EUA cercam Venezuela com maior poder militar já visto na América Latina

O segundo semestre de 2025 entrou para a história como o período da maior mobilização militar dos Estados Unidos contra um país latino-americano – desde a crise dos mísseis de Cuba em 1962. Sob o comando do presidente Donald Trump, Washington concentrou no Caribe e no entorno da Venezuela um aparato bélico que supera, em poder de fogo e alcance estratégico, intervenções como as invasões de Granada e da Nicarágua nos anos 1980.

Porta-aviões, destróieres lançadores de mísseis, submarinos nucleares, caças de última geração e milhares de militares passaram a operar na região, em uma demonstração de força que rompe com o padrão histórico de pressões diplomáticas e sanções econômicas. Várias ilhas caribenhas hospedam esse aparato militar, que demonstra o tamanho do empenho e receio de Donald Trump em repetir os fracassos do Vietnã ou da invasão da Baía dos Porcos em Cuba.

Aumentando o risco de possíveis ataques contra a Venezuela, o presidente dos EUA declarou o espaço aéreo do país como “totalmente fechado”, sem dar maiores detalhes sobre o anúncio. Ao menos cinco aeronaves, incluindo caças Boeing EA-18G Growler e F/A-18E Super Hornet, sobrevoaram a região sem entrar no espaço aéreo de Caracas.

Mirando novamente o setor petrolífero da Venezuela, país detentor das maiores reservas do combustível fóssil ao redor do mundo, Trump anunciou nesta terça (16), um novo bloqueio marítimo, que busca impedir a entrada ou saída de navios sancionados pelos EUA na Venezuela. Um dia depois (17), um novo ataque “cinético letal” contra uma embarcação acrescentou mais vítimas às quase 100 pessoas já mortas desde setembro.

De sanções a ameaça militar aberta

A ofensiva ganhou intensidade após a posse de Nicolás Maduro para um novo mandato, em janeiro, contestado por Washington, apesar de todo o protocolo característico de uma democracia eleitoral. Trump classificou o presidente venezuelano como chefe de um suposto cartel de drogas e, na sequência, ampliou para US$ 50 milhões a recompensa por informações que levassem à sua captura.

Na prática, a mudança criou precedentes para operações militares dos EUA em outros países, sob a justificativa de combater o terrorismo — como já aconteceu em países como o Afeganistão, Síria e Líbia, países que continuam desgovernados sob controle de facções em conflito, um risco calculado para a Venezuela.

O discurso rapidamente se traduziu em ações concretas. Desde agosto, os EUA iniciaram ataques a embarcações no Caribe e no Pacífico sob a alegação de combate ao narcotráfico, sem apresentação pública de provas. Em paralelo, retomaram sanções duras contra o setor petrolífero venezuelano, principal fonte de receitas do país.

A lógica do “narcoterrorismo”

O ponto de inflexão foi a adoção oficial, pelo governo Trump, de uma doutrina que classifica organizações ligadas ao tráfico de drogas como “terroristas internacionais”. A mudança abriu brechas legais para o uso direto da força militar fora do território norte-americano, replicando métodos aplicados anteriormente nos países do Oriente Médio mencionados.

Ao associar o governo Maduro ao chamado “narcoterrorismo”, Washington passou a justificar bloqueios navais, apreensão de petroleiros e bombardeios seletivos como parte de uma suposta guerra global ao terrorismo.

Bloqueio naval e cerco ao petróleo

Em dezembro, Trump anunciou um bloqueio marítimo contra petroleiros sancionados que entram ou saem da Venezuela, além de declarar o país “completamente cercado pela maior armada já reunida na história da América do Sul”. A medida elevou drasticamente o risco de confronto direto entre forças norte-americanas e venezuelanas.

Como resposta, Caracas passou a escoltar seus navios com a Marinha nacional e denunciou os EUA no Conselho de Segurança da ONU por violação do direito internacional e prática de “pirataria naval”. Enquanto Caracas chegou a arrecadar mais de 100 bilhões de dólares (R$ 552 bilhões) por ano com petróleo, hoje o valor fica em cerca de 20 bilhões de dólares (R$110 bilhões). Embora tenha a maior reserva do combustível, a produção venezuelana represente cerca de 1% da produção global.

Segundo o presidente republicano, a Venezuela está atualmente “cercada pela maior armada já reunida na história da América do Sul”. Por isso, o cerco contra o país só deve ser encerrado quando o “petróleo, terra ou quaisquer outros ativos” norte-americanos forem devolvidos. Até o momento, contudo, a administração Trump ainda não deixou claro sobre bens dos EUA que teriam sido apropriados pelo governo Maduro.

Reações internacionais e risco regional

A mobilização norte-americana provocou reações imediatas. Rússia e China declararam apoio à Venezuela e alertaram para consequências imprevisíveis. Além dos aliados, a ONU e os governos do México e da Alemanha também se pronunciaram na quarta-feira. A ONU pediu desescalada, enquanto países do Caribe demonstraram preocupação com a transformação da região, historicamente declarada “zona de paz”, em um novo palco de confrontação militar.

Especialistas alertam que a presença simultânea de grandes frotas navais em águas estreitas aumenta o risco de incidentes que podem servir de estopim para um conflito aberto.

Autoridades do Caribe, que dependem de parcerias de segurança com os EUA para combater o tráfico de armas e drogas, expressaram preocupação de que os ataques possam prejudicar suas economias e o turismo, embora admitam nos bastidores que pouco podem fazer para impedi-los. 

O ponto mais próximo de Trinidad Tobago fica a apenas 11 km da costa da Venezuela, e seu governo está hospedando fuzileiros navais dos EUA, permitindo a instalação de um sistema de radar em um de seus aeroportos e participando de exercícios militares conjuntos com forças americanas. O primeiro ataque relatado em setembro deixou 11 mortos na costa de Trinidad. “As Forças Armadas dos EUA deveriam matá-los a todos violentamente,” diz a primeira-ministra de Trinidad e Tobago, Kamla Persad-Bissessar, embora a violência em seu país seja alimentada por armas contrabandeadas dos EUA, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

O presidente dominicano Luis Abinader também autorizou as Forças Armadas dos EUA a operarem em áreas restritas de seu país. Aeronaves militares dos EUA podem reabastecer e transportar equipamentos e pessoal técnico, disse ele em uma coletiva de imprensa conjunta com o secretário de Defesa, Pete Hegseth, na capital dominicana no mês passado. “Dominicanos, nosso país enfrenta uma ameaça real, uma ameaça que não reconhece fronteiras, que não distingue bandeiras, que destrói famílias e que vem tentando usar nosso território como rota há décadas”, declarou.

Porto Rico é um território ocupado pelos EUA, não uma nação independente. Foi usado durante toda a Guerra Fria para apoiar ações militares dos EUA na América Central e do Sul, e voltou à ativa nas últimas semanas com intensa movimentação militar.

Washington abordou Granada para solicitar a instalação temporária de equipamentos de radar e pessoal técnico associado em um aeroporto internacional. O pedido causa polêmica no país que já foi invadido pelos EUA em outubro de 1983, após o assassinato do primeiro-ministro Maurice Bishop, um revolucionário socialista. O aeroporto batizado com o nome do líder assassinado, seria o local da instalação do radar dos EUA.

Mais grave que Granada e Nicarágua

Mesmo nos momentos mais tensos da Guerra Fria, como a invasão de Granada ou o apoio armado dos EUA contra a Nicarágua sandinista, Washington não concentrou tamanho poder de fogo de forma tão explícita e prolongada no entorno de um único país latino-americano.

Agora, com ataques letais, bloqueios navais e ameaças públicas de guerra, a ofensiva contra a Venezuela marca um novo patamar de intervenção, recolocando a América Latina no centro da estratégia militar global dos Estados Unidos — e reacendendo memórias históricas de um continente repetidamente tratado como zona de influência e não como região soberana.

Longo histórico de intervencionismo

Em 1823, o então presidente dos EUA James Monroe (1758-1831) defendeu a ideia da “América para os americanos”. Na época, ele criticava a interferência europeia nos territórios do continente. Ao longo do tempo, essa visão avançou contra as ideologias que fossem avessas ao ideário norte-americano. No século 20, o presidente Franklin Roosevelt (1882-1945) atualizou essa premissa com a sua política da boa vizinhança e soft power.

Desde que foi fundada, em 1947, a a CIA, o serviço de inteligência dos Estados Unidos, protagonizou, muitas vezes de forma secreta, trabalhos de coleta, processamento e análise de informações de segurança nacional em todo mundo.

No Brasil, o momento mais claro dessa interferência foi a chamada operação Brother Sam, em que os Estados Unidos chegaram a mandar um porta-aviões para ajudar a consolidar o golpe que instaurou a ditadura em 1964 — operação detalhada no livro A Máquina do Golpe, lançado em 2024 pela historiadora Heloisa Starling, professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A CIA atuou na organização de um golpe de estado que acabaria derrubou o governo democraticamente eleito e de orientação progressista na Guatemala, sob a presidência de Jacobo Árbenz (1913-1971). O jornalista William Blum, autor de, entre outros ‘The Cia: A Forgotten History’,  afirmou que esta operação acabou funcionando como um modelo para outras intervenções na América Latina, com subterfúgios que incluíram suborno de oficiais do Exército local, investimento em campanhas em rádios e jornais contra o governo guatemalteco e influência diplomática.

Ao longo da década de 1950 a CIA teria financiado, em ação conjunta com o governo britânico, grupos de oposição a Cheddi Jagan (1918-1997). De orientação popular e progressista, ele tinha sido eleito como administrador colonial da atual Guiana em 1953.

Blum comenta que a agência americana fez “tudo o que estava ao seu alcance” para impedir que o governo revolucionário cubano de Fidel Castro (1926-2016) fosse bem sucedido. Isso significa que a CIA teria se envolvido em sabotagens de mercadorias que seriam destinadas a Cuba, orquestrado os embargos comerciais decretados pelo governo americano contra o país e chegado a planejar tentativas de assassinato a Castro e outras altas autoridades cubanas. O episódio mais emblemático e visível foi a tentativa frustrada de invadir a Baía dos Porcos, no sudoeste cubano, em abril de 1961. “A intervenção foi descrita de várias maneiras como um fiasco, uma tragédia, uma derrota humilhante e um fracasso perfeito”, comenta o historiador Michael Grow, professor na Universidade de Ohio, em seu livro U.S. Presidents and Latin American Interventions. 

Segundo Blum, a CIA se infiltrou no governo do Equador entre 1960 e 1963, criando agências de notícias e emissoras de rádio e organizando atentados contra organizações conservadoras — atribuindo a autoria de tais ataques a grupos guerrilheiros de esquerda. O regime militar teria se consolidado com o apoio técnico da CIA.

Na mesma época, a CIA treinou militares e intermediou o fornecimento de armas ao exército do Peru, com o propósito de combater movimentos guerrilheiros de esquerda que havia no país.

A participação da CIA no golpe que mataria o presidente do Chile Salvador Allende Grossens (1908-1973) é um dos casos mais conhecidos e documentados. Em 1974, a interferência americana foi revelada pelo jornal The New York Times. A CIA investiu milhões de dólares, entre 1970 e 1973, para deslegitimar o governo de Allende. E isso teria preparado o terreno para o golpe e a ascensão do sanguinário ditador Augusto Pinochet Ugarte (1915-2006).

No Uruguai, onde a ditadura militar durou de 1973 a 1985, a CIA atuou na criação de um escritório de segurança em Montevidéu que treinou policiais para conter rebeldes e guerrilheiros de esquerda. 

A CIA também se aproximou do governo da Argentina durante a ditadura militar. A publicação canadense Geopolitical Monitor ressalta que o secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger “foi gravado dando sinal verde [às violações de direitos humanos] ao então Ministro das Relações Exteriores argentino, Augusto Guzzetti” (1925-1988) — que ocupou o cargo entre 1976 e 1977, na gestão do ditador Rafael Videla (1925-2013). A Geopolitical Monitor frisa que “de 1975 a 1983, cerca de 30 mil civis acusados de subversão morreram ou desapareceram” no país.

Segundo memorando interno da CIA, a agência teria atuado para “mudar” o governo da República Dominicana. Teria investido em propaganda para deslegitimar o governo esquerdista de Bosch Gaviño (1963). Tropas americanas permaneceram no país pelo menos até 1966.

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