Esqueça a Ucrânia, o alvo do trumpismo é a China (e o BRICS)

por Márcio Sampaio de Castro

Em abril de 1971, uma delegação de atônitos jogadores da seleção de tênis de mesa dos Estados Unidos se viu em uma inesperada visita ao Grande Salão do Povo, em Pequim, na presença do então primeiro-ministro Zhou Enlai, braço direito do líder chinês Mao Tsé-Tung. Era a primeira vez, desde a ascensão ao poder do Partido Comunista da China, pouco mais de duas décadas antes, que um grupo de norte-americanos visitava oficialmente o país. Eles estavam ali para uma série de jogos de exibição contra a seleção local. O evento marcaria o início do degelo nas relações bilaterais entre os dois países e a reaproximação ficaria conhecida como a “Diplomacia do Pingue-Pongue”.

Do lado estadunidense, a estratégia havia sido concebida por Henry Kissinger, o secretário de Estado da administração Richard Nixon. Valendo-se das crescentes tensões entre a URSS e a República Popular da China (RPC) no período, os EUA buscavam provocar um racha decisivo no bloco comunista, atraindo paulatinamente o país de Mao para a sua esfera de influência. Para isso, Washington estava disposta a reconhecer a legitimidade da RPC, promover investimentos no país e, com sorte e sedução, transformá-lo no futuro em um polo de desenvolvimento econômico e de subordinação política, a exemplo do que já vinha promovendo no Japão e na Coreia da Sul.

O resultado não foi bem o esperado. Passadas poucos mais de cinco décadas desses eventos, o Partido Comunista da China (PCC) permanece sólido à frente da nação chinesa e o país se converteu no maior parque manufatureiro do mundo, no maior exportador, num centro de desenvolvimento tecnológico da quarta revolução industrial e em uma liderança global capaz de fazer sombra aos EUA como nenhum outro país o foi realmente nos últimos cem anos.

Para os formuladores da política externa estadunidense atualmente, a China incomoda muito mais do que a Rússia e sua estridente incursão militar na Ucrânia. Mas ao contrário da impressão de atabalhoamento existe método nessa política.

Esqueça a Ucrânia

Desde que assumiu seu segundo mandato, em janeiro deste ano, Donald Trump tem anunciado urbi et orbi sua intenção de promover a paz na Europa, encerrando o conflito russo-ucraniano. Tornou-se tristemente memorável a altercação entre ele, seu vice-presidente J.D. Vance e Volodimir Zelensky no Salão Oval da Casa Branca por ocasião da visita do presidente ucraniano aos EUA. Em uma cena nada diplomática, falas duras, deselegantes e sobrepostas marcaram o que pareceu ser uma ruptura entre os dirigentes dos dois países. Zelensky mostrou-se particularmente irritado pelo fato de Washington iniciar uma negociação de paz com a Rússia sem sequer convidá-lo ou mesmo consultá-lo a respeito. Mas como lhe disse Trump claramente duas vezes no encontro, ele não tem mais cartas pra jogar. Está fora do jogo.

Muitos analistas foram céleres em dizer que Trump é um admirador do dirigente russo, Vladimir Putin, a quem respeitaria como modelo de chefe de Estado e a quem buscaria agradar em uma mal disfarçada subserviência. Outros acreditam nas propaladas boas intenções do mandatário norte-americano de promover a paz em nome da estabilidade global e dos negócios, criando uma espécie de Ialta 2.0 – a reunião entre os vencedores da Segunda Guerra, que desenhou o mundo pós-1945 – à qual os chineses seriam possivelmente convidados no futuro.

São dois erros de avaliação baseados em subestimação ou desconhecimento do coração da administração Trump. O que temos agora é uma retomada da estratégia de Kissinger, porém com o sinal invertido. Fazer a vontade dos russos no conflito ucraniano atualmente equivale ao que foi a retirada do reconhecimento do Kuomintang, de Taiwan, como legítimo representante do povo chinês posteriormente repassado ao PCC. Neste jogo de xadrez (ou de cartas, se preferirem), a Ucrânia é uma peça menor que pode ser sacrificada, como foi feito com Taiwan em 1971. Para isso, atrair e mimar os russos, atendendo suas demandas, torna-se um mal menor. Alcançar o objetivo de romper a aliança sino-russa, desmantelar o progresso chinês e destruir o BRICS é o que importa.

Mas para entender como e por que o núcleo duro trumpista projeta esse cenário é preciso olhá-lo mais detidamente.

Falcões sinófobos

Os três principais nomes indicados por Donald Trump para atuar na área de política externa são reconhecidos falcões sinófobos.

Michael Waltz, veterano de guerra e ex-membro da Guarda Nacional, é o conselheiro de segurança nacional. Em 2020, apoiou os movimentos de não reconhecimento do resultado das eleições. Como congressista, defendeu o boicote dos EUA aos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, sob a alegação de que o vírus Covid-19 teria sido criado e disseminado pelos chineses. Em 2024, publicou um artigo na revista The Economist onde abertamente defendeu o encerramento dos conflitos na Ásia Ocidental e na Ucrânia para a liberação de recursos necessários para enfrentar a China em um conflito armado.

O diretor de toda a comunidade de inteligência, cujo principal órgão é a CIA, John Ratcliffe, defende focar as atividades de inteligência no gigante asiático, “nossa ameaça de segurança prioritária”, em suas palavras.

Já o secretário de Estado, Marco Rubio, durante a audiência no Senado que o aprovou para o cargo, classificou a China como “a maior ameaça à prosperidade dos EUA no século XXI”.

Uma vez à frente do cargo, a primeira viagem de Rubio ao exterior ocorreu em fevereiro. Ao contrário das tradicionais viagens inaugurais a Londres, Bruxelas ou Berlim, Rubio foi ao Panamá conversar com o presidente José Raúl Mulino. Após o encontro entre os dois, o presidente panamenho convocou uma entrevista coletiva, tendo o ilustre visitante ao seu lado, quando comunicou ao mundo que o Panamá estava naquele momento se retirando da iniciativa da Nova Rota da Seda, além de suspender o contrato de cessão da administração do Canal do Panamá celebrado com a empresa CK Hutchison Holding, sediada em Hong Kong. Por U$ 23 bilhões, os direitos foram repassados para um consórcio norte-americano capitaneado pelo gigantesco fundo de investimentos nova-iorquino BlackRock Inc.

Bilionários, Projeto 2025 e o MAGA

É realmente interessante a interseção entre os falcões, as grandes corporações e os bilionários na nova administração. Para compor o alto escalão de seu governo, Donald Trump convidou 13 bilionários. Combinadas suas fortunas equivalem, segundo estimativas, a U$460 bilhões.

O primeiro da lista é o diretor do Departamento de Eficiência Governamental, Elon Musk e seus cortes de gastos indistintos que modulam uma visão tecno libertária na qual o Estado operacionalmente deve ser desidratado, funcionando apenas como financiador de projetos privados. Não por coincidência, suas empresas SpaceX, Starlink, Tesla e agora sua nova companhia voltada ao desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial: xAI são sorvedouras de recursos públicos. Pode-se dizer que o bilionário sul-africano comprou seu lugar no governo ao doar U$25 milhões de dólares para a campanha presidencial de Trump.

Outro bilionário de destaque é o banqueiro Howard Lutnick, secretário do comércio, que é um dos artífices da “guerra tarifária” que ameaça implodir o acordo de livre comércio da América do Norte (USMCA), os laços comerciais com a Europa e, principalmente, inviabilizar as exportações chinesas.

Scott Bessent, o secretário do tesouro, é fundador do fundo de investimentos Key Square Group. Em sua biografia constam os milhões de dólares amealhados especulando contra a libra esterlina nos anos 1990 ou contra o yen em 2013.

À frente da Agência Espacial (NASA) está Jared Isaacman, homem que fez fortuna com sua empresa de processamento de pagamentos Shift4 e também com a exploração espacial privada, a exemplo de seu amigo Elon Musk.

A lista ainda tem nomes como Linda McMahon, Vivek Ramaswamy e, informalmente, a figura de Peter Thiel, o mentor de J.D. Vance. Todos entusiastas do Make America Great Again, o MAGA, que mais do que um slogan de campanha encerra uma constatação e um plano de ação. A constatação é de que os EUA são uma potência hegemônica em decadência ameaçada, adivinhe, pela China. O plano de ação chama-se Projeto 2025.

O Projeto elaborado pela Heritage Foundation é a carta de intenções, cujo objetivo é a consolidação absoluta de uma plutocracia. Os primeiros dois meses da administração Trump, com suas ações no campo político, econômico, social e administrativo, deixam claro que as diretivas preconizadas pelo Projeto estão sendo cumpridas à risca: a criação de um regime com inclinações autoritárias, anti-participação popular e comandado por um pequeno grupo detentor de grande riqueza. O capitalismo na sua forma mais brutal.

Neste concerto, o modelo de desenvolvimento chinês se configura como uma antítese incômoda e indesejável. E é por isso que para este grupo torna-se inescapável a concentração de forças para o grande confronto decisivo contra o país asiático.

Estratégia Kissinger ao reverso

Durante o primeiro mandato de Trump, o vetusto Henry Kissinger chegou a visitá-lo em mais de uma oportunidade em encontros a portas fechadas. Sabe-se que o tema discutido nessas ocasiões foi política externa, notadamente as relações com as potências Rússia e China. Segundo uma reportagem publicada pela revista eletrônica The Daily Beast em 2018, Kissinger teria aconselhado o mandatário a incrementar as relações dos EUA com a Rússia, criando condições para o isolamento chinês. Ou seja, uma reversão de sua estratégia do início dos anos 1970.

Em entrevista ao jornalista Tucker Carlson, durante a campanha presidencial em 2024, Trump voltou ao tema e deixou claro que essa estratégia seria a mais acertada caso retornasse à Casa Branca.

Existe, claro, uma significativa dose de pimenta neste caldo. O MAGA possui uma forte influência de ideias e ideais supremacistas. A China, além de potência asiática não-branca, é ateísta, comunista e vista como uma ameaça à “Civilização Judaico-Cristã Ocidental”.  Neste sentido, a aproximação com a Rússia faria mais sentido. Trazê-la de volta para a “Civilização” não seria problema. Afinal, os russos são majoritariamente brancos e cristãos. À Europa e, particularmente, à Ucrânia caberia o papel de submissão automática.

J.D. Vance em seu périplo europeu em fevereiro deste ano deixou isso claro na Conferência de Segurança de Munique ao enfocar os imperativos da “guerra cultural” que estaria em curso, ameaçando os valores ocidentais. Segundo ele, os europeus deveriam internamente abandonar os princípios do “globalismo” e externamente focar no crescente perigo e reduzir as relações com o gigante chinês, “um mestre autoritário que busca se infiltrar e profundamente se instalar em sua infraestrutura de informação”.

Em resumo, toda a estrutura construída interna e externamente pelos chineses nas últimas duas décadas e meia, envolvendo seu parque industrial, os projetos da Nova Rota da Seda e o BRICS estariam sob forte ameaça de desmantelamento. Novos sinais foram enviados pela Casa Branca no início de março com mais uma rodada de aumento de tarifas sobre produtos chineses.

Cansados de ações provocativas e da retórica agressiva os chineses abandonaram o tradicional comedimento e através de sua embaixada em Washington publicaram na plataforma digital de Elon Musk o seguinte recado: “Se é guerra o que os EUA querem, seja uma guerra tarifária, uma guerra comercial ou qualquer outro tipo de guerra, estamos prontos para lutar até o fim”.

Façam suas apostas.

Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).

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Last Update: 10/03/2025