A ascensão da extrema-direita, por Luís Felipe Silva

Os resultados das eleições francesas são claros: um grande avanço do Rassemblement National (Reunião Nacional, o partido de extrema-direita liderado por Marine Le Pen), que saiu em primeiro com 33% dos votos, e a erosão da liderança do presidente Emmanuel Macron, cujo partido Ensemble (Juntos) amargou o terceiro lugar, com apenas 20% dos votos.

Ainda não há como saber quem terá a maioria para indicar o primeiro-ministro, já que as legislativas francesas são em dois turnos. Apenas 75 das 577 cadeiras da Assembleia Nacional já estão decididas. As outras serão definidas no segundo turno, que ocorre já neste domingo.

Mas os números são eloquentes:

• Alta taxa de participação: dois terços dos eleitores franceses foram votar, o índice mais alto em eleições legislativas “solteiras” neste século, cerca de 20 pontos percentuais acima das últimas vezes. Até então, um alto comparecimento era considerado uma má notícia para a extrema-direita: significava que eleitores em geral indiferentes se mobilizavam para impedir que ela chegasse ao poder. Agora, o cenário mudou.

• Somando o RN com a dissidência do Republicanos (partido da direita tradicional) que o apoia, a extrema-direita fez 38 dos deputados eleitos no primeiro turno, isto é, mais da metade deles. Nas disputas do segundo turno, estará presente em 443 circunscrições. Foi a mais bem votada em 260 delas – em 2022, não passaram de 65.

• Com apenas dois deputados eleitos no primeiro turno, o macronismo foi o grande derrotado e provavelmente chega a seu fim como corrente política. Conseguiu se qualificar para o segundo turno em apenas 321 distritos e lidera só em 68 deles. Apenas como comparação: liderava em 201 em 2022, 449 em 2017.

• A esquerda enfrentou bem o desafio de construir a unidade para eleições convocadas em cima do laço e se apresentou com o Nouveau Front Populaire (Nova Frente Popular), que inclui os “insubmissos” de Jean-Luc Mélenchon, socialistas, comunistas e ecologistas. Fez 35 deputados no primeiro turno, alcançando 28% dos votos – um progresso apenas modesto, de dois pontos percentuais, em relação às eleições anteriores (quando a esquerda se reuniu na Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale).

O caminho do Rassemblement National para o poder passou pela desradicalização de seu discurso. O ponto de inflexão foi a mudança de nome, em 2018 (até então Front National). Jean-Marie Le Pen, líder do partido original e pai de Marine, era um neonazista quase assumido, de negar as câmaras de gás e tudo. Marine “normalizou” o partido moderando as palavras e escanteando o pai. Enfrentou dissidências, como a liderada pela sobrinha (e antes presumida herdeira), Marion Maréchal. Até o velho Le Pen se sentiu tentado a abandonar a filha. Isso também foi útil para posicionar o partido como “menos extremista”: afinal, tem gente ainda mais à direita. Mas continua sendo racista, autoritário e violento.

O principal êxito de Marine foi debilitar o cordão sanitário que antes isolava a extrema-direita. No começo, quando algum dos primeiros eleitos do Front National discursava na Assembleia, os outros deputados se retiravam. Era a forma de sinalizar que eles não eram considerados participantes legítimos do debate. Uma aliança com eles era inadmissível, a imprensa fazia questão de sinalizar que não mereciam ser levado a sério. Hoje, o cenário está mudado.

A outra vitória pode ser creditada já ao Le Pen pai. Mesmo sem chegar ao poder, impôs sua agenda no centro do debate político – a questão da imigração – e moveu todos os partidos para a direita.

Macron, por outro lado, cavou sua própria cova ao impor uma reforma da previdência altamente lesiva aos trabalhadores e extremamente impopular. A esquerda liderou a resistência, mas extrema-direita lucrou eleitoralmente. Aprovada a reforma, o presidente demitiu a primeira-ministra Elisabeth Borne, como gesto inócuo de satisfação à opinião pública, e nomeou para o cargo um jovem sem substância política, Gabriel Attal, hoje com 35 anos, que vinha de uma gestão midiática e incompetente no Ministério da Educação.

No sistema eleitoral francês, o segundo turno das eleições parlamentares não se resume necessariamente aos dois mais votados. Qualquer candidato que obteve pelo menos 12,5% dos votos permanece no páreo. A NFP anunciou imediatamente que, onde a extrema-direita continuasse na disputa e ela estivesse em terceiro ou quarto, abriria mão da candidatura para apoiar “o centro” (com exceção de dois distritos, em que as candidatas se recusaram a seguir a diretriz, isso já foi feito). Era uma pressão sobre Macron, que fez declaração mais ambígua. Há resistência do macronismo em apoiar sobretudo candidatos “insubmissos”: a França também tem sua famigerada tese dos “dois extremos”.

Um cenário provável é uma grande bancada da extrema-direita, mas não o suficiente para fazer o primeiro-ministro diante da união entre esquerda e “centro”. A questão é: os macronistas apoiariam um nome da NFP, que quase com certeza terá muito mais cadeiras do que eles? Ou a “frente ampla contra o fascismo” só funciona quando é para a esquerda apoiar uma direita limpinha?

Do lado da NFP, Mélenchon já sinalizou que está disposto a abrir caminho para um nome mais palatável para Macron. Mais uma vez, cabe à esquerda encontrar a maturidade para impedir o desastre.

Mas o fato é que a gestão de Macron, insensível aos reclamos da população e totalmente curvada aos interesses do capital, está aproximando a França, mais que nunca, de um governo extremista.

Luís Felipe Silva é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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Última Atualização: 02/07/2024