no Substack: Amanhã não existe ainda
Estamos no buraco
por Luis Felipe Miguel
Congresso corrupto cresce diante de governo apático.
A derrota de ontem confirmou, de maneira cabal, o que já sabíamos. O eixo do poder mudou no Brasil. A presidência da República está enfraquecida e mergulhamos em um parlamentarismo sui generis, em que o Congresso manda, mas não assume responsabilidades. É o pior dos mundos.
Lula e o PT sempre atuaram partindo da premissa de que a presidência era tudo o que importava. A política brasileira era como o quadribol, o jogo dos livros de Harry Potter, em que as equipes podem fazer pontos à vontade, mas ganha quem captura o pomo de ouro.
Câmara, Senado, governos estaduais, nada disso tinha peso diante da presidência. Por isso, os petistas se coligavam com qualquer partido, dando votos para ampliar suas bancadas, e cediam governos para os Sérgios Cabrais da vida, desde que garantissem a eleição do presidente.
Isto mudou, está claro que mudou, não é de hoje – vem do segundo mandato de Dilma, aprofundou-se com Bolsonaro. Mas Lula e o PT continuam desnorteados.
Os gângsteres que comandaram a derrota dos três decretos sobre o IOF, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, chegaram aos seus cargos com apoio do governo. No entanto, estão prontos a inviabilizar este mesmo governo, sem ligar para as consequências para o país.
Alcolumbre depois deu entrevista dizendo que os parlamentares “estão há dois anos e meio” ajudando Lula. E que o problema foi que o decreto do IOF “começou mal” e “foi rapidamente rechaçado pela sociedade brasileira”. Uma aula de cinismo.
O rentismo não é “a sociedade brasileira”. Os incentivos fiscais de R$ 197 bilhões, que os consumidores pagarão na energia elétrica, estes certamente são rechaçados pela sociedade brasileira, o que não impediu o Congresso de derrubar os vetos presidenciais (incluindo os votos da ampla maioria do PT). Uma medida com as implicações do aumento do IOF não é descartada sem discussão e sem negociação, como ocorreu agora. O Congresso não ajuda o governo, muito menos ajuda a sociedade: ele achaca o governo e vira as costas para o povo.

Não é “polarização política”, que ocorre quando a oposição tenta bloquear as ações do presidente a fim de desgastá-lo, como os republicanos tentaram fazer com Joe Biden, por exemplo. Aqui, o caso é outro. O Congresso, quer dizer, o Centrão, que é sua espinha dorsal, quer simplesmente garantir seu domínio. Quer controlar o dinheiro e não sofrer as consequências de suas próprias decisões.
É claro que cortar um aumento de imposto que atingiria o topo da pirâmide satisfaz os patrocinadores dos nossos egrégios representantes. A possibilidade de usar o “desequilíbrio fiscal” para mexer no piso constitucional de Educação e Saúde é outro bônus. Mas a retaliação veio mesmo porque o governo Lula teve a ousadia de responsabilizar os parlamentares pela decisão que eles mesmos tomaram, relativa à conta de luz.
Como o governo vai reagir? Pelo que se lê na imprensa, nem vai reagir.
Embora a decisão seja provavelmente inconstitucional, já que o decreto era relativo a uma atribuição clara do Executivo, o Planalto reluta em levar a questão ao Supremo. Não quer “piorar a relação com o Legislativo”, não quer melindrar Motta e Alcolumbre.
É um governo que apanha e não reage, que está sempre esperando a boa fé, a compreensão, o cumprimento de acordos, quem sabe o sentido cívico do Centrão.
Demitir os ministros dos partidos de direita que votaram de forma praticamente unânime contra o governo? Certamente não.
Na Câmara, o PP, do ministério dos Esportes votou unanimemente pela derrubada dos decretos. No União Brasil, do ministério do Turismo, foram 97% – dois deputados não registraram voto. Mesma coisa nos Republicanos, do ministério dos Portos, em que o índice chegou a 95%; no MDB, dos ministérios das Cidades, dos Transportes e do Planejamento, foram 93%. No PSD, que controla Minas e Energia, Agricultura e também Pesca, o percentual contra o governo foi menor, de 60% (ainda assim majoritário). Mesmo escore do PSB, que tem a vice-presidência e os ministérios da Indústria e Comércio e do Empreendedorismo. No PDT, que controla os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Previdência, mantendo este último mesmo depois do escândalo que desgastou o governo, 94% dos deputados votaram pela derrubada dos decretos (um único deixou de votar).
Os ministros podem ficar tranquilos. O cargo é deles, não importa que não entreguem ao governo nada, nem em apoio político, nem em capacidade de gestão.

Lula insiste em cortejar a elite – ou talvez o termo correto seja escória – parlamentar, embora já esteja mais do que claro de que não receberá em troca nenhum tipo de compromisso ou de lealdade. Abriu as torneiras para liberar emendas parlamentares nos últimos dias e o resultado foi o que vimos.
Seria, talvez, o caso de partir para uma estratégia de maior confronto. Exigir algo em troca do que dá. Demitir ocupantes de cargos públicos, cortar a liberação de verbas. Fazer com que exista algum ônus em trair os acordos com o governo.
Por que Lula não convoca uma cadeia de rádio e televisão para explicar ao povo brasileiro o que está acontecendo, para explicar o sentido político da tributação sobre os mais ricos e para responsabilizar o Congresso pela parte que lhe cabe na sua paralisia?
Mas é claro que não vai fazer isso. Tudo que ele faz é ceder mais, mesmo sem nenhum resultado. E cada vez que cede se enfraquece mais e mais.
Lula 3 é a Dilma 2. Desvaloriza seus recursos aos entregá-los a troco de nada.
O governo não tem rumo. Não conseguiu realizar quase nada do pouco que se propunha, nas condições particularmente desafiadoras em que assumiu. E, como dizia Sêneca, “não há vento favorável para quem não sabe para onde vai”.
Lula tem medo de quê? De sofrer um impeachment? Os senhores do Congresso não parecem muito interessados nesta saída. Para eles, é mais interessante ter um governo nas cordas, assumindo o desgaste e entregando tudo para eles.
E Lula quer se arrastar por mais um ano e meio, como um presidente que não preside, que nem sequer luta com os recursos que o cargo ainda lhe dá, para depois, com sorte, se reeleger e termos mais quatro anos deste martírio? Este é o projeto?
A paralisia governativa é, em parte, fruto da captura do orçamento pelo poder legislativo. Em parte, fruto da heterogeneidade da coalizão que o presidente tenta pilotar. Em parte, fruto do despreparo de muitos gestores, colocados nos cargos para satisfazer pressões de grupos ou para simbolizar visibilidades identitárias.
Mas a paralisia política, esta é inequivocamente de responsabilidade de Lula e da cúpula de seu governo.
Que me desculpem os incondicionais do lulismo: o presidente que elegemos em 2022 (e que, tudo indica, teremos que lutar para reeleger ano que vem) não está à altura do momento histórico.
A situação que vivemos é descrita pelo vocabulário científico com a expressão “no mato sem cachorro”.
Uma parte da Ciência Política brasileira insiste em dizer que está tudo indo bem, muito bem. O mandato de Bolsonaro, dizem alguns, foi a prova da “resiliência” de nossas instituições. Mesmo um pesquisador sério como Fernando Limongi vem a público reclamar que “há uma tendência de desrespeitar o Legislativo como uma expressão da sociedade”. Segundo ele, “nosso sistema permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida”.
É o formalismo que equivale voto a representação. Sim, todo mundo que está no parlamento foi eleito. Mas isto não impede que eleitos se distanciem de eleitores, que expressem pouquíssimo os interesses da base, que os manipulem, que sirvam apenas aos lobbies poderosos e a seus próprios apetites.
O sistema está funcionando, sim, mas para garantir a continuidade desse estado de coisas – uma sociedade desigual e atrasada, uma população desprovida de poder, uma democracia de fachada em que as vontades das maiorias podem ser desprezadas impunemente. A destruição do presidencialismo foi a pá de cal na esperança de uma mudança por dentro.
Como escreveu elegantemente Wanderley Guilherme dos Santos, logo depois que o golpe de 2016 acelerou este processo, o projeto é edificar uma “ordem de dominação nua de propósitos conciliatórios com os segmentos dominados”.
E o povo brasileiro assiste bestializado (para usar a expressão imortal de Aristides Lobo) a mais um capítulo da derrocada de seu país, narcotizado por fake news, bets, rede sociais, igrejas, empreendedorismo, o diabo a quatro.
Um Executivo débil, um Legislativo corrupto, um Judiciário negocista, umas Forças Armadas golpistas, uma classe dominante predatória. Uma grande parte da pequena esquerda envolvida em quizílias secundárias, incapaz de definir prioridades, ou então empolgada com as migalhas de poder, com os cargos que sobram para ela. É difícil vislumbrar qualquer solução dentro das instituições. É difícil ver alguma saída que não passe por uma revolução.
Claro que, da mesma maneira como os golpes de hoje podem prescindir de protagonistas fardados e de tanques na rua, a revolução de que estou falando não precisa passar por alguma tomada do Palácio de Inverno. Mas é necessária uma transformação revolucionária do padrão histórico de relacionamento do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares. Uma transformação que é implausível no contexto atual, em que os sistemas de freios e contrapesos servem, na prática, para frear qualquer contestação ao açambarcamento do poder pela minoria que o detém.
Precisamos de uma revolução, mas não há quem a faça. Este, em poucas palavras, é o drama do Brasil de hoje.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).
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