Fatos, Palavras e Coisas: Fogo na Aldeia!

por Nathan Caixeta

Conta o jornalista esportivo Flávio Prado que, nos preparatórios para a transmissão da Copa de 1982 realizada na Espanha, a TV Globo, detentora da exclusividade de transmissão da Copa (obtida em 1978), reunia entre seus caciques da narração Luciano do Valle e Osmar Santos, além do jovem Galvão Bueno, comandados por Armando Nogueira.

A contenda na tribo para a definição do narrador principal para a Copa chegou ao conhecimento do narrador Silvio Luiz, à época na Rede Record. O bem humorado e inconfundível Silvio disparou em tom de gozação com a concorrência: “tá pegando fogo na aldeia!”

A disputa recente entre Bráulio Borges e Alexandre Schwartsman pelos jornais sobre a pertinência do Teto de Gastos derramou labaredas na aldeia da intelligentsia ortodoxa.

O tema em questão chama menos atenção do que a disputa retórica dos caciques. Ao que parece, ambos disputam os fatos e os números, desprezando as palavras e as coisas.

A dupla toma os “números” como representações dos “fatos”, formas sensíveis da realidade existente. Às palavras, ou ao argumento linguístico, é relegada a tarefa da expressão e da exteriorização da realidade percebida.

Não ocorre aos sábios que os tais “fatos” não são propriedades da percepção, como a doutrina da razão pura induz acreditar. O “cogito”, ensina Foucault em seu “As Palavras e as Coisas”, percebe a realidade segundo sua estruturação pretérita, segundo os conceitos estabelecidos que permitem a captura de determinado conjunto de acontecimentos, ou de relações entre homens e entre os homens e as coisas.

Aquilo que entendemos por “fatos”, ordenados e qualificados numericamente ou não, só existem como tais na medida em que formam “os elementos de um sistema significante”, isto é, que enquadram a “realidade” em determinado conceito.

“Déficit primário”, “dívida”, “PIB”, “inflação”, são conceitos que registram determinados acontecimentos da realidade econômica. São conceitos tomados em termos de suas funções representativas e, portanto, dependentes da significação que o discurso de “quem fala”, ou neste caso, de “quem escreve”, atribui a eles.

Na aldeia dos “moços do cálculo”, os números, ou fatos, extrapolam a significação, são formas autônomas que municiam a ação humana. São, eles mesmos, as formas ideais e reais dos acontecimentos, lidas segundo uma estrutura conhecida e plenamente compartilhada de “significantes”, produtos e produtoras da racionalidade suposta nos modelos de equilíbrio.

Não espanta que a atribuição dos “fatos” apareça como força argumentativa superior e as “palavras” como costuras frágeis e ingênuas. Existindo uma única e indivisível verdade, expressa por fatos e números, o discurso é abandonado ao dever da objetivação exterior.

Já apagados os “quem” que participam da construção dos fatos, suas relações e interrelações, agora estão descartados aquele que escreve e o que que lê, na fusão entre o ser que produz, se relaciona com outros seres, e os insumos linguísticos que permitem as relações.

Transferidas as propriedades da linguagem para a máquina impessoal que conecta os conteúdos empíricos aos conceitos inscritos na tábua da razão econômica, os impulsos do que escreve e do que lê são dispensáveis. São autômatos, seguem o influxo dos fatos, primeiro decifrados e, agora, informados, através dos números.

Neste expediente, o tema do Teto de Gastos não é discutido nos termos de suas reais consequências, dos atos linguísticos que afiançam uma determinada jurisprudência, autorizando a criação e destruição de relações reais (de gasto e renda) entre o Estado e os cidadãos, mas como produto de uma necessidade factual, percebida e transmitida pelos atos voluntários da realidade que mostra e da ciência que vê.

No Nascimento da Biopolítica, Foucault arriscou perscrutar a consciência das gentes dos mercados a respeito de sua participação no processo histórico-social. Tal consciência está registrada integralmente nos cânones da economia política e de sua cria cientifica. A teoria econômica “… que foi edificada no discurso dos economistas e se formou na cabeça deles”, indica que:

“Na medida em que, através da troca, o mercado permite ligar a produção, a necessidade, a oferta, a demanda, o valor, o preço, etc., ele constitui nesse sentido um lugar de veridição, um lugar de verificabilidade/falsificabilidade para a prática governamental”.

Os interesses privados que se articulam nas esferas de circulação da riqueza se transformam em juízes da ação governamental, validando e prescrevendo as estruturas jurídico-políticas que organizam o interesse público.

A veridição é, por um lado, explicita e se encontra registrada nas reinvindicações de economistas e burocratas, responsáveis por introjetar os princípios de veridição nas estruturas governamentais; e, por outro, avança através do cotidiano, nos sem número de atos de despotismo que envolvem a prática da liberdade oferecida pelo mercado.

A “verdade”, garantida pelo mercado e validada pela teoria econômica, oferece a noção de justiça, deslocando-a da esfera pública e fixando-a no ato da troca. A liberdade para “trocar”, sejam coisas por dinheiro, dinheiro por trabalho, etc., é uma forma ideal que se materializa através da veridição, separando os que tem acesso aos meios de vida e os que experimentam as doses abstratas de liberdade, inscritas nos “mecanismos jurisdicionais” do direito privado e que escorrem dos instrumentos governamentais de estímulo à concorrência.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

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Last Update: 10/03/2025