O tempo, em seu incessante fluxo, carrega lembranças muito antigas da minha época como diretor do Jornal da Tarde. Quando se tratava de uma questão relacionada à economia do País, o recurso ao professor Delfim Netto era inevitável e não havia dúvidas a respeito, pois ninguém poderia negar que a fonte era impecável. Logo, a fama superou qualquer obstáculo e o professor Antônio Delfim Netto foi chamado para comandar a pasta da Economia no governo de Laudo Natel.

A personagem tomou conta do palco e o professor Delfim ganhou rapidamente uma dimensão federal. Foi assim que a fama do taumaturgo da economia espalhou-se por todo canto. Eu quis logo conhecer a figura e daí nasceu uma boa amizade de conversas francas e até desabridas. Os senhores do poder não tinham o menor apreço pela minha pessoa, mas a amizade com o professor era mais forte do que outros obstáculos e assim trocávamos ideias em uma atmosfera sempre amena, a despeito da minha má fama junto aos ditadores.

Ao longo da minha carreira jornalística, consegui introduzir Delfim Netto até nas conversas com aqueles que já apareciam no horizonte, as lideranças políticas mais fortes naquele tempo. Havia ditadores que me detestavam, em primeiro lugar Ernesto Geisel, e, francamente, não sei até que ponto a minha relação com o professor Delfim contribuía para este específico desentendimento. Ao visitar Paris em certa ocasião, fui ao encontro de Delfim Netto, que Geisel havia remetido para a embaixada na França. No almoço que me ofereceu, ele acenou à tensão com o então ditador, mas nada disso impediu boas risadas com as observações que éramos capazes de produzir a respeito dos figurões.

Havia entre nós uma liberdade de expressão absoluta, que me permitia uma clara exposição das debilidades mentais de Roberto Civita, aquele que se esmeraria na demolição do trabalho paterno, um empresário na acepção mais clássica, a despeito da presença ao seu lado do quinta-coluna irresponsável, o já citado Roberto, incapaz de frear a sua prosopopeia. Delfim, lá pelas tantas, confessou que teria apreciado tornar-se governador de São Paulo, baseado, inclusive, na edição de um jornal diário habilitado a sustentar a sua candidatura, e me solicitou um estudo a respeito.

Várias foram as iniciativas tomadas para aproximar Delfim de Lula. Por um longo tempo, fizemos reuniões conjuntas talvez surpreendentes para quem não imagina a capacidade de um e outro de manterem certa ironia. Sem contar a qualidade das conversas que a partir daí se davam com razoável frequência no Instituto Lula, no bairro do Ipiranga, com a participação obrigatória do professor Luiz Gonzaga Belluzzo. A secretária Cláudia, solerte e afetuosa, cuidava de um almoço sempre muito prazeroso, destinado a favorecer a amizade consolidada cada vez mais profundamente.

Para além de conversas estelares, talvez tenham levado o professor Delfim Netto a meditar sobre erros e acertos que a vida lhe propiciou. De todo modo, sei que ele vai fazer falta.

Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vai fazer falta’

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Última Atualização: 15/08/2024