O ex-chefe da Receita Federal, Júlio Cesar Vieira Gomes, confirmou em depoimento à Polícia Federal que o ex-presidente Jair Bolsonaro o procurou para tentar, de forma ilegal, a liberação de um kit de joias dadas pela Arábia Saudita.
O kit continha um colar, um par de brincos e um relógio – tudo com dezenas de diamantes cravejados -, além de uma escultura de cavalo.
As peças foram apreendidas, em 2021, pela alfândega de Guarulhos em poder do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, por não tê-las declarado. Por nunca terem pago os impostos de importação, as peças foram incorporadas ao patrimônio da União.
Em dezembro de 2022, quando estava prestes a viajar para os Estados Unidos, Jair Bolsonaro tramou se apossar e vender as joias.
“Ao tomar ciência da existência de joias de alto valor patrimonial retidas na alfândega de Guarulhos, Jair Bolsonaro, com auxílio de Mauro Cid e Julio Cesar Vieira, traçou uma estratégia para incorporação dos bens a seu acervo privado”, descreveu a PF.
Jair Bolsonaro e seus aliados, inclusive Julio Cesar Vieira Gomes, “iniciaram uma operação, até certo ponto desesperada, para tentar subtrair as joias femininas retidas pela Receita Federal, em tempo hábil a despachá-las no avião presidencial, que decolaria no dia 30 de dezembro de 2022, com destino aos Estados Unidos”.
Julio Cesar Vieira contou que em uma reunião na primeira quinzena de dezembro de 2022, realizada no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro o questionou “se tinha ciência de alguma apreensão da Receita Federal decorrente de uma viagem para Arabia Saudita”. O então chefe da Receita disse que iria pesquisar.
A partir de então, Julio Cesar passou a acionar seus subordinados na Receita para entender a apreensão e estudar uma forma para que as joias fossem liberadas.
Nos próximos dias, diversos servidores da Receita Federal trocaram e-mails e mensagens de WhatsApp sobre as joias apreendidas. Em uma mensagem, um superintendente disse que havia “celeridade” no assunto e que o próprio Julio Cesar assinaria um dos documentos imprescindíveis para a liberação.
Em 27 de dezembro, faltando três dias para Jair Bolsonaro embarcar para os Estados Unidos, ele voltou a pressionar Julio Cesar.
No mesmo dia, o ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, orientou o chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), Marcelo da Silva Vieira, a enviar um ofício para a Receita pedindo a incorporação das peças ao acervo presidencial.
No dia 28 de dezembro, falando com um servidor da Receita, Julio Cesar falou: “bota todo mundo para trabalhar para a gente de forma que a gente consiga cumprir isso daí e disponibilize isso amanhã às 5 da tarde”.
Servidores comentaram, em mensagens, que Julio Cesar estava “numa pressão danada” para resolver o assunto para Bolsonaro.
Outro superintendente desabafou sobre a forma como as peças foram encontradas: “colocar um presente desse no fundo de uma mala e danificá-lo é coisa de gente pouco instruída. Mas, talvez, não seja coincidência o fato de que não há registro fotográfico do colar. Certamente, não havia intenção de que isso fosse ser importado regularmente e, menos ainda, fosse compor o patrimônio público”.
O plano do grupo criminoso era conseguir retirar as peças da Receita Federal alegando que eram presentes da Arábia Saudita para a Presidência da República. Uma vez no GADH, as joias seriam desviadas, como fizeram com outras.
O próprio chefe do GADH, Marcelo Silveira, afirmou em áudio que “agora o relógio vai ser do presidente (risos)”. “O bem [relógio], ele não vai pra gente [acervo público], o Cid vai pegar e vai entregar o bem pro Presidente e vai mandar o formulário de presentes com as fotografias”, contou.
A Ajudância de Ordens de Jair Bolsonaro, chefiada por Mauro Cid, enviou Jairo Moreira da Silva para a Alfândega de Guarulhos com o objetivo de retirar as joias. Um servidor da Receita se recusou a participar da ilegalidade.
O próprio Júlio Cesar Vieira Gomes tentou, por ligação, pressionar o servidor para que ele entregasse o kit, mas não conseguiu. Jairo voltou para Brasília de mãos vazias.
No dia 31 de dezembro de 2022, último dia de mandato, Júlio Cesar perguntou a Mauro Cid se ele havia avisado “presidente que vamos recuperar os bens?”. Cid respondeu: “Avisei!”.
A Polícia Federal comentou que “a mensagem ratifica os demais elementos de prova, evidenciando que o objetivo não era a incorporação das joias ao acervo público, mas sim, o desvio ao patrimônio do ex-presidente Jair Bolsonaro. Julio Cesar, em unidade de desígnios com Mauro Cid e Jair Bolsonaro, ainda estava tentando ‘recuperar os bens’ para o ex-presidente”.
O grupo criminoso não conseguiu a liberação das joias a tempo de levá-las para os Estados Unidos, mas as conversas continuaram nos primeiros meses de 2023.
Em 7 de fevereiro de 2023, Julio Cesar contatou Mauro Cid pedindo uma procuração do ex-ministro Bento Albuquerque. No dia 3 de março, Julio enviou para Cid 22 arquivos sobre a viagem de Bento à Arábia Saudita e uma fotografia do Termo de Retenção de Bens relativo às joias.
Foi em março de 2023 que foi revelado, através da imprensa, que Bento Albuquerque havia tentado entrar no Brasil com peças de luxo sem declará-las à imprensa.
Tentando se defender, Bolsonaro falou que só pediu a liberação das joias para não deixar “pendências” para o próximo governo e evitar um “vexame diplomático” por um presente de outro país estar retido na Receita.
Fonte: Página 8