Espíritas em queda livre: diversas causas, um efeito, e múltiplas preocupações
por Marcelo Henrique e Marcus Braga
Para além da mera ilação, padece a preocupação, em relação aos resultados do Censo 2022, não pela redução de adeptos em si, mas pelo que pode estar por trás disso, o que enseja dos espíritas sérios e estudiosos o permanente debate acerca de o que somos, quem somos, o que queremos e como podemos aperfeiçoar nossas ambiências de estudo, trabalho e, principalmente, convivência afetiva e empática de todos.
Nessa primeira sexta de junho, dia 6, os periódicos, sites e portais trouxeram uma notícia derivada do Censo Nacional do IBGE (2022), publicada pela Agência do instituto governamental às 10 horas da manhã [1]. Eis, aí, o ponto de partida para nossas análises.
Vale dizer, ab initio, que o Censo é um levantamento oficial, de uma agência especializada da Administração Pública brasileira (Governo Federal), sem similar em território nacional, sendo realizado a cada dez anos, desde que o Brasil se tornou uma república (somente em 1910 e em 1930, em face de conturbações políticas, ele não foi realizado).
O que diz o Censo 2022 sobre Religiões
No Censo atual, são compilados dados do período 2010-2022 (um período bastante relevante de mais de uma década, portanto), que apresenta a seguinte conformação tipológica comparativa:
Tipo de Religião (*) | Dados 2022 (%) | Dados 2010 (%) | Diferença (+/-) (%) |
Catolicismo | 65,1 | 56,7 | 8,4 |
Neopentecostalismo | 26,9 | 21,6 | 5,2 |
Umbanda/Candomblé | 1,0 | 0,3 | 0,7 |
Espiritismo | 1,8 | 2,2 | (-) 0,3 |
Sem Religião Declarada | 9,3 | 7,9 | 1,4 |
(*) O próprio levantamento do IBGE permitia a identidade do Espiritismo como Religião, para aqueles que assim a consideram, resultando nesta identidade tipológica.
O quadro em tela, assim, em mera simbologia matemática demonstra que todos os tipos cresceram, à exceção dos adeptos da “religião espírita”, que decresceu.
Este elemento é o ponto principal deste artigo, como veremos a seguir.
Espanto ou furor?
Nestas primeiras vinte e quatro horas de divulgação dos dados em comento, podemos dizer que a notícia causou furor no meio espírita. Mais furor do que espanto.
Uma das matérias midiáticas publicadas logo em seguida, veiculada por um dos maiores portais (G1) [2], destaca, no nosso segmento, o espiritualista reencarnacionista, a informação de que a parcela de brasileiros que se declaram como praticantes da umbanda ou candomblé triplicou no Brasil, de 2010 a 2022, saltando de 0,3% para 1%, enquanto o número de espíritas caiu de 2,2% para 1,8%, no mesmo período.
Surgem, no contexto da própria reportagem, algumas razões desse fenômeno. Uma delas, segundo a especialista pelo tema no IBGE, Maria Goreth Santos [2], o crescimento dos adeptos de crenças de matiz africana não decorre da conversão, mas estaria ligada à condição de maior segurança pessoal e liberdade das práticas dos cultos afrobrasileiros. Ela também menciona a redução do medo/vergonha em se assumir como umbandista/candomblecista – que fazia com que muitos destes se declarassem, mascaradamente, como espíritas – mas que, agora, diminuiu significativamente. Voltaremos à questão da “máscara”, adiante, embora com outra contextura.
O elemento principal, logo após a divulgação tanto do texto da agência quanto das reportagens midiáticas, é a repercussão dos dados estatísticos entre os espíritas. Sobrevoando as redes sociais e analisando as manifestações em grupos de zap formados por espíritas, vinculados a instituições ou projetos, assim como na adesão de plataformas do aplicativo que divulgam notícias e textos, constatou-se que o tema provocou um enorme interesse e resultou em muitos engajamentos e interações, superando de muito a notícia da recente morte de uma personalidade mediúnica brasileira.
O furor está associado à ideia (decantada e divulgada com frequência) de que o quantitativo dos espíritas “está crescendo” ou “tem aumentado” em terras brasileiras, justamente pela expansão do conhecimento sobre os princípios da Filosofia Espírita e pelo interesse de grande parte da população mundial com temas “espirituais” (reencarnação, lembranças de vidas passadas, vida extraterrestre, comunicação entre “vivos” e “mortos”, futuro pós-morte da alma, etc.).
Assim, muitas manifestações foram depreciativas no sentido de desqualificar o levantamento governamental ou achincalhar aquelas pessoas que, mesmo frequentando instituições espíritas ou “consumindo” material espiritista (livros, revistas, filmes, etc.), não se declara oficialmente como tal.
Existem outras causas para a diminuição dos adeptos espíritas?
É possível aventar outras causas, como os efeitos pós-pandemia, o crescimento do ateísmo, a personificação da religião em determinadas figuras representativas, a interpolação de questões não-religiosas ou não-filosóficas nos ambientes ditos religiosos, a insatisfação em relação a resultados (relacionados às buscas sobre respostas, que levam indivíduos às instituições), o descrédito de alguns personagens ligados a práticas espíritas (em face do cometimento de atos ilícitos ou crimes, submetidos a processos judiciais e condenações), mas uma assertividade plena e fundamentada somente seria possível com um estudo qualitativo junto a pessoas que formam o grupo que deixou de se professar espírita, o que, reconhecemos, não é algo fácil em termos acadêmico-científicos.
Nesse particular, vale a ressalva, também, que em ciência não se tem qualquer objetivo de delimitar uma única causa para situações pesquisadas e que os resultados obtidos são derivados da amostra escolhida, podendo ou não serem repetidos e validados por outras amostras e pesquisas, dentro dos critérios de lógica, racionalidade e qualificação dos experimentos.
A ambiência do Censo
Curiosamente, o período compreendido entre 2010 e 2022 foi caracterizado por profundas agitações políticas no país, com polarizações, manifestos conflitos e com um envolvimento direto das religiões, tanto no macro quanto no microcosmo, nesses entreveiros, em situações nunca vistas na história da República e que afetaram a todas as denominações filosóficas e religiosas, em especial o Espiritismo, com lutas intestinas e públicas.
E esta contingência praticamente dual e maniqueísta, marcantemente estabelecida entre duas lideranças políticas nacionais prossegue neste 2025 e será, com certeza, elemento de nova polarização no pleito eleitoral nacional de 2026, simbolizando uma continuidade inafastável para os próximos anos, independente do resultado das eleições presidenciais.
Tais polaridades são manifestas nas próprias individualidades e se ampliam nos grupos, mesmo considerando a proeminência de dirigentes e líderes (sobretudo médiuns e expositores-palestrantes, assim como escritores e articulistas), que, em muitas situações, são manifestamente adeptos de tais lideranças políticas ou das ideologias que os representam.
Para que não pairem dúvidas acerca da temática acima, a dualidade está caracterizada sociopoliticamente entre conservadores e progressistas, ou entre direita e esquerda, respectivamente.
Diagnoses possíveis
O Censo 2022, ao demonstrar uma redução de adeptos, nos remete à ideia do afastamento de muitas pessoas das ambiências espíritas presenciais, representadas por instituições e grupos “com CNPJ”, isto é, os “templos” ou centros espíritas. Mas não nos esqueçamos que a não-afirmação de indivíduos como espíritas, no Censo, deve ser analisada também em relação à amplitude que alcança a resposta censitária: além de deixar de participar de tais ambiências, o indivíduo pode (deve) ter se desiludido com as informações recebidas – que, neste particular, são pessoalizadas, porque derivam da interpretação de pessoas sobre elementos filosófico-doutrinários. Um médium, um articulista, um expositor-palestrante interpreta informações espíritas (ou de origem “espiritual”, isto é, a partir de aportes de desencarnados – incluindo-se, aí, as transmissões orais “mediunizadas” de determinadas personagens, hoje disponíveis facilmente em transmissões e gravações de vídeos, e os livros “psicografados”).
Em outras palavras, entre o que consta das trinta e duas obras originárias espíritas (assinadas por Allan Kardec, na segunda metade do Século XIX) e a interpretação (contemporânea) do que lá está, e o que é “dito” ou “escrito” como sendo correlacionado àquele conteúdo, de modo explicativo/interpretativo, há uma distância abissal. E, não podemos nos esquecer, igualmente, daquilo que foi produzido por todo o século XX e nestas três primeiras décadas do XXI, mediunicamente ou não, em obras “sofríveis” que, a pretexto de “atualizar” o conhecimento espírita para temáticas que, obviamente, não faziam parte do contexto europeu da época de Kardec, e que tem sido “tratadas” por “autores espíritas”.
É preciso destacar que “neutralidade” é uma condição inexistente, quando se trata de pessoas (Espíritos encarnados e desencarnados). Ninguém se “despe” de suas convicções e ideologias, quando adentra uma instituição ou assume um teclado ou uma caneta, assim como um microfone em canal de vídeo, para “falar” o que pensa. Da mesma forma como, em pedagogia, o progresso levou ao total abandono da canhestra ideia de que o estudante/aluno/aprendiz seria uma “folha em branco” para que, nela, fossem escritos os “conhecimentos” repassados pelo professor/instrutor/orientador, é preciso entender que o espírita fala do que pensa, sente e aceita (ou desqualifica). Razão pela qual é, mais uma vez, necessário ponderar acerca de não se confundir Doutrina ou Filosofia Espírita com seus expoentes ou “representantes”.
E, por outro lado, inclusive pela esteira desenvolvida e recomendada por Kardec, não se deve aceitar cegamente aquilo que vem dos Espíritos (sejam os imateriais, sejam os encarnados). Tudo deve passar pelo exame lógico-racional, o que nos leva a repetir o adágio de Erasto, sobre ser “preferível rejeitar dez verdades do que aceitar uma só mentira” [3].
O modus operandi da religião espírita
Um salto de qualidade, neste contexto, seria o de reformulação do modus operandi da religião espírita – e, talvez, o abandono desta condição de “igreja” que é marcante na imensa maioria das instituições espalhadas por todo o território tupiniquim, que é de uma retórica impositiva, de uma doutrinação salvacionista e que estabelece como “único” requisito para o aperfeiçoamento espiritual, a ideia de “reforma íntima”.
Em outras palavras, a causa principal do afastamento das pessoas de ambiências espíritas não está relacionada à “matéria de crença”, mas a formatação da ideologia e suas práticas.
Senão, vejamos.
Os indivíduos, nas instituições e grupos espíritas, são “aconselhados” (vamos utilizar uma expressão bem branda, apesar de entendermos que há um componente de excessiva pressão psicológica contido nas “entrevistas” de “atendimento fraterno”, assim como nas prédicas, tanto públicas, como as palestras e reuniões abertas, quanto privadas, como atividades mediúnicas que são lideradas por uma ou poucas pessoas, responsáveis pela “doutrinação” de encarnados/desencarnados). Há toda uma retórica baseada no NÃO (não fazer, não demonstrar, não prosseguir em comportamentos e atitudes), que produz, das duas, uma: ou o indivíduo passa a ter uma conduta exterior mascarada, como se fosse uma “ovelhinha”, um ser “espiritualizado”, ou ela desiste da frequência em função das excessivas e permanentes cobranças.
Mesmo em religiões bem antigas e tradicionais, como a católica, esta “cobrança” não ocorre de forma acintosa, como é o caso dos ambientes espíritas. E vamos demonstrar para os que têm “olhos de ver e ouvidos de ouvir” [4].
As religiões cristãs, é claro, falam do porvir, da vida após a morte, posto que espiritualistas ou são, crendo e patrocinando a ideia da sobrevivência da morte. Paulo (de Tarso) teria dito: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão” [5]. A partir daí, e retrocedendo à toda a contextura, primeiro judaica, depois cristã, perpassando os ditos e os feitos de Yeshua, a crença sobre a imortalidade pertence ao “cenário” religioso cristão. Neste espectro, a liturgia aponta, conhecidamente, para três lugares, na Erraticidade: Céu, Purgatório e Inferno, pela ordem, considerando o melhor, o intermediário e o pior lugar (destino).
Mas e o Espiritismo, o que diz sobre Céu, Inferno e Purgatório? Vejamos…
Kardec tratou dos temas relativos ao “destino” da alma
O Espiritismo, em relação à obra originária, tratou destas questões, incidentalmente em “O livro dos Espíritos” e em “O evangelho segundo o Espiritismo”, mas, pontualmente, em “O Céu e o Inferno”. Muito resumidamente, a filosofia genuinamente espírita aponta para um elemento fundamental e inafastável: não existem lugares circunscritos para o gozo ou para o infortúnio, para a alegria e tristeza eternas, na Erraticidade (mundo espiritual ou dos desencarnados).E, por consequência: Céu e Inferno são ESTADOS DE ESPÍRITO, ou seja, condições psicológicas de cada alma.
O “movimento” espírita – isto é o conjunto formado por adeptos e instituições espíritas – preferiu caminho oposto: a partir das obras mediúnicas brasileiras, especialmente os romances psicografados por Francisco (Chico) Cândido Xavier (1910-2002), assinados por André Luiz, foram plantadas ideias alienígenas, particulares do próprio Espírito comunicante, não submetidas à (necessária) comparação com os princípios e fundamentos espíritas, de lugares circunscritos no espaço, sobretudo para purgação (pagamento) de erros pretéritos ou para reeducação, respectivamente, os Umbrais e as Colônias Espirituais (como a mais “famosa” delas, “Nosso Lar”), para onde seriam “destinados” obrigatoriamente os Espíritos, que lá permaneceriam como “detentos”, aguardando uma nova encarnação.
Tem-se, originariamente, a noção (geral) de que o Espiritismo seria uma doutrina CONSOLADORA. Isto pela própria leitura e interpretação de um dos capítulos (VI) de “O evangelho segundo o Espiritismo”, intitulado “O Cristo Consolador” e pelo dístico decorrente de uma ilação kardeciana – escudada em alguns textos de origem mediúnico-espiritual – de que a Filosofia Espírita seria o Paracleto ou Consolador Prometido (por Yeshua) – item 3, do Capítulo em destaque.
Ainda que entendamos que, primeiro, as religiões cristãs em geral prodigalizem a ideia de “consolo prometido” por Yeshua, porque revivem os seus ensinamentos e procuram adaptá-los às circunstâncias da atualidade, e que, segundo, por consequência, seria inadequada a ideia de que “apenas uma” religião e, não, todas, teriam esse mister, é preciso contextualizar a ideia de “consolo” em relação ao tema “vida após a morte”, segundo aquilo que os espíritas (em geral) acreditam e preconizam.
Você quer ser consolado?
Perguntemos: você ficaria “consolado” ao saber que, sendo errante, não iria para um lugar “melhor” e ficaria (por tempo indeterminado, até “pagar o que deve” com a “moeda do sofrimento” num ambiente fétido, inóspito, insalubre e doentio? Qual seria este lugar? O “Umbral” das obras andreluizianas.
Outro exercício interpretativo, para sair do campo da “individualidade” e do “egoísmo” (de pensar exclusivamente em si mesmo e em seu “destino” futuro): você ficaria satisfeito, esperançoso e feliz ao saber que um ente querido seu, familiar ou de sua relação, por ter sido “imperfeito” (mais que você, logicamente), ter que “estagiar”, novamente, por tempo indeterminado naquele “Umbral”?
Isto é consolo? Se é, vamos dizer com muita tranquilidade, que este não nos interessa. Não queremos isso! Não é com base nessa “crença” que acordamos todos os dias e rumamos para as “batalhas” físico-corporais e espirituais, intelectuais e morais, na direção do progresso possível.
Kardec não disse isso! Nenhum dos Espíritos que se manifestaram com propriedade nas suas obras, igualmente. Algumas descrições de “O Céu e o Inferno” sobre SOFRIMENTOS MORAIS, foram interpretadas como CONDIÇÕES PESSOAIS, PSÍQUICAS e IMAGINATIVAS dos Espíritos. As ideias de sofrimentos físicos (privação dos sentidos, privação da liberdade, condicionamento a determinados ambientes, sede, fome, dor, etc., foram – são e serão, sempre – elementos do PSIQUISMO INDIVIDUAL, e, portanto, NÃO REPRESENTAM CONDIÇÕES REAIS DOS ESPÍRITOS, sob nenhuma circunstância.
É por isto que já afirmamos:
“Os espíritas passam a existência toda “aguardando” a vida espiritual. Fazem projetos. Cultivam desejos. Imaginam-se como se já estivessem do “outro lado”. Alguns chegam a dizer que gostariam de estar em uma colônia, como “Nosso Lar”. Outros apavoram-se, arrepiam-se ante a iminência de poderem ser direcionados a um lugar de sofrimento – expresso em livros ditos espíritas – como o “Umbral”. Já ouvi, também, e repetidas vezes, que há “sanatórios espirituais”, lugares para onde são direcionados os “espíritas que não seguiram as orientações espirituais” ou que “não se tornaram homens de bem, os verdadeiros espíritas” – descritos nas obras kardecianas” [6].
Tampouco não há aqueles ambientes “dóceis”, com amplos prados, jardins floridos, com animaizinhos de estimação e pessoas trajando branco (de novo!?), representando “locais” espirituais onde há aprendizado, estudo, trabalho e as pessoas são orientadas sobre as questões espirituais, preparando-se para o retorno à vida físico-material. As tais colônias [7]… Quando há a interação entre encarnados e desencarnados, via de regra, tais “locais” são os próprios ambientes da materialidade, porque aqui os Espíritos realmente interagem, num palco onde as duas humanidades (expressão de Herculano Pires) [8] interagem.
Neste sentido, é oportuno repisar o que já destacamos em outro texto:
“Grande parte dos relatos contidos nas obras andreluizianas e em outros romances que lhe seguiram e que continuam a ser publicados, podemos inferir que aquilo que é descrito, os cenários, as pessoas, as presenças animais são construções mentais, individuais ou coletivas, ou, em muitos casos, a mera continuidade da convivência do desencarnado num ambiente “de encarnados”, locais da vida físico-material” [9].
Obviamente, como os indivíduos estão em distintas condições espirituais, de entendimento, intelectualidade, racionalidade e moralidade, cada um é LIVRE para acreditar no que desejar – inclusive, no “padrão André Luiz” que reproduziu, com outras nomenclaturas, mas com a mesma “coloração”, aquilo que a religião majoritária cristã no Brasil (Censo 2022), o Catolicismo, já diz desde que foi instituída, em Roma, pelo abrigo que deu o Império, pelo Imperador Teodósio (380), à religião cristã.
Ainda outras causas de desalento com o ambiente espírita
Pode-se levantar, ainda, outras causas para o afastamento dos espíritas, isto é, relativas ao desgosto, decepção, desilusão, desinformação e cansaço nesse cenário, diferentemente da ideia “doutrinária” acima tratada.
Aqui tem-se a questão ideológica mais destacada, quando se tem os sinais trocados de ideias defendidas pela Doutrina Espírita com elementos relativos às preferências político-ideológicas. Então, é comum vermos textos e manifestações orais que “traduzem” mensagens ou afirmações contidas nas obras de Kardec para validar condutas humanas patrocinadas por líderes, partidos ou seguidores de vertentes políticas. E, não raro, com a deturpação de conceitos ao sabor das lutas e pautas políticas. Será que tudo isto, na “arena espírita”, em que signatários de movimentos conservadores ou progressistas participam – porque ali não estão em reuniões partidárias mas em eventos religiosos – implicou em uma destacada e permanente confusão, permeada por conflitos e lutas, que já são realidade em outros núcleos sociais, que terminou por afastar os espíritas?
As hipóteses são muitas, e podemos até falar de um discurso conservador extremo em tribunas, ou um igrejismo galopante, ou de aproximação de um “ethos coach”, excessivamente comercial, muito distante da nossa essência simples. Neste particular, a aparente simplicidade de um centro espírita na periferia de uma cidade, ou mesmo em um bairro central, quando comparada aos suntuosos templos neopentecostais ou mesmo católicos, destoa dos eventos “pop star” em grandes e acarpetados ou porcelanados auditórios de centros de convenções ou hotéis cinco estrelas, que têm abrigado “congressos” e “eventos” ditos espíritas. A aparência contrasta com a essência, e novamente é de se perguntar: o “consolo”, antes tratado, estaria disponível, nestes grandes eventos, cheios de “novidades mediúnicas” apenas para os poucos que podem (conseguem) pagar? Já vimos muitos espíritas fazendo empréstimos para participar de eventos, em suas cidades ou viajando para outros núcleos que recepcionam os “maiores” acontecimentos, com um “portfólio” dos mais badalados palestrantes…
Estes são alguns dos aspectos que geram conflitos de identidade nos espíritas da atualidade, frente a mais de um século e meio das discussões em torno da obra de Allan Kardec. E é preciso lembrar dos “novidadeiros” que sempre protagonizam a inundação de ideias estranhas ou alienígenas ao “conteúdo espírita”, e também materializam, nesta ambiência dita espírita, a apropriação de modelos e paradigmas de outras filosofias – não necessariamente religiosas – como, por exemplo, aspectos mercadológicos, de merchandising, de atração de público e de sintonia com o “novo” (que, quase sempre, é a maquiagem do “velho” que já vende há décadas).
A pauta conservadora e seus “ismos” e suas “fobias”
Há muitos ismos na pauta conservadora: racismo, aporofobia, xenofobia, homofobia, misoginia. Assim como violência(s) e tortura. E é incrível como, mesmo nas ambiências religiosas, tais intransigências para com os diferentes ocupam destacado espaço, seja pelo combate direto, pela desqualificação de pessoas e pela imposição de padrões “regenerativos”, sobretudo os correlacionados aos indivíduos LGBTQIAPN+.
Em nome da “religião” muitos cancelamentos ocorrem. Mas há também as posturas de indiferença – travestidas em cordialidade: quando não se enxerga o outro como ele é, ou, mesmo sabendo o que o outro seja, “máscaras” são-lhes apostas, na convivência da “igreja”. Obviamente que não estamos generalizando, porque já conhecemos comunidades católicas, neopentecostais e espíritas (embora muito poucas, frise-se) em que não há quaisquer preconceitos e, mais que isso, são rechaçados comportamentos intolerantes – e, nestes casos, em algumas situações, denunciados às instâncias competentes, para apuração e responsabilização de condutas.
Já afirmamos [10] que a Doutrina Espírita não combina (nem se coaduna) com nenhum desses “ismos” ou “fobias”. E é fundamental que se atue tanto no sentido repressivo quanto no sentido pedagógico: o Centro (ou Grupo) Espírita não pode tolerar nenhum deles!
O fato é que nos agrupamentos religiosos de matiz africana, Umbanda e Candomblé, etnias e identidades diversas são respeitadas e convivem em clima de respeito, fraternidade e cooperação. A religião, neste caso, é profundamente inclusiva, fazendo com que cada um seja o que realmente é, como a expressar a condição de seres onde “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” [11].
Então, complementando o que a especialista Maria Goreth Santos afirmou, já citada anteriormente neste ensaio [2], a segurança das pessoas se expressa em duplo espectro: o de assumir suas crenças ou sua religiosidade; e, também, o de assumir sua etnia, sexualidade e identidade. Quem já foi a um terreiro constatou a diversidade, a inclusão e a liberdade identitária que é a tônica nestes lugares, bastante diferente de qualquer outro templo ou igreja. E dos centros espíritas “de mesa branca”, igualmente.
Aliás, essa expressão que foi comum nas primeiras décadas do Espiritismo no Brasil, cuja data é desconhecida, resulta do hábito, nas instituições espíritas iniciais, de colocar uma toalha branca sobre a mesa das atividades de estudo e mediunidade, justamente com a conotação de diferenciação de outros espiritismos, isto é, aqueles realizados em sessões de cultos afrobrasileiros. Neste sentido, a expressão é altamente preconceituosa, porquanto exorbita do objeto (toalha) e sua cor, para alcançar elementos de preconceito étnico-racial.
O real entendimento das práticas e atividades espíritas, pelo contrário, não dá azo a qualquer preconceito, como frisamos em outro artigo, em que a “formatação” (aparência de identidade física) do Espírito comunicante não é requisito de sua superioridade ou inferioridade, sendo que, usualmente, temos algumas entidades que se manifestam tanto nos terreiros quanto nos centros espíritas, como já afirmamos alhures [12].
Voltando ao furor…
Dissemos, antes, que a notícia acerca dos dados censitários que registraram o encolhimento dos (que se afirmam) espíritas provocou um grande rebuliço nas redes sociais e, inclusive, um furor.
Tal reação se relaciona à frágil ideia de que o Espiritismo seja a ÚNICA proposta redentora da Humanidade, porque simbolize o ÚNICO caminho de esclarecimento espirituais dos seres que habitam a Terra. Em parte, o próprio Kardec contribuiu para isso ao destacar que o Espiritismo seria a consequência (ou a atualização) dos conceitos trazidos por Yeshua e que este teria sido antecedido pela doutrina de Sócrates e Platão. Ou, ainda, que seria o Paracleto ou o Consolador Prometido (por Yeshua), como já destacamos antes.
Mas não para por aí o “ufanismo espírita” que gera tons aperfeiçoados de fanatismo religioso. Novamente a obra mediúnica de Chico Xavier é trazida à baila, porque ao nosso país (“espírita”) é “delegada” uma destacada missão: a de ser o “coração do mundo” e a “pátria do evangelho”, como se o Brasil estivesse “à frente” das demais nações em algum prognóstico espiritual. Já exploramos a precariedade deste “conceito” e a sua utilização (também “política”, além de “doutrinária”, pelo “movimento espírita”, em outro artigo, que recomendamos a leitura [13].
Estes pálidos conceitos – e, mais que eles, a interpretação ufanista que se lhes dá – geram um comportamento proselitista e salvacionista da parte dos que, em geral, se dizem espíritas. Salvacionista porque francamente acreditam que estar ciente da Filosofia Espírita possa representar alguma posição adiantada na marcha de progresso, num pedantismo que toma conta dos indivíduos em relação à compreensão dos temas transcendentais ou espirituais. Proselitista, porque, além de acreditarem (cegamente) na questão acima, passam a “respirar” Espiritismo e tentam, inclusive, ao falar das “interpretações” da Doutrina Espírita para os fatos do cotidiano, fazer com que as pessoas se tornem, igualmente, espíritas, ou convertê-las em simpatizantes ou adeptos do Espiritismo.
Este proselitismo, inclusive, foi desaconselhado pelo próprio Kardec (1993:367), em uma dissertação da “Revue Spirite”, em novembro de 1861 [14], em que expressou:
“De nossa conduta depende o nosso destino futuro, não de nossa adesão a tal ou qual seita religiosa, mas de nossa submissão a este grande preceito: AMAR A DEUS E AO PRÓXIMO…”.
Logo em seguida, no fascículo de dezembro do mesmo ano [15], Kardec (1993:371) volta a desaconselhar a conduta proselitista:
“àqueles que têm a coragem de sua opinião, que estão acima das mesquinhas considerações mundanas, diremos que o que têm a fazer limita-se em falar abertamente do Espiritismo, sem afetação, como de uma coisa muito simples e muito natural, sem pregá-la, e sobretudo sem procurar nem forçar as convicções, nem, quando mesmo, fazer prosélitos.
O Espiritismo não deve se impor; vem-se a ele porque dele se tem necessidade, e porque ele dá o que as outras filosofias não dão”.
Reforçando a orientação kardeciana, também Herculano Pires [16] afirmou:
“O Espiritismo não é proselitista, não entra na disputa sectária de adeptos das religiões, mas devem os espíritas, necessariamente, interessar-se pelos que se interessam pela Doutrina. Esclarecer e orientar sempre é dever espírita” (Pires, 1980:26).
O que dizer, então, daqueles espíritas que seguem determinadas personalidades? Um médium, um palestrante, um dirigente? Passam meses, anos, ou, por vezes, uma existência inteira idolatrando o personagem, como se ele fosse uma alma (muito) superior. Um belo dia… Vem a queda. Vem a conduta puramente humana. Vem a dificuldade que nos coloca frente a frente com nossa essência (e nossa inferioridade). O que dizer, então, daqueles que ergueram castelos de areia em relação a determinado indivíduo (Espírito errante como nós, peculiar ao padrão “expiações e provas” que é o nosso orbe)?
Também nesse caso, muitos espíritas deixam de sê-lo…
Concluindo, mas não encerrando
Lançar hipóteses para o decréscimo do quantitativo de espíritas no Brasil (Censo 2022) pode até parecer fácil, mas não o é. Envolve uma série de fatores e contingências – e, longe de nós querermos estabelece-las em totalidade e profundidade. Nosso objetivo é suscitar o debate, é provocar a reflexão lógico-racional e, talvez, para os que tenham “olhos de ver e ouvidos de ouvir”, sugerir uma alternativa diferente em relação ao “padrão religioso” dos espíritas.
Mas, o fato é que, para além da mera ilação, padece a preocupação, não pela redução de adeptos em si, mas pelo que pode estar por trás disso, o que enseja dos espíritas sérios e estudiosos o permanente debate acerca de o que somos, quem somos, o que queremos e como podemos aperfeiçoar nossas ambiências de estudo, trabalho e, principalmente, convivência afetiva e empática de todos.
Neste espectro, é mais do que recomendável, ainda, que se busque ouvir as vozes dos frequentadores sobre o que lhes incomoda, decepciona e afasta, fugindo das informações incensadas de redes sociais, na tentativa teórica (e distante da práxis) de captar o que houve nesses doze anos, sobre o que possa estar angustiando e afastando as pessoas da ambiência espírita.
A notícia que o Censo 2022 traz deveria, do contrário, gerar um sentimento e um compromisso, ambos profundos, de debate e reflexão, como bons espíritas, na linha de Kardec, para os contornos desse tempo pregresso – e, também, do atual – ambos marcados por tipicidades (políticas e ideológicas) no campo social que influenciaram o movimento espírita, para que se produzam sínteses proativas que indiquem quais situações não devam ser jamais repetidas e, por oportuno, construindo consensos sobre esses dissensos.
Referências:
[1] Loschi, M. (2025). Censo 2022: católicos seguem em queda; evangélicos e sem religião crescem no país. Agência IBGE Notícias. Censo 2022. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/43593-censo-2022-catolicos-seguem-em-queda-evangelicos-e-sem-religiao-crescem-no-pais>. Acesso em 6. jun. 2025.
[2] Paulo, P. P. (2025). Espiritismo cai, e parcela que segue umbanda ou candomblé triplica, mostra Censo 2022. G1. Economia. Censo. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2025/06/06/participacao-de-umbanda-e-candomble-triplica-espiritismo-cai-diz-ibge.ghtml>. Acesso em 6. jun. 2025.
[3] Kardec, A. (1998). “O livro dos Médiuns”. Cap. XX. Item 230. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE.
[4] Expressão bastante comum no Antigo e no Novo Testamentos: Deut; 29:4; Ez; 12:12; Prov. 20:12; Mc; 8:18; Mt; 11:15 e 13:9-17.
[5] Primeira Epístola aos Coríntios (1Cor; 15:55).
[6] Henrique, M. Liberte-se! (2021). Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/liberte-se-por-marcelo-henrique/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[7] Netto, H. Colônias? (2022). Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/colonias-por-henri-netto/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[8] Pires, J. H. (1976). Horizontes Espirituais. In: Xavier, F. C., & Pires, J. H. Na Era do Espírito. 3. Ed. São Bernardo do Campo: GEEM.
[9] Rivé, M. C., & Henrique, M. (2024). O fetiche por “Nosso Lar”. Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/o-fetiche-por-nosso-lar-por-maria-cristina-rive-e-marcelo-henrique/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[10] Henrique, M. (2024). Doutrina Espírita não combina. Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/doutrina-espirita-nao-combina-por-marcelo-henrique/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[11] Veloso, C. (1976). Dom de Iludir. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44719/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[12] Henrique, M. (2025). Caboclos e Pretos Velhos em Centros Espíritas? Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/caboclos-e-pretos-velhos-em-centros-espiritas/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[13] Henrique, M. (2024). Nem Coração, nem Pátria! Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/nem-coracao-nem-patria-por-marcelo-henrique/>. Acesso em 7. jun. 2025.
[14] Kardec, A. (1993). “Revue Spirite”. Novembro, 1861. Bibliografia. O Espiritismo na América. Trad. Salvador Gentile. Araras: IDE.
[15] Kardec, A. (1993). “Revue Spirite”. Dezembro, 1861. Organização do Espiritismo. Trad. Salvador Gentile. Araras: IDE.
[16] Pires, J. H. (1980). O Centro Espírita. São Paulo: Paideia.
[17] Guitarrara, P. (2025). UOL. Brasil Escola. Censo demográfico. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/censo-contagem-populacao.htm>. Acesso em 7. jun. 2025.
[18] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Comitê de Estatísticas Sociais. Base de Dados. Censo Demográfico. Disponível em: <https://ces.ibge.gov.br/apresentacao/portarias/200-comite-de-estatisticas-sociais/base-de-dados/1146-censo-demografico.html>. Acesso em 7. jun. 2025.
[19] Guimarães, C. A. Em 150 anos, conheça a história que o Censo conta. Agência IBGE Notícias. Censo 2022. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/33495-em-150-anos-conheca-a-historia-que-o-censo-conta>. Acesso em 7. jun. 2025.
Serviço
Censo IBGE [17] [18] [19]
O Censo Demográfico é uma pesquisa (de campo) realizada de forma periódica, com o objetivo da coleta de dados acerca da população pertencente a determinado território (país). Por ele, é possível dimensionar o tamanho da população, a distribuição espacial dos indivíduos e elementos peculiares ao perfil dos habitantes, total ou parcialmente (porque podem ser escolhidas áreas específicas para o recenseamento, ou não).
Vale dizer que este levantamento produz informações consideradas como imprescindíveis para a delimitação das políticas públicas, bem como para a tomada de decisões acerca dos investimentos, tanto públicos quanto privados, porque estes últimos celebram contratos e parcerias com entes públicos, dentro de áreas e projetos que são previstos legal e orçamentariamente. O Censo é, tradicionalmente e hoje, a única fonte segura de referência sobre a situação de vida da população brasileira, descendo a nível municipal, inclusive nos recortes internos (distritos, bairros e outras localidades, rurais ou urbanas), permitindo o amplo conhecimento e a atualização permanente de dados populacionais.
No Brasil, a responsabilidade do Censo cabe ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), criado em 1938. Todavia, em território brasileiro, o levantamento pioneiro foi realizado em 1872, na época do Brasil Império (neste caso, o levantamento era para delimitar quem era “livre” ou “escravo”, se sabiam ler/escrever e se possuíam alguma deficiência.
Marcelo Henrique é graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993), e em Administração Pública (2021), pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Especialista em Administração Pública e Auditoria, pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (1994). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali (2002). Está cursando Doutorado em Administração, na Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Coordenador do Grupo Espiritismo COM Kardec: https://www.comkardec.net.br
Marcus Braga, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ).
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