Renata Araujo
“Não tenho força suficiente para o norte: lá reinam almas grosseiras e artificiais, que trabalham tão assídua e necessariamente na medida da prudência quanto o castor em sua construção. E pensar que foi entre elas que passei toda minha juventude!
Eis o que me impressionou quando, pela primeira vez, vi chegar o entardecer com seu vermelho e seu cinza aveludado no céu de Nápoles — como um arrepio, como por pena de mim mesmo, pelo fato de haver começado minha vida sendo velho. Vieram-me lágrimas e o sentimento de ter sido salvo, ainda que no último instante. Eu tenho força suficiente para o sul.”
— Friedrich Nietzsche
—
Ela leu aquelas palavras e, por um impulso, foi arremessada para longe de si mesma. Deslocada. Viu diante dos olhos toda uma história atravessada. Quanto tempo levou para tomar seu destino em direção ao sul? Foi preciso seguir um novo rumo. Um novo rumor lhe batia como vento
Lembrou-se do grito à sua porta, pedindo passagem. Inspirou o ar que dançava dentro de si, abriu as costelas e uma coreografia se desenhou.
Vinha com ele, dos mares do sul, oceânico, uma força entreaberta das enseadas que servem de porto a embarcações. Seu barco navegava pela pequena baía até alcançar o mar aberto. Precisaria soltar âncoras. Na travessia, descobriria como se apoiar em sua própria fundação: havia um porto dentro de si.
Deixou que o vento lhe tocasse o rosto, o corpo inteiro. Seus cabelos se agitavam em movimentos cada vez mais livres, mareando em linha tortuosa. E não apenas os cabelos: também um grito seco pegava carona nas asas do vento. Abriu a boca e deixou que o ar sobrevoasse as águas salgadas.
Logo lembrou de seu hino. Tinha essa música como guia:
“Quebrei a lança, lancei no espaço,
um grito, um desabafo,
o que me importa é não estar vencido,
minha vida, meus mortos,
meus caminhos tortos,
meu sangue latino, minha alma cativa.”
Era Sangue Latino, da banda brasileira Secos & Molhados (década de 1970, formação clássica: João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad). “O que faz uma canção dessa ainda reinar nos tempos atuais?”, perguntou-se, tocada pela letra. Atravessar o mar, o tempo, as águas — era isso! Tão contemporânea!
E abrir as portas do oceano em direção ao sul caberia a qualquer força que a ajudasse a se permitir. Sabia a direção: agora, sem recuo, sem retorno. Bastava retirar as camadas de musgo da necessidade cotidiana, da resistência à mudança, da repetição insistente, da mesmice que gruda e impregna. Sob a água cristalina, tudo era verde e cheirava a seiva.
Num ímpeto, o vento aninhou-se à vela do barco, conduzindo com firmeza o roteiro que ela mesma havia traçado. O tempo, agora, seria seu aliado. Precisava tornar caseira — dentro dessa casa interna no peito — a terra desejada.
Nenhuma travessia carrega mares inteiramente tranquilos. Como Ulisses, na Odisseia de Homero, também ela atravessava mares. Recordou-se do livro narrado em poemas. Como ele, precisou trespassar a vastidão e, no fundo, bem dentro, ouvir a voz.
A voz que vem do Outro, com insistência e sede, que carregamos como o canto das sereias. Ulisses sabia da tentação: ordenou que seus marinheiros colocassem cera nos ouvidos e pediu para ser amarrado ao mastro, para não sucumbir ao encanto das notas musicais. Não podia perder-se, nem deixar-se levar.
Ela, ao contrário, lançou-se às águas. Vislumbrou a terra tão desejada. Decidiu seguir o canto — e, também os encantos. (Foto/reprodução internet)
Renata Araújo – Psicanalista, escritora e cantora.