comunidades que têm um impacto significativo na promoção e valorização do Patrimônio Cultural Imaterial.
Assim, apesar da disputa que divide a cidade de Parintins e a “galera” (torcedores) no Bumbódromo pelas cores azul e vermelho, ambos os Bois exercem um papel essencial na promoção e divulgação do patrimônio cultural, e não apenas do Festival ou do Boi-Bumbá, que são registrados pelo IPHAN como Patrimônio Cultural brasileiro.

Antes da instituição do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), (Decreto n.º 7387, de 2010), que tem o objetivo de identificar, documentar e valorizar as línguas do país, incluindo as de povos originários, os Bumbás de Parintins já introduziam em suas toadas, desde a década de 1990, palavras e expressões de origem indígenas, abordando a cosmogonia de diferentes povos indígenas, seus aspectos culturais, suas diferentes etnias e a fauna amazônica [3], utilizando a música para registrar e divulgar as línguas indígenas, para contar seus mitos e lendas, e também para denunciar violações de direitos dos povos originários.
O Garantido lançou em 2003 o álbum “Amazônia: Santuário Esmeralda” e dentre as toadas há a “Yãkwa” que trata do Ritual do povo indígena Enawenê Nawe. Este ritual indígena foi registrado em 2010 pelo IPHAN [4] como patrimônio cultural imaterial. A letra da toada é estruturada com os principais elementos deste ritual, o que também é uma forma de promover e preservar este patrimônio cultural antes mesmo de qualquer atuação estatal. O Caprichoso, no álbum lançado em 2004 “Amazonas: terra do folclore, fonte de vida” com a toada “Mariwin”, aborda rituais e lendas do povo indígena Matis levando para o Bumbódromo [5] a sua encenação, enaltecendo a cultura e as tradições dos povos indígenas, que adquirem maior visibilidade com o Festival
O Festival de Parintins transcende, portanto, o momento festivo, envolvendo a salvaguarda das formas de criar, fazer e viver dos diferentes povos indígenas do Brasil quando produz conhecimento sobre eles para estruturar o espetáculo apresentado no Bumbódromo, especialmente com as letras das toadas que, além de emocionantes, são também fontes de pesquisa e formas de promover e valorizar as línguas dos povos indígenas e os seus conhecimentos ancestrais.
Notas:
[1] IPHAN. Processo de Instrução Técnica do Inventário de Reconhecimento do Complexo Cultural do Boi-Bumbá do Médio Amazonas e Parintins. Dossie final. 2018. Disponível em: https://bcr.homologacao.iphan.gov.br/documentos-do-process/dossie-de-registro-bois-de-parintins/ Acesso em: 04 ago. 2025 [2] IPHAN. Manual de elaboração de Planos de Salvaguarda / Organização: Aline Miranda, Rafael Belló Klein e Sara Santos Morais. – Dados eletrônicos (1 arquivo PDF). – Brasília: Iphan, 2022. Disponivel em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/manual_planos_de_salvaguarda.pdf Acesso em: 04 ago. 2025. [3] SILVA, Dulcilânia Belém da; MARTINS, Silvana Andrade. Dicionário de palavras de origem indígena nas toadas dos Bois-bumbás de Parintins. Manaus: Editora UEA, 2021. [4] IPHAN. Ritual Yakwa do Povo Enawene Nawe. Dossiê. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/dossie_18_ritual_yaokwa.pdf acesso em: 04 ago. 2025 [5] BOI CAPRICHOSO. Ritual Mariwin. Festival Folclórico de Parinstins. Video, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gCQEgYIcUHE Acesso em: 04 ago. 2025.Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor em Direito. Professor da Universidade do Estado do Amazonas. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). É Autor do livro “Patrimônio cultural, democracia e federalismo” e coautor do livro “É disso que o povo gosta: o patrimônio cultural no cotidiano da comunidade”
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