Quem chega à comunidade da Vila da Barca, em Belém, pela Rua Professor Nelson Ribeiro se depara com um cenário de obras, fluxo de carros pesados e danos na pista, que geram acúmulo de água da chuva, poças de lama e dificuldades de mobilidade.

A Vila da Barca é considerada uma das maiores favelas de palafitas da América Latina, com mais de 7 mil habitantes. As casas de palafitas são moradias precárias construídas sobre estacas de madeira acima de territórios alagados. Na Vila da Barca, cerca de 80% das moradias são de palafitas.

A comunidade é vizinha dos bairros mais ricos da capital paraense. Um deles é o Reduto, bairro da Avenida Visconde de Souza Franco, às margens do canal da Doca, onde os apartamentos chegam a R$ 13 milhões.

será uma das grandes beneficiadas pela COP30, a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), que ocorrerá em Belém, em novembro deste ano. A Visconde de Souza Franco recebe as obras da Nova Doca, uma das apostas do Governo do Estado para o megaevento, com investimento de R$ 310 milhões.

O projeto prevê uma série de melhorias para o saneamento da Doca: a água do canal será despoluída, drenagem, substituição de comportas para controle de água de maré para evitar inundações e tubulação de água potável. Também já começaram as obras do novo Sistema de Esgotamento Sanitário da Doca.

Mas não é o nobre bairro do Reduto que ficará com os rejeitos produzidos por seus moradores e comércios.

O esgoto da Doca será despejado na Vila da Barca, onde o governo de Helder Barbalho (MDB) desapropriou um prédio recentemente para cumprir a função. O decreto de desapropriação foi publicado no dia 17 de dezembro de 2024 e assinado por Barbalho.

Nos arredores dos espaços, moradores com portas e janelas fechadas, mesmo em meio ao calor de Belém. A estratégia foi adotada em razão da grande quantidade de poeira no local, que causa problemas de pele e respiratórios à população. A umidade e entulhos também ajudam na proliferação de ratos e insetos.

Prédio desapropriado pelo Governo do Estado para receber as obras do Sistema de Esgotamento Sanitário da Doca

A Vila da Barca também recebe o chamado “bota-fora” da Nova Doca. Na Nelson Ribeiro, o fluxo de caminhões com a logo do Governo do Pará é intenso até um terreno aberto, rodeado por moradias, onde é jogada a lama, os entulhos e demais resíduos da obra.

A intensa circulação de carros pesados, em um local onde a grande maioria dos moradores não tem veículo próprio, causou diversos buracos na pista de bloquete, pavimento que não sustenta o fluxo de caminhões. Os danos prejudicam a mobilidade sobretudo de idosos, crianças, ciclistas e pessoas com deficiência.

A situação aprofundou ainda mais o cenário de péssimas condições sanitárias da Vila da Barca, que não tem esgoto tratado e receberá o esgoto da Doca.

A comunidade sofre de moradias precárias, falta de água potável, falta d’água nas torneiras, esgoto a céu aberto, fiação elétrica exposta e coleta e despejo irregular de lixo.

O Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que Belém é a capital mais favelizada do Brasil, com 57% de sua população em favelas, mais de 745 mil pessoas. Desse total, a favela da Bacia do Una-Telégrafo, que abrange a Vila da Barca, aparece como a quarta maior, com 24 mil moradores.

Terreno aberto rodeado de moradias recebe o “bota-fora” da obra da Nova Doca

Moradores da Vila da Barca sofrem com poeira e proliferação de doenças

Enquanto as discussões ambientais a nível mundial se acirram com a proximidade da COP30, os moradores da cidade-sede do evento, prejudicados pelas obras, clamam pela retomada de suas rotinas.

A enfermeira Socorro Lobato, 61, mora em um conjunto habitacional que fica bem em frente ao terreno utilizado para despejo dos entulhos da Nova Doca. Ela relata que, com a chegada dos caminhões, os moradores próximos são obrigados a conviver com o excesso de poeira, que prejudica a saúde da população.

“As crianças vivem gripadas e com doenças de pele por causa da poeira. Agora a nossa preocupação é que o inverno facilita a proliferação de mosquitos, dengue e doenças tropicais. A gente tem que ficar em alerta, passando repelente, álcool, remédio e o que mais for possível para se proteger”, diz a moradora.

A obra forçou a comunidade a adaptar a rotina para evitar mais prejuízos. “A gente passa mais tempo com a porta e janelas de casa fechadas do que abertas, ou vai para a parte de trás da casa que é menos poluída”, reclama.

“Esperamos que, depois que terminar essa obra da COP, seja feita uma limpeza no espaço e utilizem o local para fazer um parque ou alguma outra coisa para a melhoria da comunidade”.

Socorro Lobato mora em um conjunto habitacional em frente ao terreno que recebe o “bota-fora” da Nova Doca e é diretamente impactada

A pedagoga Joelma Borges, 52, que há 28 anos vive na Vila da Barca, é moradora de uma das passagens que cortam a Rua Professor Nelson Ribeiro. Ela passava pela via com dificuldades na bicicleta para comprar o açaí do almoço da família, quando deu entrevista à reportagem.

“Está complicado. Antes a gente via as crianças brincarem na rua, os idosos nas frentes de suas casas e tudo isso foi retirado, invadiram a nossa privacidade. Para os ciclistas, também está ruim, porque o movimento de carros está muito intenso e a pista toda cheia de buracos, não era assim antes”, conta.

Borges conta que as obras trouxeram um impacto geral no modo de vida da comunidade. “Mudou muito a rotina daqui. E eu me pergunto: por que aqui? Por que a Vila da Barca se a obra e o esgoto não são para atender a nossa comunidade? Estamos muito insatisfeitos”, dispara.

Ciclista, Joelma Borges reclama do fluxo de caminhões e dos danos na pista

Sistema de esgoto para bairro rico em comunidade sem tratamento de esgoto

A servidora pública Wanda Lopes, 53, nasceu na Vila da Barca e vive em uma casa de palafita em uma área mais distante das obras, porém a zona mais precária da comunidade.

Por lá, os moradores chegam a suas casas por pontes de madeiras sobre um grande esgoto sem tratamento, que fica a céu aberto às margens da Baía do Guajará, onde o lixo é despejado irregularmente e a encanação não é trocada há quase 40 anos.

Os relatos são de água contaminada, proliferação de doenças e pragas e cheias nas casas quando a maré sobe.

“A gente sofre com várias situações, desde proliferação de ratos e caramujos até casos de doenças, como barriga d’água, malária, dengue, chikungunya e problemas de pele. As nossas crianças constantemente têm diarreia, vômito… Eu mesmo já tive que fazer tratamento para verme”, lamenta Wanda.

Zona mais precária da Vila da Barca expõe contradições da obra

“Aqui a gente tem um grande problema de contaminação da água e não tem para onde fugir. No meu caso, eu compro água mineral, mas muitos moradores não têm as mesmas condições e precisam beber a água que vem da torneira. E mesmo quem não bebe, usa essa água para tomar banho e acaba se contaminando”, relata a moradora.

Além da água ser suja, em parte das casas a água sequer chega na torneira, em razão do estado do encanamento. Por esse motivo, a maioria dos moradores se mobilizou para comprar caixa d’água e bombas próprias.

A fiação exposta na frente das casas também é uma preocupação. Em setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções destruiu 21 casas e deixou 26 famílias desabrigadas no local. O receio é constante com as condições dos fios, que também são antigos.

“Sorte que não chegou para cá [o incêndio de 2018]. Se chegasse para cá, não sobraria uma casa”, relembra Wanda. “Mas sempre esses fios pegam fogo. Nas últimas vezes, a gente mesmo conseguiu apagar antes de ter maiores estragos”.

Fiação exposta e antiga também é uma preocupação da comunidade

Fiação exposta e antiga também é uma preocupação da comunidade

Segundo a moradora, todos esses problemas já faziam parte da realidade da comunidade, mas se intensificaram depois do início das obras do governo estadual.

“Com a chegada desse esgoto na Vila da Barca, com toda a quantidade de lixo que já existe na comunidade, a minha preocupação é: como vai ficar a nossa situação?”, questiona Lopes.

Ela também apela para que a própria comunidade evite despejar lixo nos rios ou fora dos horários previstos para a coleta. Segundo Wanda, a prefeitura faz o recolhimento dos resíduos três vezes por semana, mas sempre os resíduos voltam a se acumular.

“Tem períodos, quando a maré está muito grande, que a gente faz um mutirão com as crianças aqui para recolher o lixo. Da outra vez, a prefeitura veio, conseguiu tirar um pouco do lixo, mas vai e volta… Também falta consciência na população”, apela.

Pontos de grande concentração de lixo são comuns na área

Comunidade não foi consultada sobre a obra e moradora denuncia ‘racismo ambiental’

Apesar dos transtornos sofridos pela Vila da Barca com as obras da Nova Doca, a população não foi sequer consultada sobre o recebimento dos entulhos ou do sistema de tratamento de esgoto do bairro vizinho. De acordo com a educadora popular Suane Barreirinhas, 37, os moradores não têm nenhuma informação sobre o projeto.

“Eles só chegaram e colocaram a placa do esgoto da Doca, sem consulta prévia, sem informar o que vai acontecer ou apresentar o projeto para a comunidade. Esse projeto foi imposto, mas a gente está se movimentando para pelo menos saber o que é que a comunidade vai receber”, diz.

Para Suane, que também é liderança da comunidade e coordena projetos sociais na Vila, o caso evidencia o racismo ambiental. Ela lembra que o presidente da COP30, André Corrêa do Lago, ignorou o tema em carta direcionada à comunidade internacional com os desafios do evento.

“É importante entender que falar em adaptação climática é falar em saneamento. Na carta do presidente da COP, ele não cita o racismo ambiental. Quando o próprio presidente não reconhece a prática, ele abre margem para que ela seja reproduzida. O que a gente está vivendo na Vila da Barca é um caso de racismo ambiental”.

Ela adianta que a comunidade se organiza para registrar a denúncia. “Vamos fazer uma denúncia na delegacia e tentar outros caminhos também. Estamos buscando a ministra [da Igualdade Racial], Anielle Franco, para denunciar a prática de racismo ambiental mesmo”, conclui a educadora popular.

Suane Barreirinhas: ‘O que a gente está vivendo na Vila da Barca é um caso de racismo ambiental’

A Vila da Barca

A Vila da Barca existe há quase 100 anos. Considerada uma das maiores comunidades em palafitas da América Latina, a Vila é localizada no bairro do Telégrafo, com cerca de 7 mil moradores, sendo mais da metade dessa população em casas de palafitas. A comunidade é banhada pela Baía do Guajará.

Atualmente, a Vila da Barca tem uma Unidade Básica de Saúde (UBS), projetos habitacionais, a Associação de Moradores, a Capela de Nossa Senhora dos Navegantes – a padroeira da comunidade, a Instituição Educacional Curro Velho e projetos sociais, como a Barca Literária e o Museu Memorial Vila da Barca.

Unidade Básica de Saúde (UBS) atende exclusivamente os moradores da Vila da Barca

O Projeto de Habitação da Vila da Barca foi elaborado em 2003 pelo ex-prefeito Edmilson Rodrigues (PT). O projeto previa a construção de 618 moradias, comércios, igrejas, museu, centro comunitário, escola de samba, creche e uma feira ou mercado.

A gestão de Duciomar Costa (PTB) entregou as primeiras 136 unidades habitacionais do projeto em 2007 e mais 12 apartamentos em 2010.

No governo Zenaldo Coutinho (PSDB), oito apartamentos foram entregues em 2017. Em 2019, o projeto foi reformulado junto à Caixa para a redução de custos. Com isso, a Etapa 2, que previa a construção de 452 habitações e 44 comércios, foi reduzida para 128 moradias e 28 comércios.

Em dezembro de 2024, Edmilson Rodrigues (agora pelo Psol), de volta à Prefeitura de Belém para cumprir o terceiro mandato, entregou 122 apartamentos e oito comércios referentes às etapas 2 e 3 do projeto.

A gestão do psolista deixou obras em andamento para a construção de mais 76 unidades habitacionais e a realização de obras de intervenção urbanística com recursos garantidos pela Caixa, segundo informou a assessoria de Rodrigues.

De acordo com informações do site oficial da Prefeitura, as obras foram retomadas após uma operação de crédito com a Caixa no valor de cerca de R$ 5,7 milhões. No total, foram investidos cerca de R$ 19 milhões, provenientes da Prefeitura de Belém e do Governo Federal, na construção dos apartamentos das etapas 2 e 3.

As obras das 76 unidades habitacionais foram iniciadas ainda no governo Edmilson e seguem em andamento, de acordo com a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) da atual gestão de Igor Normando (MDB), com previsão de entrega para 2026. Entretanto, a comunidade relatou à reportagem que as construções foram paralisadas.

Obras do Projeto Habitacional da Vila da Barca se estendem há quase 20 anos

Locais para instalação de redes de esgoto e ‘bota-fora’ devem atender exigências

A reportagem procurou especialistas na área de saneamento e planejamento urbano para comentar o cenário vivido pelos moradores da Vila da Barca. O engenheiro sanitarista Rodrigo Rodrigues conceituou os termos “sistema de esgotamento sanitário” e “bota-fora”.

“A rede de esgoto é um sistema de tubulações utilizadas para encaminhar os esgotos sanitários urbanos para uma estação de tratamento de esgoto (ETE), onde estes efluentes sanitários serão tratados e, posteriormente, lançados no meio ambiente sem os impactos ambientais que o lançamento de esgotos diretamente no solo ou na água causariam”.

“Já a área de bota-fora é um local externo onde são depositados materiais excedentes de cortes de solo ou terraplenagem em obras de infraestrutura, como redes de esgoto, de água ou de drenagem urbana”.

O profissional ressaltou que os locais para instalação dos sistemas “devem ser locais com licenciamento ambiental vigente, assim como as empresas que prestam o serviço devem ser licenciadas, para garantir que não haja impactos ambientais de contaminação do solo e da água”.

Geógrafo especialista em Geografia Urbana, Thiago Sabino diz que o local adequado para abrigar resíduos e rejeitos de grandes obras deve ser longe de moradias e destaca as condições sanitárias da própria Vila da Barca.

“A região da Doca está recebendo um vultuoso investimento para tratamento de esgoto, que pretende levar o emissário para ser tratado na ETE do Una, que fica próximo a Vila da Barca, além das melhorias na urbanização e paisagismo ao longo do entorno da avenida. Contraditoriamente, a região da Vila da Barca, que sofre a ausência e irregularidades de serviços urbanos básicos, não será contemplada”.

“Fica evidente a prioridade da intencionalidade e dos investimentos que acabam por priorizar uma região que sempre foi privilegiada e que tem o valor do m² mais caro da cidade. Enquanto isso, a Vila da Barca não possui sistema de abastecimento de água regular, não possui sistema de tratamento de esgoto, carece de um sistema eficiente de coleta de resíduos sólidos, sem falar de outras necessidades”, avalia Sabino.

Sobre as necessidades de saneamento básico da Vila da Barca, Rodrigo Rodrigues lembra que Belém possui apenas 6,28% dos esgotos coletados e somente 2,38% são tratados. O dado deixa a capital paraense entre as dez piores cidades brasileiras em saneamento, segundo pesquisa do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, de 2023.

“Investir em redes de esgoto sanitário é investir em saúde pública, proteger os rios e o meio ambiente. Hoje todo o esgoto não tratado segue direto para os rios e para o solo, contaminando-os e trazendo graves problemas à saúde coletiva dos habitantes de Belém”, conclui o engenheiro sanitarista.

Belém está entre as dez piores cidades brasileiras em saneamento

Vereadora denuncia descarte de resíduos da Nova Doca na Vila da Barca

A vereadora Vivi Reis (Psol) apresentou uma denúncia à Câmara Municipal de Belém sobre o descarte de resíduos das obras da Nova Doca na Vila da Barca.

No requerimento protocolado na quarta-feira (19), ela afirma que a ação compromete a qualidade de vida da comunidade, com impactos à saúde dos moradores e ao meio ambiente e configura um caso de racismo ambiental.

“A destinação de poluição e degradação ambiental para territórios ocupados predominantemente por populações negras e pobres revela uma dinâmica discriminatória e excludente na gestão urbana e ambiental da cidade”, diz a denúncia.

“O racismo ambiental também se manifesta na omissão do poder público em relação a essas práticas, permitindo que grandes obras avancem sem mecanismos eficazes de mitigação dos impactos para comunidades vulneráveis”.

Outro lado

A reportagem da Alma Preta procurou o Governo do Estado e a Secretaria de Estado de Obras Públicas do Pará (Seop) para comentar os relatos de que a comunidade não foi consultada sobre a chegada das obras da Nova Doca, os danos à saúde e à rotina dos moradores e os prejuízos na pista.

Quanto ao acúmulo de lixo em pontos irregulares na Vila da Barca, a Secretaria Municipal de Zeladoria e Conservação Urbana (Sezel) informou que vai solicitar à concessionária de limpeza que faça um mutirão em breve na comunidade.

Já a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) disse que o tratamento de esgoto implantado para os moradores do Conjunto Habitacional está funcionando normalmente. Sobre os problemas de abastecimento de água, a Cosanpa ressaltou que a zona mais precária da comunidade só poderá ser atendida após a regularização do local.

A concessionária de energia Equatorial Pará foi questionada sobre a fiação exposta. Em nota, a Equatorial informou que os cabos que constam nas imagens são de telecomunicações, como internet, TV a cabo, fibra ótica e telefonia fixa. A empresa pontuou que as ações de instalação, substituição, manutenção e retirada dos cabos são de responsabilidade das empresas que oferecem os serviços.

Sobre o Projeto Habitacional, a Secretaria Municipal de Habilitação (Sehab) esclareceu que as obras da terceira etapa do conjunto não estão paralisadas. A pasta informou que a previsão de entrega das novas unidades habitacionais é 2026, mas não disse o mês.

Também foi solicitada nota à Caixa, financiadora do projeto, sobre a fiscalização da aplicação dos recursos.

O espaço segue aberto.

*Por Fernando Assunção / Alma Preta

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Last Update: 21/03/2025