O artigo Argentina Entenda a perseguição a Cristina Kirchner e a mobilização contra sua condenação, publicado pelo Esquerda Diário, pertencente ao Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), é uma excelente demonstração do papel que a esquerda pequeno-burguesa teve no golpe de Estado que foi a vitória eleitoral de Javier Milei.
O artigo é uma pretensa reportagem sobre uma grande manifestação que houve na Praça de Maio, em Buenos Aires, contra a condenação da líder nacionalista Cristina Kirchner, que governou o país entre 2007 e 2015. A manifestação, naturalmente, é, ainda que tardia, correta — o problema está na avaliação que o órgão do MRT faz sobre a situação política e, principalmente, na conduta em relação a própria manifestação.
Ao abordar o caso da ex-presidente argentina em si, o MRT escreve:
“Trata-se de uma medida proscritiva encabeçada pelo Poder Judiciário em uma investigação claramente viciada e impopular, frente ao vínculo dos juízes do caso com distintos setores da direita, como Maurício Macri, opositor direitista, e com grandes empresários ligados a AEA (Associação Empresarial Argentina).”
Por medida proscritiva, entende-se uma medida que procura banir Kirchner — embora o MRT não explique por que — do regime político.
A descrição do Esquerda Diário é um embelezamento da situação. A condenação de Kirchner é um golpe de Estado. É uma medida que visa aprofundar o Estado policial existente na Argentina, com o objetivo de impor a política criminosa do grande capital — política esta que só é possível por meio de um regime ditatorial.
Esta política, a do golpe de Estado, é uma política regional — ocorre em toda a América Latina. E, por sua vez, é reflexo da crise mundial do imperialismo, que necessita de ditaduras cada vez mais duras para impor sua política cada vez mais impopular.
Por que o MRT é incapaz de afirmar que se trata de um golpe? Em primeiro lugar, porque isso implicaria em reconhecer que, no Brasil, o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que visa prender o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é, também, um golpe. Mas, neste caso, o MRT está ao lado dos togados que representam o grande capital.
Em segundo lugar, dizer que é um golpe colocaria em xeque a política do MRT em relação a Cristina Kirchner. Obrigaria o grupo a formar uma frente única com o La Cámpora, grupo político da ex-presidente. Ou seja, obrigaria, de fato, o MRT a adotar uma política de choque com o imperialismo, coisa que o grupo nunca fez em um único momento de sua existência.
Isso é o que fica claro no seguinte trecho:
“O PTS e a FITU participaram da mobilização na Praça de Maio como parte da convocação independente, que defende a luta contra a proscrição política, mas mantém uma posição autônoma em relação ao peronismo e sustenta que é necessário um plano de luta e uma grande mobilização nacional para derrotar esse ataque.
Por esse motivo, o bloco do PTS não esteve presente na praça durante o discurso da ex-presidente Cristina Kirchner. Myriam Bregman, Nicolás del Caño e Christian Castillo, figuras de destaque e deputados nacionais desse partido, estavam presentes desde às 13h, quando ocorreu a concentração dos setores que marcharam de forma independente. Essa convocação não implicava apoio ou adesão ao “peronismo nem a Cristina Kirchner.
O PTS (Partido dos Trabalhadores Socialistas) é o partido-matriz do MRT. Portanto, ao relatar a posição do PTS, o MRT está, ao mesmo tempo, apresentando qual é a sua política.
Em meio a um golpe de Estado, o PTS teve a incrível capacidade de… dividir o ato contra a direita! Isso porque, independentemente do que pense ou escreva o Esquerda Diário, a condenação de Kirchner é parte de um golpe de Estado. E a mobilização contra sua prisão é, portanto, objetivamente, uma mobilização contra este golpe.
A conduta do PTS, além de absolutamente infantil, de virar as costas na hora do discurso de Kirchner, é, sem tirar nem por, uma proposta de dividir esta mobilização. Na prática, houve dois atos: o ato dos “puros”, que não se misturam com peronistas para combater a direita, e o ato dos peronistas e outros setores.
É a mesma política vista no Brasil em 2016, quando setores golpistas da esquerda brasileira criaram a Frente Povo Sem Medo. O MRT apoiou a fundação da frente naquela época.
O objetivo era claro: quando havia uma mobilização ou mesmo uma tendência à mobilização contra o golpe contra Dilma Rousseff, a Frente Povo Sem Medo atuava para dividir o movimento, fazendo uma campanha que favorecia à derrubada da presidente.
Na Argentina, o PTS repete a receita. Para o partido, mais importante que unificar todos contra o inimigo comum é enfraquecer essa unidade.
Foi graças a essa miopia que Mauricio Macri chegou ao poder em 2015, surfando na campanha golpista feita pelo PTS e outros partidos da esquerda pequeno-burguesa argentina contra o kirchnerismo. Essa mesma política levou a uma desmoralização tão grande da esquerda que Cristina Kirchner se recusou a concorrer novamente às eleições como candidata principal.
O resultado seria o governo desastroso de Alberto Fernández e, por fim, a vitória do fascista Javier Milei.