O primeiro debate presidencial de 2024: antecedentes, tópicos abordados e repercussão
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Por Andressa Mendes, Lauro Henrique Gomes Accioly Filho e Yasmim Abril M. Reis*
[Panorama EUA]Na noite de 27 de junho, os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump e Joe Biden, enfrentaram-se em um debate coordenado e transmitido pela emissora CNN. Como esperado, o debate repercutiu por toda a mídia, doméstica e internacional, e chamou a atenção pela aparência e postura dos dois candidatos, mais do que pelas propostas e planos de governo pouco discutidos.
Antes mesmo de acontecer, alguns aspectos desse debate foram levantados pela mídia e por analistas da área, como o fato de esse ter sido o primeiro debate da história dos Estados Unidos a acontecer entre um presidente e um ex-presidente. Também é digno de nota a rejeição que ambos sofrem perante seu eleitorado. Um quarto dos americanos se mantém desfavorável às opiniões de Biden e Trump, tornando-os a dupla de candidatos menos apreciada em décadas.
No que tange ao debate em si, três considerações precisam ser previamente realizadas. Primeiro, no que se refere à qualificação dos candidatos. Para se qualificar, eles tinham de cumprir os requisitos constitucionais para a presidência, apresentar uma declaração de candidatura à Comissão Eleitoral Federal (FEC, na sigla em inglês), estar em cédulas suficientes para obter 270 votos eleitorais e ter pelo menos 15% de intenção de votos em quatro pesquisas nacionais, conforme os padrões da CNN. O candidato independente Robert F. Kennedy Jr., por exemplo, não cumpriu alguns dos requisitos exigidos e não pôde, portanto, participar.
(Arquivo) Robert F. Kennedy Jr., em comício de campanha, em Tucson, Arizona, em 5 fev. 2024 (Crédito: Gage Skidmore/ Flickr)
Segundo, referente à data acordada. Historicamente, os debates entre presidenciáveis ocorrem no outono dos Estados Unidos (entre setembro e outubro). Em 2024, isso mudou, devido a uma demanda dos próprios candidatos. Isso deriva não só do intuito de fazer seus discursos aos eleitores antes da abertura do período de votação antecipada, mas também por interesses diversos das equipes de campanha. No lado democrata, buscou-se testar a participação, postura e imagem de Biden, o qual vem sofrendo duras críticas referentes a sua idade (81) e capacidade de governar os Estados Unidos por mais quatro anos. No lado republicano, buscou-se avaliar Donald Trump e a repercussão envolvendo-o, especialmente em relação aos processos judiciais em curso com o ex-presidente na qualidade de réu, seu papel na invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, além da preocupação com sua postura nesses eventos, que tende a ser impaciente, agressiva e até infantiloide.
Terceiro, houve uma mudança na organização do debate, antes responsabilidade da Comissão de Debates Presidenciais, organização que era patrocinada pelos dois partidos, mas da qual o Comitê Nacional Republicano se retirou em 2022. Na mesma direção, partiu da campanha de Biden o convite para o debate antecipado, e ambos os candidatos concordaram em participar de mais um, desta vez organizado pela ABC, em 10 de setembro. O debate de 27 de junho foi moderado pelos jornalistas Jake Tapper e Dana Bash e seguiu algumas regras, como: duração de 90 minutos; não interação das equipes de campanhas com os candidatos durante o debate e os comerciais; microfones silenciados durante todo o evento, exceto para o candidato que estivesse com a palavra; ausência de plateia no estúdio; e outros. Tais medidas foram tomadas para evitar problemas ocorridos nas últimas vezes em que os candidatos se enfrentaram, em 2020.
(Arquivo) Jornalista Jake Tapper, da CNN, em 2017 (Crédito: Ståle Grut/NRKbeta/Flickr)
Baixo desempenho de Biden e esquivas de Trump: os protagonistas do debate
Tanto Joe Biden quanto Donald Trump são os candidatos mais velhos a concorrer à presidência e são, também, os dois candidatos mais rejeitados pelo eleitorado. Antes mesmo do debate acontecer, alguns pontos foram indicados como importantes de se considerar, como a questão da aptidão (física e mental) dos dois candidatos, seus temperamentos, o perigo da desinformação e da narrativa e a falta de feedback do público. Esses são elementos caros aos dois candidatos: Biden, por estar sendo visto como fraco e velho demais para estar em um posto de poder; e Trump, como aquele que fala sem se preocupar em passar a verdade e que se sobressai, não necessariamente pelos melhores motivos, perante espectadores.
Nos primeiros 15 minutos de discussão, Biden já enfrentou dificuldades ao falar, com a voz rouca, pouca clareza e aparência cansada. Não conseguiu formular uma frase concreta em seu comentário sobre o Medicare, por exemplo. Diferentes fontes disseram que ele contraiu um resfriado nos dias que antecederam o debate. Já Trump, aproveitando a falta de sagacidade do adversário e a falta de fact-checking da coordenação do debate, destacou-se, ao discursar melhor que seu oponente e, paradoxalmente, ao se esquivar das perguntas dos apresentadores e proferir muitas inverdades.
Após o debate, a CNN informou que Trump fez pelo menos 30 alegações falsas, enquanto Biden proferiu ao menos nove. As alegações tiveram a ver com os temas debatidos, como a Invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, assuntos relacionados à economia, como inflação, impostos, desemprego e regulamentos, a pandemia da covid-19, mudança climática, aborto, assuntos de política externa e imigração. A seguir, serão apresentados alguns dos tópicos debatidos, os quais se destacam não só pelo debate, mas também por sua relevância nas campanhas dos dois candidatos.
Discussão sobre o aborto foi insatisfatória
O aborto é um tema sensível aos democratas e vem sendo explorado por Biden com sua proposta de reinstaurar Roe v. Wade. Trump mantém, por sua vez, uma postura ambígua sobre o assunto, com mudanças de opinião ao longo de sua vida, porém mais conservadora nesses períodos de campanha, devido, principalmente, ao posicionamento político de seu eleitorado. No debate, Biden se esforçou para apresentar a posição dos democratas sobre o aborto, mas não obteve sucesso. Essa posição envolve a crítica às proibições estaduais ao aborto em estados republicanos e propostas como a proteção às mulheres que viajam para realizar abortos e proteção de registros médicos das mulheres.
Trump reiterou sua posição de que a regulamentação do aborto deve ser responsabilidade dos estados e disse que “todos os juristas” querem acabar com as proteções federais ao aborto, exceto em casos de estupro, incesto e para proteger a vida da mãe. Também reiterou a derrubada de Roe v. Wade e, por fim, devido a uma deixa do próprio Biden, o assunto foi interrompido por Trump e seu discurso acerca de crimes cometidos contra americanos por imigrantes.
Invasão ao Capitólio: tópico crucial, mas de exígua discussão
Questionado sobre o ataque ao Capitólio em 2021, Trump se recusou a aceitar qualquer responsabilidade da mobilização e afirmou que a maioria das pessoas detidas era inocente. Sua estratégia foi desviar atenção para suas afirmações de baixa credibilidade, indicando que ele estava preocupado com uma possível necessidade de reforço da Guarda Nacional, levando-o a oferecer assistência à Nancy Pelosi, então presidente da Câmara de Representantes.
Falsamente, porém, ele diz que sua proposta de reforço foi rejeitada por Pelosi, mesmo sabendo que ela não seria capaz de recusar sua ajuda, já que a Guarda Nacional do Distrito de Columbia reporta apenas ao presidente. Além disso, o relatório final da investigação do 6 de Janeiro apurou que não houve qualquer ordem sob o comando de Donald Trump para mobilizar a Guarda Nacional no dia do ataque ao Capitólio.
Em tom enfraquecido, Biden expressa poucas palavras a respeito da fuga de Trump em relação à discussão da invasão ao Capitólio. “Esse cara não tem noção da democracia americana”, reage. Este momento do debate era oportuno para Biden explorar as falhas de Trump em lidar com a mobilização que ele vinha alimentando desde a contagem do resultado eleitoral, incendiando sua conta do Twitter de acusações sem evidências de fraude eleitoral. Mais uma vez, os democratas fazem pouco uso dessas performances problemáticas de Trump e o tratam com desdém.
Por fim, ao abordarem o tópico da democracia, Trump concordou em aceitar os resultados desta eleição apenas se ela for “justa, legal e boa” e reiterou sua posição quanto às eleições passadas, que foram, segundo ele, fraudulentas. A grande questão é o que ele considera como “justa, legal e boa” e como seu posicionamento e as negativas de confiar no sistema eleitoral dos Estados Unidos geram preocupação sobre suas ações, caso ele perca novamente a presidência para Biden e, mais ainda, sobre como a população irá reagir ao resultado, podendo haver, novamente, protestos e insurreições no país.
(Arquivo) Eleitores de Trump durante a invasão ao Capitólio, em Washington, D.C., em 6 jan. 2021 (Crédito: Tyler Merbler/Wikimedia Commons)
Xenofobia acentua mais uma vez o tópico da migração no debate presidencial
A forma como Trump se referiu à questão da fronteira entre Estados Unidos e México pode ter sido um calcanhar de Aquiles para o atual presidente, Joe Biden. O republicano criticou o democrata por, supostamente, permitir a entrada de imigrantes em condição ilegal, sobretudo, pelo aumento nas travessias não autorizadas que alcançaram um recorde em 2023. Esse aumento não reflete, no entanto, um relaxamento das medidas da administração Biden em relação à imigração clandestina. Houve um aumento na construção de seções adicionais nos muros da fronteira sul dos EUA, intensificação das operações militares na região e um aumento no número de deportações rápidas.
A situação da fronteira não está descontrolada, todavia, o discurso de Trump foi cirúrgico em fazer soar que a situação se encontra em um ponto desesperador, ao afirmar, sem evidências, que Biden “abriu a fronteira do país para pessoas que são de prisões, pessoas que são de instituições mentais”. Em contrapartida, a resposta de Biden foi apenas moderada e buscou enfatizar seus esforços de produzir medidas bipartidárias, as quais não foram bem-sucedidas.
Por sua via, a retórica de Trump foi propícia para fortalecer sua lógica de evocação do medo, ligando repetidamente a imigração ao crime e ao terrorismo. Como ilustrado por esse trecho de sua fala – “E, por causa das políticas ridículas, insanas e muito estúpidas [de Biden], as pessoas estão entrando e matando nossos cidadãos em um nível que nunca vimos” –, suas declarações sem evidências realçaram mais uma vez sua performance. Seu discurso pode ser visto, contudo, como calculado, para incutir em seus públicos focais a percepção de que há uma onda de crimes sendo cometidos por migrantes, embora até agora exista apenas um caso, envolvendo o assassinato de um estudante universitário no estado da Geórgia.
O aumento da migração não se traduz em aumento da criminalidade, mas expõe o poder da retórica xenófoba. Dados do FBI (a Polícia Federal americana) de crimes violentos e contra a propriedade estão perto dos níveis mais baixos durante o governo Biden, ao contrário do que aconteceu no de Trump. Além disso, um estudo de 2023 descobriu que há um declínio nas taxas de imigrantes encarcerados desde 1960. Outras pesquisas, elaboradas por Michael T. Light, Jingying He e Jason P. Robey e do National Bureau of Economic Research, evidenciam que os cidadãos dos Estados Unidos são mais propensos a cometer crimes violentos do que os imigrantes.
Neste cenário, a falta de firmeza fez Biden perder pontos diante da performance midiática de Trump. Pesquisa Ipsos mostrou que as expectativas negativas sobre o desempenho de Biden subiram de 42%, antes do debate, para 73%, após. Sua baixa “produtividade” no debate ficou mais evidente na esteira do questionamento do moderador Jake Tapper em relação à motivação que os eleitores deveriam ter para confiar no papel dos candidatos para resolver a questão da imigração em condição ilegal. Enquanto Biden apresentava os desafios de construir propostas em apoio bipartidário, Trump foi direto e afirmou que retomará sua proposta de deportar milhões de imigrantes indocumentados, caso seja eleito para seu segundo mandato.
Uma cena sobre este tópico que se repetiu no debate foi a recorrente fuga de Trump de perguntas fechadas, especialmente, quando questionado por Tapper se a proposta de deportação iria incluir até aqueles que residem nos Estados Unidos há décadas, com empregos, ou que tenham cônjuges que sejam cidadãos americanos.
China continua no cerne do debate norte-americano sobre economia e segurança
A China permanece como o principal tema de consenso bipartidário no país. Não obstante, o tema já surgiu no debate associado ao tema da economia. A economia é um dos principais problemas da política doméstica norte-americana, com a elevação da inflação e do custo de vida estadunidense nos últimos anos. Aqui, o presidente Biden destacou a herança ruim recebida da administração Trump. Já para o ex-presidente e candidato republicano, a China é a principal culpada pela situação do colapso da economia nacional. Quando questionado sobre sua proposta de impor tarifas de 10% a produtos que chegam aos Estados Unidos, Trump enfatizou que “Isso apenas fará com que os países que vêm nos enganando há anos, como a China e muitos outros […], sejam forçados a nos pagar muito dinheiro, reduzir tremendamente nosso déficit e nos dar muito poder para outras necessidades”.
Desde seu primeiro mandato, Trump se preocupa em construir uma narrativa contra a China por meio de críticas às práticas comerciais adotadas pelo país asiático consideradas pelo governo dos Estados Unidos como injustas e desleais. Desse modo, a China continua sendo o pivô para as justificativas de Trump contra os problemas domésticos dos EUA, entre eles a economia.
Outro tema que apareceu no debate e teve a China como cerne foi a crise climática. Enquanto o candidato democrata não fez referências à China, o republicano recordou a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris durante seu primeiro mandato (2017-2021). Para Trump, o Acordo sobre o Clima custava bilhões para os Estados Unidos, enquanto para China, Rússia e Índia não havia custos. Além disso, Trump negou a existência da crise climática, justificando que, durante sua administração, não havia grandes problemas. Além da China, culpou o governo Biden pelos problemas existentes.
Destaca-se ainda, a insistência retórica de Trump em culpabilizar a China e referenciar Biden como um presidente que não consegue lidar e conter o avanço chinês, o que é prejudicial para os Estados Unidos e seus setores estratégicos. Nesse sentido, Trump alegou que, “para finalizar, agora temos o maior déficit da história do nosso país com esse homem, temos o maior déficit com a China. Ele é pago pela China. Ele é um candidato da Manchúria. Ele recebe dinheiro da China. Portanto, acho que ele tem medo de lidar com a China, ou algo assim”. Trump também aproveitou para atacar a política externa da administração Biden, atribuindo as guerras no cenário internacional atual ao governo de seu adversário, bem como delegando a culpa do declínio do poder norte-americano à mesma gestão.
Conflitos entre Rússia e Ucrânia e Israel e Hamas se sobressaem no âmbito da política externa
O cenário internacional tem sido permeado por instabilidades em diferentes regiões. Alguns conflitos e instabilidades se destacam mais do que outros e, não diferentemente, esse destaque também ganhou espaço no primeiro debate entre candidatos na corrida pela Casa Branca em 2024.
A moderadora Dana Bash propôs o tema sobre política externa com ênfase na guerra da Rússia contra a Ucrânia como o primeiro ponto e questionou Trump, primeiro, se os termos propostos pelo presidente russo, Vladimir Putin, para encerrar a guerra eram aceitáveis. Trump rapidamente culpabilizou Biden também pela guerra, invocando a retórica de fraqueza do democrata ante as adversidades internacionais. Para Trump, se ele ainda estivesse na Casa Branca, a guerra nunca teria se iniciado. Dessa forma, Trump tenta transmitir ao eleitor norte-americano que a guerra teve início, em razão da fraca liderança da administração Biden no âmbito da política externa. Nesse sentido, Trump menciona a saída considerada desastrosa do Afeganistão, durante a gestão da atual presidência, como forma de ilustrar, segundo ele, mais um fracasso da administração Biden para a liderança global dos Estados Unidos no mundo.
No conflito Israel-Hamas, Trump também foi enfático em delegar a culpa de mais um conflito à má gestão de Biden, justificando que a atual presidência contribuiu para essa crise, na medida em que não enfraqueceu o Irã financeiramente.
Já Biden se defendeu, fazendo referências a falhas cometidas por Trump em seu governo. Aqui, mais uma vez, é importante destacar que o debate se construiu e lapidou por meio dos erros de cálculos estratégicos de cada administração, o que é um marco na história norte-americana. Normalmente, os debates se configuram como o apontamento do novo candidato ao presidente na Casa Branca, e não de dois presidentes com passagens pela Casa Branca. No caso da guerra da Rússia na Ucrânia, Biden sublinhou que Trump incentivou Putin, durante sua administração, a invadir o território ucraniando por meio dos seus atos discursivos.
(Arquivo) O então presidente Donald Trump e seu homólogo russo, Vladimir Putin, em Moscou, em 16 jul. 2018 (Crédito: Casa Branca/Shealah Craighead)
Trump utilizou, com frequência, uma retórica que coloca na guerra a culpa pelos problemas econômicos do país, como já aconteceu em eleições anteriores. No entanto, ao ser questionado sobre como solucionar os conflitos em andamento, não deu uma resposta que fornecesse uma solução viável. Como se o “medo” embutido em sua retórica fosse a chave para resolução dos conflitos e, consequentemente, a retomada da liderança global estadunidense. De outro modo, a hipótese levantada por Trump é de que o fim das crises está diretamente associado a sua presença no cenário internacional como presidente.
Em síntese, em meio a um mundo cada vez mais permeado de conflitos e de instabilidades com impactos econômicos diretos, a política externa tem conquistado seu espaço na agenda eleitoral, e a disputa estratégica com a China tem colocado isso em voga a cada dia da campanha atual.
Repercussão posterior: redesenho de campanha e democratas em pânico?
A repercussão após o debate foi tão ou mais caótica que o debate em si. As equipes de campanha de Biden e Trump foram ativas nas redes sociais dos candidatos, Twitter (X) e Truth Social, com postagens de ataques e reiteração de colocações dos candidatos durante a discussão. Uma pesquisa da CNN aponta que 67% dos eleitores registrados que assistiram ao debate dizem que Trump teve um desempenho melhor que Biden. No que tange à confiança na governabilidade, a porcentagem de observadores democratas caiu de 54%, antes do debate, para 39%, depois, a respeito da confiança na capacidade de Biden de liderar o país. Entre os republicanos, 69% disseram, após o debate, terem muita confiança em Trump, um número próximo aos 73% que tinham essa opinião antes do evento.
Em relação à grande mídia, o desempenho de Biden e uma possível substituição do candidato prevaleceram como os principais tópicos das notícias e dos editoriais da imprensa americana e internacional, como os jornais The New York Times, The Wall Street Journal, The Washington Post, e as revistas Time e The Economist. Nesse sentido, é emblemática a imagem usada pela Time em uma reportagem, assim como a da capa da The Economist. Sobre um fundo vermelho e bordas brancas, a imagem que ilustra uma reportagem da Time sobre o debate traz uma única palavra escrita (“Panic.”) do lado esquerdo, e Biden saindo de cena pelo canto direito. A Economist foi ainda mais dura, desrespeitosa e etarista com Biden. Na capa da edição de 6 de julho, a revista traz a imagem de um andador de idosos com o selo do presidente dos Estados Unidos na frente e a frase “No way to run a country” (tradução livre: sem condições de dirigir um país).
Imagem na revista Time, após o debate
“It was a really disappointing debate performance from Joe Biden” (tradução livre: foi um desempenho de debate realmente decepcionante de Joe Biden). Essa foi a frase dita por Kate Bedingfield, ex-diretora de Comunicações de Biden, que ecoa os pensamentos e sentimentos de muitos eleitores, apoiadores de campanha e membros do Partido Democrata sobre o presidente no debate. No Capitólio, o pânico entre legisladores e funcionários democratas após o debate era evidente. Houve, também, uma movimentação dos doadores da campanha acerca da situação de Biden, inclusive entre os principais doadores de Hollywood.
Apesar dessa comoção, vale ressaltar que a substituição de Biden como candidato às eleições pelo Partido Democrata envolve diversos fatores, como: uma disputa interna no partido, com todos os delegados que Biden conquistou até agora (pelo menos 3.937); um jogo de influência para mudar esse cenário em um período muito curto de tempo; as normas eleitorais do Partido Democrata; e a própria vontade do candidato de desistir da disputa antes de ser formalmente nomeado.
Como o pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e professor da Universidade de Denver (EUA), Rafael Ioris, pontua em entrevista para a revista Carta Capital, não existe um retrospecto histórico claro nos Estados Unidos, referente à retirada da candidatura de Biden, a não ser que ocorra de uma maneira traumática, em que ele abra mão de sua candidatura. Uma movimentação para fazê-lo sair da concorrência seria problemática para uma base mais histórica dos democratas.
Além da vice-presidente Kamala Harris, alguns nomes levantados para disputar a nomeação incluem os governadores Gretchen Whitmer, de Michigan, Gavin Newsom, da Califórnia, e J.B. Pritzker, de Illinois. Após o debate, entretanto, Newsom rejeitou os pedidos para que Biden seja removido da chapa democrata. Do mesmo modo, Kamala defendeu o presidente: “People can debate on style points, but ultimately this election and who is the president of the United States has to be about substance. And the contrast is clear” (tradução livre: “as pessoas podem debater sobre questões de estilo, mas, em última instância, esta eleição e quem é o presidente dos Estados Unidos têm que ser uma questão de substância. E o contraste é claro”).
No dia seguinte, 28 de junho, Biden fez um discurso de 15 minutos em uma parada da campanha na Carolina do Norte. Na ocasião, ele falou não só sobre suas propostas de campanha, entre elas o intuito de restaurar Roe v. Wade e defender o Medicare e a Previdência Social, mas também criticou Trump, o qual teria a “moral de um gato de rua”, devido às inverdades proferidas no debate, e seria “não apenas um criminoso condenado”, mas também “uma onda de crimes de um homem só”. Trump, por sua vez, ao discursar na Virgínia, tirou a atenção de si e a manteve em Biden. Ao reiterar as críticas que o incumbente vem sofrendo, Trump chamou Biden de “grosseiramente incompetente”, por exemplo, e fez ataques a sua aparência e idade, mesmo que ele mesmo, hoje com 78, seja apenas quatro anos mais novo que Biden.
De “Kennedy vs. Nixon” a “Biden vs. Trump”: os debates ainda importam?
O primeiro debate televisionado nos Estados Unidos aconteceu em 1960 entre os candidatos John F. Kennedy e Richard Nixon. Naquele momento, Nixon era o favorito a vencer, mas sua aparência (doente, pálido e cansado), em contraste a um jovem Kennedy, que aparentava e soava bem na televisão, fez sua candidatura degringolar. Antes do debate, Nixon liderava por seis pontos percentuais, mas perdeu para Kennedy por uma margem extremamente estreita. Depois disso, nas três campanhas seguintes, o presidente em exercício se recusou a participar de qualquer debate.
(Arquivo) Segundo debate presidencial entre Kennedy e Nixon, televisionado, ocorrido em 7 out. 1960, nos estúdios WRC-TV, da NBC, em Washington, D.C. (Crédito: United Press International/Wikimedia Commons)
Esse é um dos casos mais emblemáticos da história quando se fala em debates nos Estados Unidos, pois representou uma virada na campanha de Kennedy, que saiu vencedor. Como Ioris observa, apesar de os debates não terem a importância histórica que algum dia tiveram, sua repercussão tem um alcance muito grande, devido às redes sociais, principalmente, e à construção da narrativa pós-debate, que gera um impacto nessa repercussão. A narrativa construída, de que Biden perdeu o debate e de que deveria ser substituído, é algo que tem se disseminado pelas mídias, tradicional e nova.
Em concordância a isso, entende-se que Trump se fortalece nesses momentos de caos e de domínio de narrativas. Em 2016, na disputa à presidência com Hillary Clinton, ele e sua equipe de campanha conseguiram implementar uma comunicação baseada na desinformação e no domínio de uma narrativa construída e difundida nas redes sociais. Inclusive, na campanha de 2016, Hillary sofreu críticas machistas e misóginas por parte de Trump, da mídia e até do eleitorado. Trump chegou a acusar Clinton de “jogar a carta da mulher”, sugerindo que ela tinha pouco a oferecer além do seu gênero.
Apesar de esta ser uma eleição diferente da de 2016 e de Trump não ter conseguido se reeleger contra Biden em 2020, é preciso ressaltar como o enfraquecimento de Biden após o debate favorece o lado republicano e pode ser decisivo para o resultado dessa eleição. Seja pela abdicação e substituição de Biden como candidato democrata, seja por sua decisão de continuar na campanha, mas, eventualmente, ser derrotado por Trump em novembro. Além disso, é inegável o esvaziamento de tópicos importantes e de propostas de governos, os quais deveriam ser os verdadeiros protagonistas em um debate.
* Andressa Mendes é pesquisadora colaboradora do INCT-INEU/OPEU e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Contato: [email protected].
Lauro Henrique Gomes Accioly Filho é pesquisador colaborador do OPEU e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Contato: [email protected].
Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: [email protected].
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 2 jul. 2024. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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