Autocracia em tempo real: o cerco à Venezuela, a tomada de Washington DC e os limites da democracia americana disfuncional

por Gisele Agnelli e Luciana Bauer

Não foi apenas a Venezuela que foi surpreendida pelo cerco de três navios de guerra norte-americanos e cerca de quatro mil fuzileiros navais em sua costa. Trata-se de uma ameaça real de Donald J. Trump contra os cartéis de drogas supostamente ligados, em sua narrativa, a Nicolás Maduro. Washington, D.C., também enfrenta a mesma invasão de tropas em vídeos que circulam pela internet. Nos últimos dias, a capital dos Estados Unidos foi sitiada por forças federais e estaduais, sob a justificativa de conter uma violência urbana inexistente nos números oficiais. A narrativa fantasiosa do “banho de sangue”, criada por Trump, é um exemplo acabado de crise fabricada — recurso clássico de líderes autoritários para ampliar poder e minar instituições.

Não se trata de Hollywood e seus filmes distópicos, mas da realidade da mais antiga constituição democratica do Ocidente. Um presidente que reescreve estatísticas de emprego, questiona a legitimidade da prefeita de Washington DC e convoca governadores republicanos a enviarem suas próprias forças de segurança para a capital. Como se o federalismo americano — influente mecanismo para conter a autocracia — já não pudesse mais frear os abusos do Executivo, submetendo tanto a elite republicana quanto a democrata à sua vontade.

A autocracia não se anuncia. Ela é uma experiência semiótica que envolve a todos em tanques, soldados, imigrantes detidos em campos de concentração e, sobretudo, no ódio dos supremacistas brancos e dos militantes anti-woke que emergem dos esgotos.

O cenário completo revela algo maior: a democracia norte-americana, tida como modelo exportável, mostra hoje fragilidades institucionais imediatas. Bastou que Trump tivesse mais juízes leais na Suprema Corte para que a imunidade conferida por eles cuidasse do resto. Bastou dobrar e humilhar a resistência dos candidatos ainda cordatos dentro do Partido Republicano para que este se submetesse a caprichos típicos de ditaduras. Bastou uma posse repleta de barões do tecno-feudalismo para que Trump agisse não como presidente eleito por um povo, mas como o grande CEO de uma grande corporação cujo único objetivo é manter o monopólio do domínio mundial. Custe o que custar.

O autoritarismo raramente se impõe de forma explícita. Ele infiltra-se. Ele esta suspenso no silencio dos restaurantes vazios pelo medo. Dos estudantes que se sobressaltam ao simplesmente ir a escola. Ele está no banheiro unissex ou no casamento gay que se apaga sem gritos.

Ao lado da ocupação policial de Washington, Trump nomeou para o cargo de promotora-geral do Distrito de Columbia uma ex-apresentadora da Fox News (mais uma), transformando o sistema de justiça em braço de propaganda. Essa fusão entre mídia partidária, Estado e aparato jurídico é captura institucional pura e simples. Altamente eficaz. Esta promotora geral pode impedir em uma única canetada as eleições livres de meio de mandato, pois é dela a atribuição de receber as atas de todo pais e de lhe conferir validade e eficácia.

Este cuidadoso aparato estatal passa a servir não ao povo, mas ao projeto pessoal de poder de Trump e ao projeto de domínio dos tecno-feudalistas, sedentos por terras e mercados. No caso específico de Trump, trata-se ainda de ajudá-lo a permanecer no poder para evitar a prisão. Uma semelhança que ele relembra constantemente ao se olhar no seu pequeno espelho dos trópicos que é Bolsonaro.

O paralelo com o Brasil é inevitável. A Constituição de 1988 nasceu em um contexto de redemocratização, após duas décadas de ditadura militar, e por isso carrega uma densidade normativa muito maior do que a Constituição norte-americana de 1787. Enquanto o modelo dos EUA ancora-se em um texto breve, interpretado principalmente pela tradição do common law, a Constituição de 1988 tem caráter extenso, programático e detalhado, com cláusulas de proteção explícitas que ampliam os mecanismos de defesa da democracia.

Nossa Constituição de 1988, nascida da experiência traumática da ditadura, dotou o país de instrumentos de defesa mais robustos do que a Carta norte-americana. O guardião da Constituição — que, no Brasil, é o STF nossa corte constitucional — dispõe de mais ferramentas à disposição como observou recentemente Steven Levitsky, renomado cientista político, em entrevista ao Roda Viva, “a democracia brasileira hoje se mostra mais saudável do que a norte-americana. O motivo é simples:  instituições brasileiras, sobretudo o STF, agiram para responsabilizar Jair Bolsonaro, enquanto nos Estados Unidos o Judiciário e o Congresso hesitam diante de Donald Trump”. O contraste é eloquente e desmonta a velha ideia de Washington como farol democrático do mundo.

Mesmo em meio à inflação, à estagnação salarial e à precarização crescente, persiste nos EUA a lenda de que os republicanos seriam “melhores para a economia”. O mito se sustenta na retórica do empresário bem-sucedido, enquanto famílias veem o preço da carne dobrar em poucos meses e jovens sequer sonham com a casa própria. Para compensar a frustração econômica, Trump aposta na retórica de “lei e ordem”. A invasão de Washington, assim como a militarização da imigração via ICE, cria a sensação de “restauração da autoridade”, ainda que baseada em números forjados. É o mesmo mecanismo explorado por regimes autoritários ao longo da história: fabricar inimigos internos para justificar repressão e se apresentar como solução.

A corrosão democrática americana não se explica sem observar a convergência entre desigualdade social e desinformação algorítmica. Desde os anos 1970, os salários estagnaram enquanto a riqueza dos mais ricos disparou. Esse abismo alimentou frustrações que foram capitalizadas por narrativas de ódio e teorias conspiratórias, amplificadas pelas redes sociais. A incapacidade do sistema político de oferecer uma agenda real de redistribuição de renda (inclusive durante o governo Biden) abriu espaço para que a extrema-direita se apresentasse como porta-voz da “revolta popular”. Ao mesmo tempo, as Big Techs lucraram com a curadoria de conteúdos tóxicos e desinformativos, funcionando como catalisadoras do autoritarismo. Não se trata apenas dos conteúdos em si, mas sobretudo da amplitude que os conteúdos sensacionalistas alcançam em uma sociedade sem qualquer regulamentação de mídias sociais.

A ofensiva de Trump não é apenas doméstica. Ela se conecta a um redesenho internacional perigoso. Em sua relação ambígua com Putin, o presidente norte-americano acena tanto para a interrupção da guerra na Ucrânia, quanto para o negócio da guerra: transformar doações em vendas de armas e disputar reservas de terras raras no Brasil e na própria Ucrânia. Nesse jogo, a retórica de “paz” mistura-se à lógica do lucro bélico. O resultado é um mundo à beira de uma terceira guerra, não por inevitabilidade histórica, mas pela soma de líderes que instrumentalizam crises para ganhar fôlego político.

Trump é senhor de dois grandes experimentos fatais à humanidade. No plano internacional, o “experimento Gaza”: a aniquilação de uma civilização, de um povo e de um projeto de paz moldado por um mundo que ainda respeitava tratados e direitos dos povos (como entendiam Kant e Rawls). O Genocídio instantâneo. No plano interno, o “experimento Washington D.C. e ICE”: que se transformaram, diante de nossos olhos, em um laboratório autocrático imediato de cerceamento de direitos individuais. A ditadura instantânea.

Uma crise fabricada, uma capital sitiada, instituições cooptadas, mitos econômicos reciclados e direitos fundamentais em retrocesso. O roteiro é familiar — e deveria soar como alerta para o Brasil. Se até uma das democracias mais antigas do Ocidente pode ser corroída por dentro, nenhuma está imune à força do financismo e do  tecno-feudalismo aliado à guerra. O que se desenrola em Washington é a prova de que a autocracia pode nascer do cotidiano, de um legislativo inoperante, de uma Suprema Corte omissa, de um partido de oposição perdido ou respeitoso demais diante de atos incivilizados e inconstitucionais. E principalmente, de uma população anestesiada demais para reagir.

Gisele Agnelli é colunista, socióloga e cientista política. Luciana Bauer é jurista e pesquisadora em direito constitucional comparado. Ambas acompanham a política dos Estados Unidos com foco em erosão democrática, autoritarismo e institucionalidade.

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Last Update: 22/08/2025