Favelas e justiça no Brasil contemporâneo, por Igor Vitorino da Silva

A cidadania permanece incompleta ou negada: favelas e justiça no Brasil contemporâneo

por Igor Vitorino da Silva

Umuntu ngumuntu ngabantu”
(“Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”)
(Provérbio Zulu)

O Dia da Favela (04/11) deveria ser no Dia da Justiça (08/12), não como afirmação e territorialização positiva das favelas e espaços habitacionais precários nas cidades brasileiras, mas como tempo de denúncia das desigualdades, marginalizações, segregações do mundo criminal, das violências e das múltiplas pobrezas urbanas.

Nesses termos políticos e sociais, esses territórios populares constituem-se em estratégias de realização de direitos humanos, direitos fundamentais e direitos sociais negados, negligenciados e ignorados pela sociedade (racismos, discriminação, estigmatizações, punitivismo, dominação masculina, hierarquias), pelo mercado (lógica do consumo e solvência) e pelo Estado, através da ineficiência das políticas públicas, da seletividade das políticas de Segurança Pública — especialmente do Direito Penal — e do não acesso à Justiça e aos direitos legais formais.

A cidadania plena, efetiva, substantiva e universal não se realiza, de maneira completa, na sociedade brasileira, sendo ainda uma utopia política e social que move alguns grupos sociais, instituições e movimentos políticos e sociais.

Essa situação política produz uma experiência social e urbana na qual as hierarquias sociais e as diferenças econômicas e políticas, de fato, atuam na distribuição e definição de acesso aos direitos e à Justiça. Esse é um tema central de nossa democracia contemporânea, nossa grande aporia política: não conseguimos, por múltiplas causas, inserir plenamente esses princípios no nosso contrato social. É diante do dilema da participação, da igualdade e da cidadania, orientada pela universalidade, diversidade, liberdade e inclusão, que se alimentou as lutas contra a ditadura militar (1964–1985) e se fundou, com todos os problemas da permanência do elitismo, oligarquização e da cultura de conciliação, a República Nova, que este ano comemoramos 40 anos de lutas e negociação, recuos e avanços,  40 anos de redemocratização e não autoritarismo político.

Nesse cenário político e social, as favelas e os espaços habitacionais precários constituem-se na luta pelo reconhecimento e por direitos: inicialmente e em primeiro lugar, o direito de permanência (Milton Santos, Rafael Soares Gonçalves, James Holston) — lembrando a ideia do “Direito Achado na Rua” (Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Júnior) — e, em segundo lugar, a contínua e árdua luta pelo direito à cidade, ao solo urbano e ao acesso à Justiça. Estas lutas ainda se encontram na ordem do dia, e as autoridades judiciárias e seus estatutos continuam ineficientes em atendê-las, ouvi-las e compreendê-las.

Ainda, de fato, a Justiça enquanto sistema judiciário brasileiro encontra-se distante e ausente da vida cotidiana dos cidadãos, aparecendo-lhes sempre como ausência e como empecilho, dada a lentidão do tempo da Justiça em efetivar direitos, especialmente para os grupos sociais mais fragilizados e distantes do poder.

Nessa perspectiva, as favelas e os espaços habitacionais precários — lotados de não cidadãos — encontram-se numa sociedade em que o acesso à Justiça se organiza pela lógica da hierarquização e do lugar social ocupado pelas pessoas (quais relações ou capital social possuem?). Isso faz com que o protecionismo jurídico e a lógica da vingança operem nas instituições de Justiça, de maneira aberta e sem pudor, em pleno regime de Estado Democrático de Direito, ampliando, de certa forma, o medo, a desconfiança e a busca de outras formas de efetivação e acesso à Justiça, nem sempre pacíficas, equitativas, eficazes e justas.

A dificuldade de promover a igualdade, a justiça e a equidade, tornando efetivos os desígnios e as promessas da Lei por parte do Estado, do mercado e da sociedade — especialmente do Poder Judiciário — fez com que as favelas e espaços habitacionais precários, com todos os riscos que envolvem as comunidades e seus moradores que ali habitam, fossem — e continuem a ser — materializações da justiça popular, da fome por direitos, mesmo que entrando em choque com o direito à propriedade, que no Brasil vigoram imperialmente nos tribunais com pouca ou quase nenhuma consideração dos direitos humanos e dos direitos sociais, nem mesmo o princípio da função social da propriedade (Constituição Federal [Art. 5º, XXIII e Art. 186] e do Código Civil [Art. 1.228, § 1º], Estatuto da Terra [Lei nº 4.504/1964], Código Florestal [Lei nº 12.651/2012], Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001).

É uma luta por um lugar para morar, por um lugar para chamar de lar, por um lugar para construir sua casa, garantindo-lhes a permanência na cidade e a possibilidade, a partir do trabalho, cheios de agruras, desafios e dificuldades, de construir um projeto de vida para si, seus parentes e familiares. Um projeto de vida que representa nas primeiras construções com materiais e na terra nua a possibilidade de futuro melhor e de uma casa digna, como se aqueles homens e mulheres participassem de iluminismo dos pobres, na crença aberta e sincera da possibilidade de melhor a vida, do futuro ser melhor; a fé no progresso da terra por eles colonizada, fenômeno urbano e político que Linderval Augusto Monteiro chamou de colonização proletária.

É uma luta que nega e se recusa a primeira grande expropriação urbana: a da terra urbana e do solo urbano para constituir uma vida digna na cidade. Tal privação é resolvida pela coragem e auto-organização popular, que acaba por denunciar e apontar  outras despossessões jurídicas, políticas e socioeconômicas que bloqueiam as condições de vida e trabalho dignos a uma grande parcela da sociedade brasileira, especialmente a grande maioria que vivem de baixos salários e em trabalhos precários. Podemos enumerar, dentre muitas, as expropriações da mobilidade e transporte, da saúde, do lazer, da educação, da segurança pública, do acesso à Justiça, poder agency, capacidades políticas, do respeito e reconhecimento sociais, dos serviços públicos em geral, da paz e tranquilidade pública, da cultura, do entretenimento e do império da lei (Roberto Kant de Lima, Luiz Eduardo Soares, Luiz Werneck Vianna).

Todo esse espiral de expropriações transforma ou converte  as favelas e os espaços habitacionais precários em territórios de exceção (Giorgio Agamben, Joice Berth, Marcelo Lopes de Souza), nos quais o ordenamento jurídico-político, os direitos humanos e os direitos fundamentais se encontram fragilizados ou suspensos. Isso justifica, legitima e naturaliza a ação fora do Império da Lei por parte dos agentes públicos, dos operadores do Direito e dos controladores do mundo do crime. Tal realidade social e política transforma a vida dos moradores e das localidades não apenas em reféns do despotismo social e do autoritarismo estatal — especialmente àqueles que não estão envolvidos com a dinâmica criminal — mas em cidadãos incompletos ou não merecedores de direitos, reconhecimento e escuta (Muniz Sodré, Berenice Bento).

Aqueles não conseguem, seja por ineficiência das instituições ou conivência das burocracias de rua alcançar o estatuto pleno da cidadania que, nesse caso, se traduziria em direito à cidade e a ter direitos, rompendo com isso, com o estresse cotidiano da insegurança pública, do higienismo social, econômico e político (remoção, estigmatização, expulsão) com a desconfiança em relação aos agentes públicos, com o medo e o desespero em relação ao futuro e vida urbana, com a hipertensão e ansiedade, até mesmo estresse pós-traumático, devido ao convívio permanente com os riscos, provisoriedades, tratamento diferenciado (humilhante, vexatório e ultrajante)  e a impossibilidade de rotina na vida cotidiana (Jacqueline Muniz, Frantz Fanon, Luiz Antonio Machado da Silva). 

Nesse contexto, percebe-se que poderia haver um passo inaugural da Justiça brasileira (pró-ativismo e posicionamento estratégico) para além dos gabinetes, fóruns e tribunais nos quais a promoção da cidadania e a efetivação de direitos com celeridade e equidade, tornem-se, prioritariamente, presentes nas favelas e espaços habitacionais precários (Fabio Reis Mota, Marcelo Neves).

Tal passo significa dissolver e demover a distância social e a desconfiança popular em relação à efetividade e às intenções dos operadores do Direito, combatendo as persistentes expropriações sociais, políticas, econômicas e culturais aqui mencionadas, completando, reforçando e consolidando o direito à permanência — o direito achado na rua — conquistado pelas sensibilidades jurídicas populares ou pelas economias morais populares compartilhadas que orientam a avaliação e a condução moral das camadas populares, com as demais constelações de direitos que possam garantir a vida digna, moradia digna e trabalho digno nas grandes cidades brasileiras (Luís Roberto Cardoso de Oliveira, Clifford Geertz, Didier Fassin, Edward Palmer Thompson).  Tal gesto impõe ao poder judiciário o reconhecimento das pautas e agendas abertas em torna da reforma urbana popular que teve ao longo desses 40 anos de redemocratização a construção significa aporte jurídico, legal e político, que desde a participação e controle social aos instrumentos urbanos e princípios legais enunciados pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e a Lei de Regularização Fundiária (Lei nº 13.465/2017) para garantir o acesso ao direito à cidade, em toda sua complexidade e dimensões sociais, jurídicas, econômicas, políticas e culturais.

O Dia da Favela é um dia de comemorar direitos, assim como o Dia da Justiça. Mas uma comemoração que se abre relembrar ao Poder Judiciário brasileiro a sua missão e defesa da democratização, o que exige o engajamento institucional e profissional  ao  combate ao racismo estrutural, no fortalecimento da sociedade civil, na aproximação efetiva e articulada entre Judiciário e periferias (ADPF 976/2023), na promoção da transparência e participação social; políticas urbanas pautadas pela dignidade humana e animal, na defesa da sustentabilidade ambiental, contra racismos  e na política de reparação histórica. Para que o país avance e as favelas e espaços habitacionais precários encontrem paz e tranquilidade, os operadores do Direito precisam deixar de seduzir-se pelo mito da imparcialidade, o culto ao bacharelismo, autoproteção através da especialização e do insulamento institucional e a valorização da norma pela norma para assumirem uma prática pública que se consubstancie de fato na defesa social e moral de igualdade, direitos e liberdade, lembrando Thomas Paine e seus panfletos (Modesto Florenzano) especialmente nos territórios historicamente negados pelo Estado Brasileiro, sociedade e mercado.

A partir dessas considerações sociais e políticas acima, o Dia da Justiça, mais do que uma celebração institucional, pode se constituir uma ocasião para refletir crítica e dialogicamente sobre o papel da Justiça na reprodução e no enfrentamento das desigualdades urbanas brasileiras. Infelizmente, como foi discutido o Poder Judiciário, em grande parte, tem de maneira recorrente, operado de modo seletivo, restritivo, classista e elitista, garantindo direitos plenos a apenas parte da população brasileira. Contudo, decisões como a ADPF 976, em plena Pandemia demonstram que há caminhos institucionais e administrativos no plano das instituições de justiça no Brasil  para construir uma Justiça comprometida com a dignidade humana, os direitos sociais e a reparação histórica, relembrando rei e sacerdote Melquisedeque que pulsa nas noções de justiça e direitos tecem a vida cotidiana brasileira, especialmente das camada populares que vem das linhagens religiosas de matriz judaico-grego-cristã-ocidentalizante (FGV Projetos. Conhecendo a Justiça Brasileira. Rio de Janeiro, FGV Projetos, 2015, Wagner Silveira Feloniuk, Associação dos Magistrados Brasileiros, Pastoral Carcerária, CUFA (Central Única das Favelas), Agenda Nacional pelo Desencarceramento, e muitos outros atores e instituições sociais e políticas que se colocam na luta social por direito e reconhecimento).

Nesse sentido, o Judiciário brasileiro, embora constitucionalmente limitado e de atuação desigual, tornou-se nas últimas décadas um ator político central. Esse ativismo judiciário tem sido pouco usado para pensar a reforma do Poder Judiciário frente a problemas como a composição elitizada e sua distância da sociedade civil, que reforçam sua baixa permeabilidade social e reduzida accountability democrática (Eli Diniz, Renato Boschi, Alysson Leandro Mascaro). Sua atuação em temas urbanos revela padrões de seletividade: rigidez sobre populações vulneráveis e condescendência com agentes econômicos e políticos privilegiados. Dois grandes casos em 2025 ilustram isso: Vila Moinho, em São Paulo, e Vila Esperança, em Vila Velha-ES.

Dessa forma, poderia o Judiciário brasileiro se comprometer abertamente com a utopia da imparcialidade, da eficiência, do comprometimento com o bem comum, da promoção da cidadania e do fortalecimento dos direitos humanos como estratégia de popularização e de fortalecimento moral e social daquele na vida cotidiana do país. Com essa atitude institucional e política, pode-se bloquear de maneira efetiva o imaginário político e a visão jurídica de que o Poder Judiciário é o mais técnico, imparcial e neutro da República — visão esta que tem se constituído em estratégia de justificativa e legitimação do encastelamento, insulamento e indiferença seletiva em relação às demandas da sociedade, especialmente das populações mais vulneráveis política, social e economicamente (Ângela de Castro Gomes, Erik Voeten, Adriana Campos, Emília Viotti da Costa).

Apesar desse quadro de contínuo desencontro entre justiça, direitos e poder judiciário e espaços habitacionais precários podemos apontar que existem diversas iniciativas, como já fizemos,  por parte dos diversos atores e instituições que configuram o campo jurídico, são as ações institucionais, administrativa, profissionais e políticas, por vezes individuais e coletivas, que se orientam em torno  da democratização do poder judiciário e de sua reaproximação da sociedade civil, fonte e origem do seu poder, promovendo a cidadania, o garantismo e dos direitos fundamentais (Conselho Nacional de Justiça).  Nesse contexto, cabe destacar que o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), orientando princípios legais e normativos internacionais e nacionais, com o intuito maior de demover, mesmo que lentamente, os obstáculos que impedem o acesso pleno à Justiça e a compreensão das leis pelas populações mais vulneráveis e distantes dos círculos de poder. Também, recentemente nesse caminho de promover e fortalecer a linguagem simples, direta, inclusiva, compreensível e acessível (boa técnica, clareza, precisão e brevidade) como instrumento de acesso, transparência e controle das instituições públicas e suas ações institucionais e governamentais, rompendo o código fechado dos notáveis iluminados do Poder Público e o sequestro dos direitos e da soberania popular, o Governo Federal sancionou a “Política Nacional de Linguagem Simples nos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta de todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” [1] (Lei nº 15.263, de 14 de novembro de 2025).

Essas medidas estão para além da questão do acesso e da produção de linguagem sensível. Elas também significam a abertura de um campo de experimentação social e política que visa a neutralização, ou colocar entre parênteses, a percepção elitista e hierarquizada das camadas populares ou daqueles que não compartilham com seu mundo social, político e econômico, infelizmente, ainda compartilhada por funcionários públicos e parte da elite política e da elite dirigente, de que aquelas estão mergulhadas e forjadas na menoridade cívica, dependência, hipossuficiência, cuja solução, mesmo que controversa e em choque com a ordem constitucional brasileira, segue pelo apelo da tutela e do paternalismo como instrumento de ingresso ao Império da Lei.

Resta lembrarmos neste final de texto comemorativo e reflexivo que a antiga Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei nº 4.657/42 prefigurava e prefigura como horizonte de expectativa do agir jurídico em relação à aplicação do direito e ao princípio segundo o qual sua formulação não pode ser exercida nem aplicada de forma isolada do contexto social, econômico, político e cultural em que estão inseridas as instituições jurídicas e seus atores.. O   Art. 5º (LINDB), de forma direta e draconiana, estabelece que:  “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”  E com  possibilidade de um bem comum podemos, assim afirmar e apontar, na República Nova é acesso à moradia digna, trabalho digno e  cidade justa, sustentável, plural e inclusiva.

Igor Vitorino da Silva é Professor, historiador e mestre em História pelo  Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Paraná (/PPHIS/UFPR). Pesquisador Associado Externo do LHIPI – UFES e do LHIPU – IFES/Campus Vitória-ES, além de colaborador do portal Agência Nacional de Favelas-ANF, participante Laboratório de estudos em História do Tempo Presente e colaborador da Rede BrCidades.

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