Caída do céu no colo dos deputados e senadores há quatro anos, desde que Jair Bolsonaro decidiu abrir mão de vez do controle sobre os recursos federais e se dedicar em tempo integral a maquinações golpistas, a destinação anônima de verbas oriundas de emendas parlamentares, o popular “orçamento secreto”, continua a operar milagres pelo Brasil mesmo durante o governo Lula. Que o diga o vigilante Maurício Gomes Coelho. Apesar do magro salário de 2,4 mil reais mensais, ele é dono de uma empresa com capital social de 8,5 milhões de reais e possui contratos com prefeituras cearenses para prestação de serviços de logística e transporte escolar que somam 320 milhões de reais.
Segundo as investigações da Polícia Federal sobre o desvio de verbas do orçamento secreto no Ceará, Coelho é peça central de um esquema que irrigou ilegalmente, durante a campanha do ano passado, 51 candidaturas para prefeito no estado. O vigilante, diz a PF, atua como laranja do prefeito eleito de Choró, Carlos Alberto Queiroz, conhecido como Bebeto do Choró. Este, por sua vez, seria próximo ao deputado federal Júnior Mano, do PSB, identificado no inquérito como o “padrinho” das emendas parlamentares. Mesmo tendo sido eleito no município de 12 mil habitantes, Bebeto do Choró teve sua posse suspensa pela Justiça Eleitoral por compra de votos e atualmente é considerado foragido, após ter sido acusado de envolvimento com o braço cearense da organização criminosa Comando Vermelho.
A gravidade e a repetição de fatos como esse Brasil afora jogam um bocado de lenha na fogueira das investigações solicitadas pelo Supremo Tribunal Federal sobre o mau uso das verbas oriundas do orçamento secreto. Sob a batuta de Flávio Dino, o STF parece disposto a travar com o Congresso o enfrentamento que o Executivo não parece ter forças para realizar. Por ordem do ministro, permanece bloqueada neste início de ano a maior parte dos 6,9 bilhões de reais em emendas de comissão indicados em dezembro pela Câmara e pelo Senado, ao passo que as investigações policiais devem apertar o cerco sobre figuras como o empresário do ramo de limpeza urbana José Marcos Moura, conhecido no meio político como Rei do Lixo. Apontado pela PF como o “distribuidor” de recursos desviados do orçamento secreto – o valor movimentado pelo grupo ultrapassa a cifra de 1,4 bilhão de reais – e integrante da Executiva nacional do União Brasil, Moura está preso desde 10 de dezembro.
A pedido da AGU, o magistrado liberou apenas as verbas da Saúde
Outra ponta da investigação mira as “mudanças de trajeto” das verbas do orçamento secreto. Nas emendas anônimas apresentadas pelas comissões no fim do ano, por exemplo, a rubrica “novas indicações”, aquelas feitas de última hora, atingiu o montante de 180 milhões de reais, sendo 40% do valor destinado a municípios de Alagoas, estado do presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP. Assim sendo, as atuais diligências da PF têm enorme potencial para atingir os dois principais arquitetos do orçamento secreto. Além de Lira, elas recaem também sobre o senador Davi Alcolumbre, que se prepara para voltar à presidência do Senado no mês que vem e, embora não seja citado no inquérito, possivelmente terá de explicar à Justiça sua eventual relação com o Rei do Lixo, seu colega na direção do UB.
Além das investigações em curso, as ações que chegam ao STF para questionar a destinação das verbas parlamentares, algumas vindas do próprio Congresso, também fazem crescer a tensão entre deputados e senadores. A mais recente, protocolada pelo PSOL, afirma que Lira manobrou de forma ilegal para indicar os 4,2 bilhões de reais em emendas de comissão. “O próximo passo é garantir na Câmara e no Senado que as exigências do Supremo sejam finalmente respeitadas para que todo o orçamento seja público, transparente e participativo”, diz o deputado federal psolista Tarcísio Motta.
Para o advogado Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas, eventuais responsabilizações de parlamentares sobre o mau uso do orçamento secreto poderão acontecer como um desdobramento natural das investigações: “Há fortes indícios do envolvimento de diversos parlamentares na utilização indevida dessas emendas, mas é importante resguardar a cada um deles o sagrado direito de defesa, o devido processo legal e a presunção de inocência. Eles terão oportunidade de se defender. Se ao final ficar comprovado qualquer tipo de responsabilização, eles devem responder pelos eventuais equívocos que cometeram. Isso é saudável e muito oportuno”. O mesmo caminho de amplo direito à defesa, mas sem vacilar em eventuais punições, é defendido pelo PSOL. “O caso do Rei do Lixo é escandaloso e demonstra como o sistema de emendas parlamentares precisa ter maior transparência e rastreabilidade para o conjunto da sociedade, com fiscalização ampla e irrestrita”, diz Motta.
A queda de braço entre o STF e o Congresso teve início em dezembro de 2022, quando o Supremo declarou inconstitucional o esquema de orçamento secreto construído por Lira e Alcolumbre. Ao longo da primeira metade do governo Lula, Executivo e Legislativo encontraram diversas maneiras de contornar a lei e manter o poder das mesas diretoras das duas casas legislativas sobre a destinação das emendas, mas o caldo começou a entornar em agosto, quando Dino condicionou o pagamento à adoção de regras efetivas de transparência e controle. Em novembro, o Congresso aprovou uma lei para se adequar ao STF em pontos como a exigência de que as emendas de comissão fossem aprovadas previamente pelo respectivo colegiado temático e que o nome do deputado ou senador “pai” de cada emenda fosse devidamente identificado. Como, na prática, isso não foi cumprido nos ofícios enviados por Câmara e Senado ao STF em dezembro, Dino determinou novo bloqueio das verbas empenhadas pelo governo federal.
O ministro foi duro com a Câmara que, segundo seu despacho, provoca “uma balbúrdia quanto ao processo orçamentário”. Dino enxergou “nulidade insanável” no ofício assinado por Lira e os 17 líderes de partidos e blocos partidários da Casa para solicitar o empenho dos 4,2 bilhões de reais distribuídos em 5.449 emendas: “Os motivos determinantes são falsos, o caráter nacional das indicações das emendas não foi aferido pelas instâncias competentes, que são as comissões, e o procedimento adotado não atende às normas de regência estabelecidas pela Constituição”, escreveu o ministro. Dino afirmou que o Senado, que tem 2,7 bilhões de reais em emendas com empenho suspenso pelo STF, está “um degrau mais elevado do que a Câmara em termos de transparência” ao pelo menos individualizar a indicação de cada emenda entre os líderes partidários, mas isso não é suficiente: “Não é possível empenhar uma emenda de comissão cuja indicação do beneficiário e o valor a ser a ele repassado não foram aprovados pela comissão”.
Como concessão a um pedido feito pela Advocacia-Geral da União para que o Executivo possa cumprir o piso constitucional do setor de saúde, em um total de 370 milhões de reais, Dino liberou no último dia de 2024 parte das emendas bloqueadas. No entanto, mesmo estas terão de ser confirmadas pelas comissões de Saúde da Câmara e do Senado até 31 de março, sob pena de sofrerem um novo bloqueio.
No fim de 2022, o STF decidiu que o “orçamento secreto” é inconstitucional
A AGU enviou ofício a todos os órgãos do Executivo para orientá-los sobre o empenho das emendas da saúde. “Nosso entendimento é de que toda a parte relativa ao aspecto jurídico que envolve as emendas está consolidada e ajustada”, afirma o ministro Jorge Messias. Embora não se manifeste oficialmente, a AGU está preparada para pedir ressarcimento à União, se for de fato configurado dolo aos cofres públicos. “Poderá ser pedida reparação se houver, por exemplo, qualquer violação ou dano ao interesse da União. Isso está no escopo de competência da AGU, que, em tese, poderá mais para a frente pedir indenização”, afirma uma fonte do órgão.
Enquanto o recesso no Legislativo e no Judiciário adia o reinício da batalha, o governo atua para atenuar a insatisfação de Lira com as determinações do STF. No último dia útil do ano, Lula recebeu o presidente da Câmara e seu provável sucessor, Hugo Motta, do Republicanos. Participaram da conversa ainda o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e o líder do governo na Câmara, José Guimarães, do PT. Outra reunião está agendada para a semana que vem e, enquanto isso, a SRI trabalha para liberar aos municípios recursos do Ministério da Saúde, em mais uma tentativa de ajudar os parlamentares a driblar as ordens de Dino. O assunto é espinhoso. Procurados por CartaCapital, tanto Guimarães quanto o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, também do PT, preferiram não comentar o assunto.
Já o PSOL afirma que a discussão sobre as emendas será o principal ponto de pauta da candidatura do partido à presidência da Câmara no mês que vem: “Esperamos que os próximos presidentes da Câmara e do Senado assumam compromissos com a transparência e a rastreabilidade. É preciso diminuir a quantidade de recursos que hoje é definida pelos desejos de cada deputado e senador e que significa uma maior probabilidade de que lobbies desonestos atuem no desvio de recursos. O desperdício de dinheiro público precisa ser combatido e a corrupção, também”, diz Tarcísio Motta.
Caso o STF dê provimento à ação do PSOL, “o Brasil terá a oportunidade de devolver os poderes às suas respectivas caixinhas”, afirma Marco Aurélio de Carvalho. Com um orçamento extremamente robusto, acrescenta o advogado, na prática o Legislativo hoje divide com o Executivo a tarefa de administrar o País: “Mas, esse não é o papel que a Constituição desenhou para esse poder. As emendas impositivas são uma anomalia, um câncer para qualquer democracia”. Carvalho ressalta que, em 2025, o Brasil tem um encontro “marcado e inadiável” com esse debate: “Espero que tenha a maturidade necessária para enfrentar a discussão sem causar qualquer tipo de atrito no relacionamento entre os poderes, que deve ser absolutamente harmônico”. •
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Farra interrompida’