No início de 2019, o rompimento de uma barragem da mineradora Vale, em Brumadinho, Minas Gerais, provocou 272 mortes, entre funcionários da empresa e moradores da região. Foi o segundo acidente envolvendo a companhia. Três anos antes, Mariana, também em Minas, foi palco de outra ruptura, dessa vez na barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, deixando um saldo de 19 mortes e poluindo com rejeitos tóxicos mais de 600 quilômetros de rios até o Espírito Santo. No Nordeste, Maceió protagonizou um dos maiores acidentes do mundo ocorridos em área urbana em razão da atividade mineradora: cerca de 60 mil habitantes e 15 mil imóveis foram afetados pelo afundamento de cinco bairros da capital alagoana, em consequência da atuação da Braskem. Todos esses desastres ocorreram no âmbito da mineração legalizada, regulada, constituída a partir do marco legal que rege esse setor econômico no Brasil, uma atividade que não cessa de crescer nem desiste da ideia de se instalar nas terras indígenas (TIs), cuja extensão representa 13,8% de todo o território nacional.

O lobby da mineração para explorar economicamente os territórios indígenas ora acontece no Executivo, ora no Supremo Tribunal Federal (STF), ora no Congresso Nacional. A investida do momento é no Senado, onde foi instituído, em 22 de abril, um grupo de trabalho com a missão de apresentar, no prazo de seis meses, uma proposta legislativa para regulamentar a pesquisa e a lavra de recursos minerais em TIs. Presidido pela senadora Tereza Cristina, ex-ministra de Bolsonaro e uma das principais representantes do agronegócio no Parlamento, o GT é formado por 11 parlamentares, a maioria favorável à www.cartacapital.com.br/tag/marco-temporal/, um indicativo de que o grupo já nasce com vício de origem. A ideia do colegiado partiu do presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre, do União Brasil, que solicitou uma proposta “equilibrada, tecnicamente fundamentada e livre de contaminações ideológicas”. Além de ter votado a favor do marco temporal, Alcolumbre representa o Amapá, um dos estados da Amazônia Legal, região com a maior concentração de terras indígenas do País e onde a atividade mineradora cresceu 1.217% no período de 35 anos.

O colegiado é presidido por Tereza Cristina, ex-ministra de Bolsonaro

De acordo com um estudo publicado na revista Remote Sensing, com base em dados coletados por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade do Sul do Alabama, nos EUA, a mineração ilegal em TIs da Amazônia passou de 7,45 quilômetros quadrados, em 1985, para 102,16 quilômetros quadrados em 2020. Os garimpos estavam concentrados, quase na sua totalidade (95%), nas TIs Kayapó, Munduruku e Yanomami – essa última vítima de uma grave crise humanitária, que escandalizou o mundo em janeiro de 2023.

“Sabemos do impacto do garimpo dentro e fora das Terras Indígenas, seja do ponto de vista da saúde, da cultura ou da alimentação. Essa atividade costuma vir acompanhada de aumento populacional, prostituição, tráfico de drogas, contaminação dos rios, inserção de produtos ultraprocessados que não fazem parte da cultura dos povos tradicionais e uma série de mazelas sociais, ambientais e culturais, que impactam no modo de vida e no contexto comunitário da nossa população”, dispara Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“A mineração incorpora elementos de contaminação e de intoxicação do solo, do subsolo, de fontes de água e da população que habita o local”, emenda Luís Ventura, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. “Ao mesmo tempo, provoca a chegada de grandes contingentes populacionais de fora, exigindo uma infraestrutura urbana para a adequação e para o acolhimento dessa força de trabalho. Ou seja, a atividade em si já representa uma alteração substancial e muitas vezes irreversível do ambiente e as comunidades locais não costumam se beneficiar dessa atividade, voltada principalmente para o mercado internacional.”


Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a balança comercial de 2024 para o setor de minérios registrou um saldo positivo de 24,51 bilhões de reais, a confirmar a alta lucratividade da atividade no Brasil. No ano passado, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), valor pago pelas empresas mineradoras à União, estados e municípios, foi de 7,4 bilhões de reais, 500 milhões a mais que no ano anterior e quase cinco vezes que o repasse de 2014.

Com a exceção de 2021, no qual a CFEM teve uma arrecadação excepcional e chegou a 10,3 bilhões de reais, os valores de 2024 estão no topo da série histórica dos últimos dez anos. No entanto, as mineradoras deixaram de repassar aos cofres públicos cerca de 16 bilhões de reais em CFEM entre 2017 e 2023, segundo relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), prejuízo que poderá ultrapassar a casa dos 20 bilhões de reais, se considerados os processos de cobrança pendentes.

“Os sistemas atuais da Agência Nacional de Mineração não permitem o acompanhamento da real produção mineral fiscalmente escriturada, não sendo possível ter conhecimento do quanto se deixa de arrecadar e do valor monetário submetido ao risco de decadência. Estimou-se que, no período de 2014 a 2021, a arrecadação poderia ter sido entre 30,5% e 40,2% superior, o que representa uma receita potencial da CFEM não arrecadada na faixa entre 9,38 bilhões de reais e 12,35 bilhões de reais”, diz um trecho do relatório, que também aponta a falta de pagamento dos ­royalties devidos em 70% dos títulos minerários. “O estado da mineração brasileira é catastrófico e não tem melhorado nada, ao contrário. Você tem desde multinacionais até cooperativas de garimpeiros que foram criadas nos últimos anos por grupos multinacionais e garimpo industrializado, multibilionário, muito influente politicamente, tanto em nível local, nos estados, quanto em nível federal”, opina Maurício Ângelo, diretor-executivo do Observatório da Mineração.

Alerta. A mineração legalizada também causa graves impactos, como provam os desastres em Brumadinho e Mariana – Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Para Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, o garimpo, mesmo o legalizado, é altamente poluente. “Com raras exceções, a mineração envolve, por si só, empreendimentos complexos, com impactos significativos. A atividade nunca termina numa recuperação ambiental plena. Muitas vezes, você dá a licença de operação, mas, no curso da atividade minerária, vai descobrindo áreas que podem ser exploradas ou vai não dando certo onde você iniciou”, diz Araújo, antes de completar: “Basta sobrevoar as regiões onde elas estão instaladas que você verá lagoas de rejeito inativas. Muitas vezes o empreendedor decreta falência sem resolver o dano ambiental gerado”.

Estudos revelam que as Terras Indígenas são muito mais preservadas que outras áreas e a entrada da mineração nesses territórios representa um dano irreversível para o meio ambiente. “A mineração não se instala sozinha. Além do projeto em si, tem toda a poluição que vem acompanhada com ele, os conflitos pelo território e toda a questão logística. São estradas, ferrovias, portos, aeroportos. Eventualmente, surgem pequenas cidades para abrigar os trabalhadores e suas famílias e, com elas, a necessidade de trazer energia elétrica e saneamento”, explica Araújo. “Se for aberta a atividade em Terra Indígena, teremos um impacto devastador, além de todos os problemas que vemos hoje, não só no caso do garimpo, mas de mineração industrial que atua próximo de Terras Indígenas”, completa Ângelo.

De fato, as TIs apresentam um índice de preservação das florestas infinitamente maior que as áreas não indígenas. Uma pesquisa recente do Instituto Socioambiental (ISA) revela que, nos biomas da Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Pampas, os territórios indígenas são 31,5% mais preservados do que o seu entorno. Na Amazônia e no Cerrado, a diferença é ainda mais perceptível. De agosto de 2023 a julho de 2024, o desmatamento na floresta amazônica foi de 1,74%, ao passo que nas terras não indígenas foi de 27%. No Cerrado, menos de 6% dos territórios indígenas foram degradados, enquanto no seu entorno chegou a 54,5%.


“O desmatamento brasileiro representou 46% das nossas emissões de gás de efeito estufa em 2023. Se você incentivar a mineração em Terras Indígenas, aumentará muito esse número”, lembra Araújo. Luís Ventura questiona o papel do Estado brasileiro ao abrir a possibilidade de mineradores se instalarem nas TIs. “O papel do Estado é garantir direitos fundamentais, como é o direito ao território e ao usufruto exclusivo dos bens naturais por parte dos povos indígenas. Ao mesmo tempo, é dever do Estado coibir, impedir, perseguir qualquer forma de crime organizado. É descabido pensar que, por uma omissão do Poder Público, as quadrilhas tomem conta da floresta e a alternativa é legalizar uma atividade sabidamente prejudicial.”

O GT no Senado não é uma iniciativa isolada. O debate também acontece no STF. Em fevereiro deste ano, Gilmar Mendes chegou a propor um anteprojeto de lei autorizando a mineração em territórios indígenas, resultado do relatório final da Câmara de Conciliação criada, ano passado, pela Corte para analisar ações que questionavam a tese do marco temporal. A Apib, como entidade representativa dos povos indígenas, decidiu retirar-se do grupo logo no início dos debates, por entender que o colegiado não iria se debruçar apenas ao marco temporal, abriria espaço para a exploração econômica nos territórios, como de fato aconteceu. Diante da repercussão negativa da minuta apresentada, o ministro voltou atrás. Mas o tema continua pulsando no Supremo. Dias Toffoli, um dos magistrados que reconheceram a inconstitucionalidade do marco temporal, tem se mostrado favorável ao aproveitamento de recursos hídricos, orgânicos e minerais em TIs, e chegou a cobrar do Congresso Nacional um projeto para regulamentar a questão, alegando tratar-se de tema de interesse econômico do País. •

Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Exploração predatória ‘

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Last Update: 15/05/2025