O dia em que a canção Ponteio, de José Carlos Capinan e Edu Lobo, ganhou o Festival da Record de 1967, foi o mesmo em que uma das músicas mais emblemáticas do século passado, Eu Estou Louco por Ti, América, chegou às mãos de Gilberto Gil.
Gil, que apresentou nessa edição Domingo no Parque, estava no camarim do Teatro Record, na região central de São Paulo, quando leu os versos nos quais Capinan exultava o amor e a liberdade para a América Latina. A letra havia sido escrita logo após o anúncio, pelo rádio, da morte de Che Guevara.
Eu Estou Louco por Ti, América foi imediatamente gravada por Caetano Veloso no seu primeiro álbum-solo, lançado no começo de 1968, período acossado pela perseguição política.
“Considero essa canção como um antecedente do movimento tropicalista”, afirma Capinan, em entrevista por telefone a CartaCapital. Para o letrista baiano, a canção dá ênfase a uma linguagem musical em ascensão na época, “mais liberta e urbana”, adotada pelo movimento ao qual se integraria logo depois, a Tropicália, a convite de Gil.
Eu Estou Louco por Ti, América é uma das muitas canções presentes no recém-lançado volume Cancioneiro Geral (1962-2023), organizado por Claudio Leal e Leonardo Gandolfi, e publicado pelo Círculo de Poemas, a coleção de poesia da Editora Fósforo. O livro, além das canções, traz seus livros de poesia e poemas avulsos. Trata-se de um conjunto importante, que dá a dimensão da obra do compositor e escritor de 83 anos.
O projeto inclui textos críticos sobre sua obra resgatados do passado, de autoria de José Guilherme Merquior, Ênio Silveira, Gilberto Gil e Luiz Carlos Maciel.
Com Gil, Capinan compôs, entre outras músicas, a faixa de abertura do álbum-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis (1968), a Miserere Nobis. Na canção, as palavras de Capinan captam o espírito do movimento e expõem, de forma alegórica, o País: Já não somos como na chegada/ Calados e magros, esperando o jantar/ Na borda do prato se limita a janta/ As espinhas do peixe de volta pro mar.
Na antológica capa do disco, onde estão os tropicalistas, o letrista aparece em um porta-retratos segurado por Gil. Foi a solução encontrada pela sua ausência na sessão de fotos, assim como ocorreu com Nara Leão, cuja imagem, emoldurada, é segurada por Caetano.
Embora o Modernismo tenha sido uma influência marcante na poesia de Capinan, suas inspirações artísticas são muito devedoras também da cultura popular. Um exemplo disso é a sua primeira obra musicada, a peça Bumba Meu Boi (1963), realizada com Tom Zé, no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, na Bahia – onde ele teria os primeiros contatos com os tropicalistas. “Bumba Meu Boi são versos heptassílabos, que são muito comuns no cordel”, diz.
O artista nasceu no município de Entre Rios e foi ainda criança para Taperoá, ambas no interior da Bahia. Nesses lugares, o letrista teve contato com elementos da cultura popular. “Isso é a base da minha relação com a palavra”, diz. “Essas manifestações são normalmente chamadas de folclóricas, esvaziando o conteúdo que elas têm de refletir o mundo rural na forma como ele é vivido, com queixas e demandas de um povo que vive um trabalho difícil.”
No seu livro de estreia, o Inquisitorial, lançado em 1966, quando já estava estabelecido no Rio de Janeiro, Capinan explica que sua poesia passou a espelhar outro tipo de linguagem, sem perder a crítica social: “Vou pegar uma relação mais dialética com a palavra”.
Naquele período, o letrista fazia parte de um grupo ligado à cultura que se reunia periodicamente. Capinan intensificou ali o uso de sua poesia na música, firmando parcerias com nomes então emergentes, como Paulinho da Viola. Canção para Maria, lançada em 1966 pelo sambista, é a primeira de uma leva de canções da profícua dupla, que inclui Coração Imprudente (1972) e Prisma Luminoso (1983).
Na onda de participação em festivais de música na época, Capinan e Jards Macalé concorreram, em 1969, com Gotham City, muito mal recebida pelo público do Maracanãzinho. “Foi uma vaia consagradora”, brinca. “Gotham City é uma metáfora do que seria uma sociedade perigosa, de censura política, ideias que eram perseguidas, pensamentos que não se podiam ter”, explica Capinan.
Mas a parceria e a amizade prosseguiram. No último álbum de Macalé, Coração Bifurcado (2023), duas canções da dupla foram registradas: Amor in Natura e A Arte de Não Morrer. “Foram feitas após o ‘apocalipse’, que é a arte de não morrer na pandemia e outras pandemias políticas que a gente enfrentou”, conta.
Capinan construiu parceria sólida também com Geraldo Azevedo e Roberto Mendes, além de compor com sambistas históricos da Bahia, já falecidos, como Ederaldo Gentil e Batatinha.
Com João Bosco, é autor da letra enigmática Papel Machê, lançada em 1984 e já no inconsciente do cancioneiro nacional. Capinan, habitualmente, oferecia a letra para ser musicada, mas, nesse caso, João tinha a melodia pronta. “Não sabia como entrar numa parceria de uma forma autêntica. Visitei o João para ver o ambiente em que ele vivia”, lembra. Chegando lá, o letrista viu a companheira do cantor, Angela, com trabalhos de papel machê. “Foi aí que me veio a ideia dessa composição de que gosto muito”, diz.
Foi, sobretudo, pelas canções que Capinan entrou no imaginário brasileiro. Mas suas palavras, ao longo de mais de 60 anos de carreira, foram criadas e publicadas em muitos outros formatos. Entre outros livros que publicou estão Ciclo de Navegação, Bahia e Gente (1975); Confissões de Narciso (1995) e Balança Mas Hai-Kai (1996).
“O que acontece, quando escrevo, é semelhante àquilo que acontece nos transes das cerimônias afro-brasileiras. Meu orixá é a palavra”, compara, para dizer em seguida que continua a compor e a escrever poemas como um ato religioso, em Salvador, onde vive. •
Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Soy loco pela palavra’