Fatalismo tecnológico x Esperança filosófica, por Fábio Ribeiro

Fatalismo tecnológico x Esperança filosófica, ou como Hannah Arendt deve invadir o universo das IAs

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Manfred Back e Luiz Gonzaga Belluzzo publicaram uma excelente análise econômica acerca da bolha financeira da IA, relacionando-a historicamente à crise das tulipas (fenômeno que ocorreu na Holanda entre 1636-1637). Acredito que é possível expandir o raciocínio de ambos em duas direções.

As grandes empresas de tecnologia norte-americanas (vulgarmente chamadas de Big Techs) não são apenas negócios. Elas são a infraestrutura pública e privada dos EUA, pois fornecem produtos e serviços tanto para agências governamentais quanto para bancos e outras empresas privadas tradicionais. Se uma delas falir devido ao estouro da bolha da IA, o resultado não será apenas prejuízo para os acionistas: o dano será estrutural, pois os serviços públicos e privados que dependem de Big Techs podem ser interrompidos ou descontinuados.

Nesse sentido, podemos dizer que a bolha financeira da IA ​​é muito mais preocupante do que a bolha das empresas.com (1994-2001) ou mesmo a bolha do subprime (2003-2008). Estamos nós diante de situações semelhantes com consequências diferentes? Talvez a resposta seja sim.

É possível supor que nenhuma tragédia acontecerá se a OpenAI falir. Apesar de supervalorizada, essa empresa ainda não presta serviços insubstituíveis às agências governamentais e privadas norte-americanas. Mas a falência de qualquer outra grande empresa de tecnologia (Microsoft, Amazon, Google, Apple e Facebook) seria pior do que a falência de um banco. Afinal, até mesmo os bancos saudáveis ​​que não investiram em IA compram serviços de nuvem (espaço de computação em data centers) dessas empresas. Isso para não mencionar aqui que o risco sistêmico não afeta apenas os EUA. Todos os países que compram produtos e serviços de grandes empresas de tecnologia americanas podem ser afetados, incluindo o Brasil.

O Estado norte-americano salvou os banqueiros quando a bolha do subprime estourou em 2008. Com muito mais razão ele não poderia deixar de salvar uma Big Tech como Microsoft, Amazon, Google, Apple e Facebook, cuja falência poderá paralisar tanto o governo quanto a economia dos EUA. A questão então é como isso poderá ser feito?

Nos dias de hoje, os EUA estão mais endividados do que estavam em 2008. A China financiou a dívida pública norte-americana em 2008 amenizando os efeitos globais da crise do subprime. Mas não me parece que os chineses farão algo semelhante desta vez. Especialmente porque as Big Techs chinesas têm sido ferozmente combatidas pelo governo dos EUA. Portanto, a Tulipa Artificial referida por Manfred Back e Luiz Gonzaga Belluzzo tem tudo para se transformar numa verdadeira bomba atômica artificial com efeitos econômicos planetários.

Se supormos que a explosão da bolha financeira de IA será contornada rapidamente com prejuízo apenas para alguns especuladores do Vale do Silício e sem causar a falência uma Big Tech da qual depende o funcionamento da infraestrutura pública e privada dos EUA outro cenário de desenha. Nesse caso, a retomada da economia se daria com um mínimo de dano estrutural e com um aumento substancial dos investimentos na automação e na robotização de mais e mais atividades econômicas.

O sonho dos engenheiros de TI e das Big Techs de surfar na onda posterior à bolha financeira da IA para ganhar muito dinheiro com IAs, robôs, armas autônomas, self-driving cars, automação e maior robotização na indústria, serviços, agricultura etc, não começará a se dissipar quando ocorrer uma rebelião de máquinas do tipo Skynet. Aqueles que incendiarão os robôs, os centros de dados e as novas empresas robotizadas serão as dezenas de milhões de pessoas comuns que o sistema econômico já começou a descartar e que serão descartadas com muito mais rapidez num futuro próximo.

Algumas pessoas comparam o que ocorrerá ao movimento ludita que ocorreu no início do século XIX. Pessoalmente, estou convencido de que é um erro fazer essa comparação.

A introdução dos teares mecânicos afetou apenas os tecelões ingleses em um contexto em que milhões de trabalhadores de outras atividades não foram afetados. Pescadores, carpinteiros, mineiros, marinheiros, trabalhadores da construção civil, tanoeiros, construtores de barcos, tratadores de cavalos, carroceiros, agricultores, pecuaristas, comerciantes, ferreiros etc, não perderam seus empregos por causa dos teares mecânicos. Robôs e IA afetarão quase todas as pessoas numa gama imensa de atividades, e o resultado será muito mais devastador para a sociedade.

Quando um pequeno contingente da sociedade reage à introdução de uma inovação tecnológica, isso não coloca em risco a civilização. O mesmo não pode ser dito quanto a maioria da população é afetada. Ademais, o contexto em que uma crise acontece é extremamente importante porque ele determina de certa maneira como o problema será tratado pelas autoridades.

Os Estados não responderão à imensa crise humanitária que ocorrerá criando algum tipo de auxílio econômico em larga escala para dezenas de milhões de pessoas inúteis que constituirão a nova classe marginalizada da sociedade. Isso contradiz completamente a tradição neoliberal que se consolidou cada vez mais em todos os países ocidentais nos últimos 50 anos. A resposta mais provável do Estado será a violência policial legal e eventualmente letal com a utilizando tecnologia de IA, drones de vigilância e armas autônomas.

Hannah Arendt disse que a cada nascimento de um ser humano, o mundo se renova, e que essa renovação natural está repleta de possibilidades para o aprimoramento cultural, ético, científico e humanitário da civilização. Ela também rejeitou um governo mundial, argumentando que o pior governo é o governo de ninguém, ou seja, um governo tão distante do cidadão que não precisa mais encarar ou sequer reconhecer a existência de cada membro da população.

As IAs não são seres humanos. Elas podem ser programadas para matar sem considerar quaisquer danos colaterais às pessoas inocentes (bebês e crianças incluídas). Isso já está acontecendo em Gaza, onde dezenas de milhares de crianças e até bebê palestinos foram mortos precisamente porque os israelenses usam IAs para definir alvos e realizar ataques com mísseis.

Um governo de IA não será melhor que um governo humano, pois máquinas de calcular probabilidades vasculhando imensos bancos de dados não compreendem o que são ódio, medo, frustração, esperança e outros sentimentos humanos individuais. Esses sentimentos podem se espalhar, ganhar força e desestabilizar qualquer sistema político.

Nesse contexto, um cenário tipo Skynet teria uma virtude: nele os humanos defenderiam sua peculiar humanidade organizando-se para lutar contra as máquinas. O cenário futuro que emerge é o da desumanização da maioria da população, com uma separação social total entre ricos e pobres, violência estatal automatizada e uma profunda melancolia que fará com que as pessoas que comporão a nova classe marginalizada simplesmente se recusem a ter filhos.

A civilização entrará em declínio porque nenhuma renovação poderá ocorrer. E mesmo quando uma criança nascer isso será visto apenas como a perpetuação cultural, ética, científica e desumana de uma existência miserável que não merece ser vivida. Quando olho para esse futuro possível só consigo ver a imagem das mulheres indígenas escravizadas no Brasil do século XVI, que preferiam matar seus filhos recém-nascidos para evitar que fossem escravizados pelos brutais colonizadores portugueses. Hannah Arendt ficou obsoleta porque ela falou de uma esperança que está sendo expulsa do mundo pelos engenheiros de TI e Big Techs.

Eu disse que Hannah Arendt ficou obsoleta? Não, talvez ela tenha se tornado mais essencial agora do que nunca.

Arendt disse que a Política é o espaço criado voluntariamente pelos seres humanos para possibilitar a coexistência pacífica entre pessoas desiguais. Esse espaço pode ser expandido ou reduzido, mas também pode ser destruído. Segundo ela, a guerra não poderia ser a continuação da Política, porque o conflito armado apenas cria um deserto entre campos inimigos irreconciliáveis.

As IAs podem expandir o deserto e reduzir o que é humano no espaço Político. Essa tecnologia jamais será capaz de possibilitar a coexistência pacífica entre pessoas desiguais. Ela reforça hierarquias criadas artificialmente e destrói qualquer possibilidade de igualdade perante a Lei. As IAs não humanizarão o Estado, mas podem estruturar um novo tipo de Estado cuja principal característica será proteger um sistema econômico e político incapaz de manter qualquer conexão com as necessidades humanas dos seres humanos.

Quando alguns especialistas em direito começarem a afirmar que as IAs têm ou terão personalidade jurídica e que os robôs devem adquirir direitos, a Política como a conhecemos deixará de existir e os direitos humanos serão extintos. Recorrer a Hannah Arendt, portanto, pode ser a única maneira de lutar contra as Big Techs e suas IAs, para impedir que os engenheiros de TI criem um deserto no ciberespaço, permitindo que a infelicidade matematizada invada e domine total e permanentemente o mundo real.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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