Nos anos de 1980 o Brasil passava por um importante processo de transição política, pela luta pela redemocratização, por eleições diretas e pelo latente desejo por uma nova constituição, o que deixava os brasileiros empolgados com tantas possibilidades.
Para quem vivia uma ditadura, essas bandeiras eram pra lá de radicais. Elas unificavam amplos espectros político, e por elas militavam: Ulisses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Lula da Silva e até João Amazonas.
Havia um grande consenso entre esses personagens sobre as bandeiras ligadas à redemocratização, mas esse consenso não passava de um embate contra as forças reacionária que sustentavam a ditadura.
Outros temas mais sensíveis se mantinham interditados e passavam longe dessa tão plural mesa, ora pelo próprio nível de dissenso que traziam, ora por certa ingerência de forças ocultas.
É certo que haveria dissenso se a discussão fosse sobre o modelo econômico, assim como se fosse sobre relações exteriores e/ou sobre a segurança pública. Portanto, certos temas acabaram sendo secundarizados para não implodir a tão delicada aliança em torno do processo de redemocratização.
No entanto, assuntos como saúde, assistência social, educação ganharam contribuições de amplos atores sociais e políticos que resultaram em propostas e desenhos muito claros, efetivos e até certa medida, bem eficientes.
O que não aconteceu com a segurança pública, conteúdo interditado por sua própria natureza, já que saíamos de uma ditadura corrupta e assassina, que usou as forças de segurança para reprimir e perseguir seu próprio povo.
Não era apenas uma interdição ideológica que havia sobre a temática da segurança pública, à margem dos debates principais da Constituição de 1988. E nesse aspecto é importante ressaltar o papel não tão oculto do general de exército Leônidas Pires Gonçalves, ministro do presidente José Sarney. Interferindo em temas que tinha de alguma relevância para o Exército Brasileiro.
Os herdeiros dessa época de perseguição e repressão, de quase nenhuma participação social, forjaram uma cultura política relativamente apática, de baixo interesse e pouca participação nas decisões quanto o destino da vida pública brasileira. Pouco se cobra, pouco se organiza, um caldo político/cultural que se apresenta como uma mão na roda para certas elites que nos governam. Uma vez que conseguem que seus desejos prevaleçam em detrimento das vontades coletivas.
No entanto, em 2009 sob a liderança do presidente Lula, convocou-se a população para, pela primeira vez, tratar de segurança pública. Eis que acontece a primeira conferência nacional, a qual colocou a população brasileira numa grande mesa redonda para tratar do tema.
Sociedade civil organizada, trabalhadores e gestores quebraram o pau para colocarem seus diversos pontos de vistas nessa roda. Cada um defendendo seu ponto de vista. O Governo Federal propondo a organização de um sistema aos moldes do SUS para a segurança pública, o SUSP, a sociedade civil exigindo uma abordagem mais mediadora e comunitária pelas forças de segurança para com suas comunidades, os trabalhadores das guardas municipais reivindicando o reconhecimento que não tiveram na constituinte, os policiais rodoviários federais requisitando o ciclo completo de policiamento, os agentes policiais federais não transparecendo dar importância para aquele espaço, os policiais estaduais buscando transformar suas corporações em instituições de carreira única, os militares de baixa patente defendendo o poder/direito de fazerem termo circunstanciado de ocorrência e os agentes prisionais lutando pela aprovação da PEC que os transformava em polícia penal. Mas o que mais chamava atenção era como se posicionavam três categorias específicas.
Os delegados federais e os delegados das polícias civis apenas defendiam a transformação da carreira de delegados em carreira de estado, enquanto, no final e ao cabo, juntos aos oficiais superiores das policias militares defendiam a manutenção do status quo vigente, o qual foi herdado das mãos do general Leônidas e que não apresentava resultados mais significativos desde 1988.
Entre idas e vindas, desde a redemocratização, que esse ano completa 40 anos, a realização da primeira conferência nacional foi o momento mais rico dessa discussão, mas já se passaram quase duas décadas e poucos foram os avanços que aconteceram. Entre eles: a guarda prisional fora transformada em polícia penal, o estatuto geral das guardas fora aprovado, o SUSP virou lei (mas de modo geral, o quadro permanece muito parecido). Esses pequenos avanços não ajudaram alterar/minimizar o quadro de insegurança e violência vividos neste país.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança pública apontam que desde a CONSEG, mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas, que os níveis de elucidação desses crimes são muito baixos, que a taxa de homicídio por 100 mil habitantes é das maiores do mundo. Esses números tiveram uma redução razoável em 2018, ano da aprovação da lei do SUSP, mas não havendo nenhuma relação de uma coisa com a outra.
O Governo Federal apresentou um projeto de reforma/reorganização da segurança pública propondo as seguintes alterações: a disposição do SUSP na Constituição Federal, a reorganização e ampliação das atribuições da PRF, a ampliação das atribuições da PF (no que toca o combate a crimes interestaduais e transnacionais com foco em milícias e organizações criminosas), a integração dos sistemas de dados e inteligência em todo território nacional, a constitucionalização do fundo de segurança e do fundo penitenciários, a transformação efetiva das guardas municipais em polícias municipais e o reforço dos órgãos de controle externo (como ouvidorias e corregedorias). Boa parte dessas propostas foram elencadas na conferência nacional de 2009 e demoraram quase duas décadas para virarem propostas e somente agora chegar ao Congresso para serem debatidas.
Essa PEC não é a bala de prata para a resolução dos problemas brasileiros de insegurança, questões complexas requerem estudo, tentativa e avaliação. Mesmo assim, a proposta avança quanto ao processo de reorganização da segurança pública, algumas dessas instituições citadas já vem atuando de forma não respaldada juridicamente. Além disso, a proposta abre espaço para uma discussão mais profunda sobre papeis dessas corporações. Qual o problema em discuti-las. Eles não são intocáveis e precisam de tempos em tempos passarem pelo escrutínio público.
Essa rara oportunidade para a população e os trabalhadores da segurança participarem desse processo, ele requer empenho para extrair avanços e não cair na conversa mole de quem quer manter STATUS QUO, dizendo que basta alguns ajustes e mais dinheiro, para ficar tudo bem. O que não é verdade. A taxa de homicídios de mais de 10 por 100 mil habitantes é uma epidemia de assassinatos, nossas polícias são as que mais matam e que mais morrem no mundo. O Brasil vivencia essa realidade há décadas e continua enxugando gelo. A PEC é uma possibilidade de algo mais.
Fábio Salviano Lima Xavier é Subinspetor da Guarda Civil Municipal de Aracaju, Sociólogo e professor da rede estadual de ensino em Sergipe.