“Fale suavemente, mas carregue um grande porrete.” De autoria incerta, a frase sintetiza bem a estratégia diplomática dos EUA durante o governo de Theodore Roosevelt. Para assegurar a hegemonia política na América Latina, o presidente estava sempre disposto a negociar, mas não hesitava em usar a força, caso identificasse qualquer ameaça aos interesses norte-americanos. Alvos de intervenções militares diretas ainda na primeira década do século XX, República Dominicana e Cuba foram as primeiras nações a sentir o peso do big stick. Washington também apoiou o movimento separatista no Panamá, facilitando sua independência da Colômbia, para assegurar o controle da construção do Canal do Panamá.
Mais de um século depois, Donald Trump parece ter se inspirado na política de Roosevelt, mas sem a sutileza de “falar suavemente”. Em vez disso, seu governo optou por uma abordagem agressiva, em que a ameaça do porrete substitui qualquer tentativa de diálogo diplomático. Um exemplo claro é a recente crise com países latino-americanos, gerada pelas deportações de imigrantes ilegais. Para forçar a Colômbia a aceitar a repatriação de seus cidadãos em voos militares dos EUA, o republicano ameaçou declarar uma guerra tarifária, mas o presidente colombiano, Gustavo Petro, resistiu ao assédio e conseguiu costurar um acordo.
O imbróglio começou na manhã do domingo 26, quando Petro anunciou ter desautorizado a entrada de aviões militares enviados por Washington com deportados. Antes de permitir a repatriação, o presidente colombiano exigiu dos EUA um “protocolo de tratamento digno aos imigrantes”. A reivindicação é perfeitamente justificável. Dias antes, na sexta-feira 27, o Brasil cobrou explicações das autoridades norte-americanas pelo “tratamento degradante” imposto a 88 brasileiros deportados. Durante o trajeto, eles permaneceram mais de 50 horas algemados pelas mãos e pelos pés, sem ar-condicionado no voo e submetidos a toda sorte de humilhações, nem sequer podiam usar o banheiro de porta fechada. Alguns deles relataram, inclusive, ter sofrido agressões físicas durante uma parada no Panamá, após se queixarem do calor ou das condições de segurança do avião.
Na ocasião, um dos motores apresentou problemas, prolongando o período da escala no país da América Central. Os imigrantes não receberam autorização para sair em momento algum. A aeronave tinha como destino final Belo Horizonte, mas precisou fazer outra parada em Manaus, onde voltou a apresentar falhas técnicas. Foi quando os brasileiros acionaram a saída de emergência e andaram pela asa do avião, para chamar atenção dos agentes da Polícia Federal. Somente após eles assumirem a custódia dos imigrantes, as algemas foram retiradas. Por determinação do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, um avião da Força Aérea Brasileira foi mobilizado para levar os deportados em condições dignas à capital mineira.
Petro não aceitou ver compatriotas submetidos à mesma humilhação. Diante da recusa dos voos com deportados, Trump anunciou uma tarifa de 25% sobre todos os produtos da Colômbia que entram nos EUA, porcentual que poderia chegar a 50% em uma semana. Nas redes sociais, o presidente colombiano prometeu retaliar com a imposição das mesmas taxas de importação sobre os produtos norte-americanos. “Resistirei à tortura e resistirei a você”, escreveu Petro.
Gustavo Petro conseguiu repatriar os colombianos em condições dignas. Os brasileiros não tiveram a mesma sorte
Trump sabia que Petro tinha muito mais a perder na guerra tarifária. Em 2023, as exportações da Colômbia para os EUA totalizaram 14,11 bilhões de dólares, o equivalente a 28% do total transacionado pelo país, revelam dados do UN Comtrade, repositório de estatísticas do comércio internacional administrado pelas Nações Unidas. Na via inversa, Washington obteve um desempenho melhor – 17,55 bilhões de dólares –, mas isso não representa nem 1% do volume anual de exportações norte-americanas. Além do café e das flores, os colombianos vendem aos EUA petróleo cru, mas depois precisam comprar dos mesmos parceiros o petróleo refinado.
Ainda na noite do domingo 26, a Casa Branca emitiu um comunicado informando que Petro havia “concordado com todos os termos do presidente Trump, incluindo a aceitação irrestrita de todos os estrangeiros ilegais da Colômbia retornados dos Estados Unidos, em aeronaves militares dos EUA, sem limitação ou atraso”. Pouco depois, o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Luis Gilberto Murillo, anunciou que o impasse havia sido superado. No Brasil, a mídia apressou-se a apontar a capitulação de Petro, enquanto os bolsonaristas celebravam a porretada de Trump.
Mais tarde, verificou-se que o líder colombiano havia negociado um acordo, e não uma rendição. Em vez de receber voos militares dos EUA, Petro enviou aviões para buscar os deportados. “Nossos compatriotas vêm dos EUA livres, dignos, sem algemas”, disse, ao publicar nas redes sociais fotos do interior das aeronaves. “O migrante não é um criminoso.”
A crise está, porém, longe de um desfecho. A pedido da Colômbia, a líder hondurenha Xiomara Castro, presidente da Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe (Celac), convocou uma reunião extraordinária do grupo para discutir o tema, mas o encontro foi cancelado. Aliados de Trump, os presidentes da Argentina, Javier Milei, e El Salvador, Nayib Bukele, manifestaram objeção. Bukele, por sinal, negocia um acordo com os EUA para receber deportados de países que não têm acordos de repatriação com Washington, como Venezuela e Cuba. Empenhado em cumprir a promessa de expulsar 1 milhão de imigrantes ilegais por ano, Trump também suspendeu todos os processos de concessão de asilo, enviou tropas para a fronteira sul, com o México, e ainda cortou o financiamento da Organização Internacional para as Migrações, vinculada à ONU, comprometendo os esforços de acolhida de refugiados e deportados nos países da América Latina, inclusive no Brasil.
Por aqui, aliás, um acordo celebrado em 2017, pelo governo de Michel Temer, e reforçado em comunicados diplomáticos da gestão de Jair Bolsonaro, autoriza voos dos EUA com os imigrantes algemados até o desembarque em território nacional. O vira-latismo é assombroso. •
Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Expulsão e escracho’