Feminicídios: entre repercussões e estatísticas persistentes, por Belisario & Palucci

Feminicídios: entre repercussões e estatísticas persistentes

por Camila Belisario e Júlia Viana Palucci

Em 2019, a escritora Patrícia Melo publicou um romance policial intitulado “Mulheres empilhadas”, em que conta a história ficcional (e um pouco verídica) de uma advogada enviada ao Acre, por seu escritório, a fim de atuar em julgamentos de feminicídios na região. Ao chegar em seu destino, a narradora se depara com dezenas de casos de assassinatos de mulheres, mortas por seus parceiros íntimos e/ou pelo fato de serem mulheres.

A repercussão pública dos casos de feminicídio ocorridos nas últimas semanas nos trouxe à mente a figura das “mulheres empilhadas”, como uma infinidade de corpos e casos de mulheres assassinadas, mortas com a crueldade que, via de regra, caracteriza esses crimes. Catarina Kasten, Ingrid de Jesus, Alane de Sousa Matos, Laise Pinheiro, Taynara Santos, Jhessilane Silva, Larissa Gomes da Silva e Evelyn de Souza Saraiva são algumas das vítimas mais recentes de feminicídio no Brasil, assassinadas entre os dias 21 e 29 de novembro. Suas mortes chocam pela repetição dos crimes noticiados e pela violência empregada, mas, infelizmente, não são casos isolados, são uma fração do que ocorre diariamente no Brasil onde, em média, quatro feminicídios ocorrem por dia.

A repercussão midiática dos crimes, consequentemente, faz emergir a questão de como, afinal, combater os feminicídios. Em uma mostra da falta de compreensão dos agentes políticos sobre a complexidade do problema, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, declarou na última quinta-feira (11/12) que no combate ao que chamou de “epidemia de feminicídios”, “a gente precisa criar canais seguros para que as mulheres possam comunicar”. Mas esses canais já existem, governador.

O Brasil possui um sistema robusto de suporte a vítimas de violência contra a mulher. Para denúncias, entre outros canais exclusivos para esse fim estão as delegacias de atendimento de mulheres; os Núcleos de Defesa dos Direitos da Mulher, vinculados a Defensorias Públicas, presentes em diversos estados do país; e a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180. Além deles, os canais convencionais de denúncias como as delegacias distritais e a emergência da Polícia Militar (190) nos estados, o meio mais acionado em situações emergenciais de violência, também estão conectados a amplas redes de apoio compostas, por exemplo, pela Casa da Mulher Brasileira, entre outros centros especializados.

Ainda assim, esse sistema enfrenta ao menos dois gargalos. O primeiro refere-se à persistente dificuldade de as mulheres formalizarem denúncias, seja por restrições de acesso ou desconhecimento dos serviços disponíveis, seja por constrangimento ou outras razões de natureza íntima, como o vínculo familiar com o agressor, muitas vezes pai dos filhos da mulher ameaçada, ou a dependência econômica. O segundo gargalo, sobre o qual trataremos mais detidamente aqui, diz respeito ao que ocorre após a formalização da denúncia de violência, especialmente no que se refere às medidas efetivas para proteção da mulher.

Medidas Protetivas, mais leis e punições
A Lei Maria da Penha (LMP), em seus artigos 22, 23 e 24, prevê medidas protetivas de urgência de dois tipos: aquelas que impõem obrigações ao suposto agressor, como determinar a prestação de alimentos provisionais ou provisórios ou o comparecimento a programas de recuperação e reeducação; e as que visam à proteção da vítima, tais como, determinar matrícula dos dependentes em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, independentemente da existência de vaga, e encaminhar a vítima e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento.

As “protetivas”, como costumam ser chamadas pelos agentes do Sistema de Justiça, apareciam de forma recorrente nas pesquisas etnográficas realizadas por cada uma de nós, entre os anos de 2020 e 2022, em uma Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) e no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher e das Vítimas de Violência de Gênero (NUDEM), ambos no Rio de Janeiro, e em grupos de Facebook dedicados ao apoio de mulheres em situação de violência doméstica. Se por um lado, na DEAM e no NUDEM, as medidas protetivas eram desejadas como instrumento de garantia de proteção, sobretudo aquelas que determinavam o afastamento do denunciado em relação à mulher, as referências a elas nos grupos de Facebook indicavam grande frustração no que tange aos seus efeitos na prática. Isso porque, ao contrário do que muitas mulheres imaginavam quando denunciavam violência doméstica, e, em especial, as ameaças feitas por seus companheiros, obter o “papel” não garantia que o agressor fosse, de fato, se afastar, nem que ele seria punido, caso descumprisse a determinação judicial.

É impossível saber quantos feminicídios podem ter sido evitados em razão de medidas protetivas concedidas a mulheres que denunciaram violência e, portanto, avaliar a eficiência delas como instrumento jurídico de proteção. Nossas pesquisas, no entanto, deixaram claro o descompasso entre as expectativas dessas mulheres quando registravam suas queixas e denúncias em delegacias e órgãos do sistema judiciário e a não concretização dessa proteção. Frases como “desde quando porcaria de papel é escudo?” e “com medida ou sem ele se quiser faz igual [agredir], não vai ter segurança 24 horas” são exemplos entre diversas falas de mulheres em grupos de suporte a vítimas, que explicitavam que a obtenção do papel não significava garantia de segurança.

Não se trata de deslegitimar as medidas protetivas e demais políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, afinal, como mostra a pesquisa de Camila Belisario, uma das autoras deste texto, há casos bem sucedidos, não só em relação à obtenção da medida protetiva, mas aos efeitos dela. Isso é demonstrado em relatos de mulheres para as quais o “papel” que corporificava a medida adquiria o poder simbólico e material que era capaz de fazer cessar as situações de violência. Esse suporte, carregado por algumas mulheres em suas bolsas, transformava-se, então, em uma espécie de talismã que as protegia.

No entanto, diante da persistência de casos de violência contra mulheres que, muitas vezes, terminam em feminicídios, há de se refletir sobre as limitações dos aparatos judiciais e estatais para o seu enfrentamento. Além disso, é fundamental analisar o real impacto de soluções punitivistas adotadas reiteradamente pelo Estado na incidência de casos.

O próprio descumprimento de medidas protetivas por acusados de violência contra a mulher é uma realidade que as autoridades reconhecem e tentam combater com o agravamento de sanções. Em 2018, a  Lei nº 13.641, acrescentou o artigo 24-A à LMP, tipificando o descumprimento de medidas protetivas de urgência como crime autônomo, com pena de detenção de três meses a dois anos. Sem grande efeito, as sanções para descumprimento foram novamente aumentadas no ano passado, quando a Lei nº 14.994 alterou a redação original do artigo 24-A, ampliando a pena prevista para descumprimento de medidas protetivas para reclusão de dois a cinco anos, além de multa.

Foi também a Lei nº 14.994 que tornou o feminicídio, antes qualificadora do crime de homicídio doloso, um crime autônomo. Além de estabelecer o crime como um do tipo penal próprio, a nova legislação também ampliou a pena prevista, que passou de reclusão de 12 a 30 anos para 20 a 40. Possíveis impactos dessa mudança poderão ser observados no futuro, como discutiremos mais adiante. 

No caso da violência de gênero, não resta dúvida de que a LMP, promulgada em 2006, vem contribuindo enormemente, ao longo de quase 20 anos, para dar visibilidade ao tema da violência doméstica e familiar contra mulheres, tornando-se paradigmática não apenas no campo legislativo e moral, mas no conjunto de políticas públicas criadas no Brasil com o objetivo de combater à violência contra a mulher. A Lei do Feminicídio, de 2015, também jogou luz para um crime complexo de ser enfrentado, que ao longo das últimas cinco décadas mobiliza coletivos feministas, sobretudo na tentativa de dissociar a morte de mulheres por seus parceiros de ideias como “crimes passionais” ou crimes cometidos pela “legítima defesa da honra”. Os casos, no entanto, seguem se acumulando.

Há esperança?

Uma máxima atribuída ao prêmio Nobel de economia Ronald Coase informa que “sob tortura, os números confessam qualquer coisa”. Embora soe como uma declaração que desencoraje a confiança em dados quantitativos, ela, na verdade, sugere que sem análise de contexto e outros fatores que interferem nos cenários a que se referem números e taxas, as análises de fenômenos e questões complexas tendem a ser incompletos e por vezes apresentar cenários ou levar a conclusões enganosos.

Os inúmeros casos de feminicídio que ganharam destaque na imprensa recentemente conjuntamente aos índices de violência contra a mulher divulgados pelos órgãos de segurança pública podem indicar um cenário de absoluto fracasso das políticas de combate à violência contra a mulher, que talvez não representem adequadamente a realidade. Embora haja muito a avançar nesse campo, não devemos bater o martelo sobre a ineficácia dessas iniciativas, mas sim examinar com atenção os números, casos e contextos, tendo em mente que, há conjunturas em que é necessário tempo para avaliar resultados.

Tomemos como exemplo os registros de feminicídios no estado do Rio de Janeiro, de acordo com dados do Dossiê Mulher, elaborado anualmente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do estado. Desde que o crime começou a ser registrado no relatório, em 2016, ano seguinte à sanção da Lei de Feminicídio, a quantidade de casos registrados aumentou mais de 600% (Em 2016 foram registrados 16 casos de feminicídio no Rio de Janeiro e em 2024 foram 107 ocorrências do crime). Uma avaliação apressada poderia indicar um crescimento exponencial na incidência desses crimes. Primeiramente, cabe observar que o aumento no número de registros foi progressivo (observadas ligeiras quedas em alguns biênios) com 68 casos registrados em 2017, 71 em 2018, 85 em 2019, 78 em 2020, 85 em 2021, 111 em 2022, ano com o quantitativo mais alto desde o início da série histórica, e 99 casos em 2023. Os números confirmam-se alarmante, entretanto, se observarmos que houve uma diminuição significativa no total de homicídios de mulheres no estado, em consonância com a queda geral de homicídios observada no Brasil nos últimos anos, devemos considerar mais indícios de uma outra hipótese: a tendência de que mais homicídios de mulheres estejam sendo classificados como feminicídios.

Como estabelecido pela lei de 2015, o feminicídio tornou-se qualificadora do crime de homicídio doloso praticado contra a mulher em razão da condição de sexo feminino. Essas condições são verificadas quando o crime ocorre no contexto de violência doméstica e familiar e/ou quando se verifica menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. Logo após a entrada em vigor da lei, não surpreende que ainda poucos dos homicídios de mulheres fossem classificados com tal. Em 2016, dos 396 homicídios de mulheres registrados no Rio de Janeiro, cerca de 4% (16 casos) foram classificados como feminicídio. No ano seguinte, em 2017, esse percentual aumentou consideravelmente. Mesmo com uma ligeira queda no total de homicídios de mulheres daquele ano, com 382 casos registrados, 18% deles foram classificados como feminicídio. Nos anos posteriores essa tendência de aumento nos percentuais foi se confirmando (apenas com uma queda entre ao anos de 2022 e 2023), chegando em 2024 a corresponder por 43% do total de homicídios de mulheres no estado.

Então, afinal de contas, o que todos esses números e percentuais explicam ou não sobre a incidência de feminicídio?

A exemplo do que ocorreu a partir da criação da LMP e da Lei de Feminicídio de 2015 e, agora, com a tipificação penal, ao longo dos anos, tende a ocorrer uma conscientização crescente entre os profissionais do Sistema de Justiça Criminal sobre as adequadas classificação e tipificação dos crimes, o que certamente ajuda a explicar o crescimento nos números de registros de feminicídios. A expectativa com o estabelecimento do feminicídio como crime autônomo é que ainda mais casos de mortes de mulheres sejam classificados assim, pois anteriormente à nova lei, esse registro só ocorria quando havia a inclusão de qualificadora ao crime de homicídio doloso já no boletim de ocorrência, o que não será necessário agora. Assim, as estatísticas desse crime, que já são altíssimas, podem continuar crescendo nos próximos anos, ainda que as mortes de mulheres continuem a cair. Reiteramos que sem uma análise aprofundada dos casos, que vai além de números, índices e percentuais, é impossível determinar quantos deles se devem a maior incidência do feminicídio e quantos às mudanças na classificação. Em que pese os altos índices do crime, seu aumento deve ser avaliado considerando a maior conscientização da sociedade e dos agentes de justiça e segurança sobre o fenômeno da violência contra a mulher.

Para além das estatísticas criminais, nomear um “homicídio” como “feminicídio” impacta também a percepção das mulheres sobre suas próprias vivências. Em nossas pesquisas, acompanhamos casos de mulheres que haviam decidido denunciar seus companheiros e que justificavam essa tomada de “atitude” por terem começado a ver com cada vez mais frequência casos de feminicídio nos canais de notícia. Os comentários das denunciantes, nesses casos, expressavam a percepção delas sobre o feminicídio como um fenômeno em crescimento. Afinal, nomear um fenômeno e tipificá-lo juridicamente são maneiras de transformá-los em problemas sociais e públicos.

Nosso esforço aqui foi de articular a percepção pública sobre o fenômeno da violência contra a mulher e do feminicídio com a problematização de números que buscam revelar as proporções de um fenômeno histórico e persistente no contexto atual. Contamos com uma série de avanços legislativos e políticos — fruto de décadas de luta de movimentos de mulheres e feministas pelos direitos das mulheres no Brasil — que não parecem resultar em melhorias proporcionais aos esforços de criação e resistência desses mecanismos de combate à violência. Pensamos nos dados, mas nos deparamos com cada vez mais notícias, cada vez mais feminicídios, corpos e casos que seguem se empilhando.

Camila Belisário é doutoranda e mestre em Antropologia (PPGA/UFF). É integrante do Grupo de Etnografias e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM/UFF) e pesquisadora associada da REMA.

Júlia Viana Palucci é doutoranda e mestre em Antropologia (PPGA/UFF), integrante do Grupo de Etnografias e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM/UFF) e da REMA.

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