Espelhos do outro: certezas tóxicas em um jardim democrático sem flores
por Fabio Reis Mota e Gabriel Bayarri Toscano
Dedicamos esse artigo a um jardineiro de ideias, cultivador de sonhos e semeador do pensamento crítico e inovador, Roberto Kant de Lima. Obrigado por ajudar a nutrir a semente do humanismo em nós.
Outubro de 2022: eram duas da tarde em um bairro periférico do Rio de Janeiro. Um cachorro de rua, desnutrido, se aproximou dos participantes de um evento em apoio a Bolsonaro. Um manifestante gritou: “se Lula ganhar, esse cachorro vai virar nossa picanha!”. Risos eclodiram e as piadas se multiplicaram: “ele vai ser o primeiro que vamos comer!”, disse um. “É melhor checar os cachorros-quentes!”, completou outro. Naquele momento, o “Mito” subiu ao palanque entre milhares de bandeiras agitadas. Um ano depois, na periferia de Buenos Aires, um trabalhador precário da Uber Eats afirmava em um encontro de apoio a Javier Milei: “se continuarmos assim, vamos acabar comendo cachorro também, como na Venezuela”.
Em 2023 num bairro de imigrantes de Paris, um senhor de pouco mais de 60 anos, faz uma analogia dos imigrantes comparando-os a feras selvagens a devorar a “civilização francesa”. Não era sarcasmo ou metáforas soltas, era medo. Em ambas as cenas, a figura do animal devorado ou a devorar funcionava como uma síntese brutal da expropriação e do caos: não havia futuro, nem comunhão, nem lei que protegesse. A partir dessas narrativas da extrema direita, se os projetos progressistas vencessem as eleições, só restaria sobreviver.
Essas ironias assustadoras espalharam-se pelo mundo. Passaram por várias mudanças e adaptações, até chegar, em 2024, ao momento em que Donald Trump afirma, durante um debate presidencial contra Kamala Harris, que os haitianos que moram nos Estados Unidos “estão comendo cachorro”. A primeira reação de Harris foi rir, pois percebeu no discurso do seu oponente um absurdo retórico que só podia ser entendido como uma piada. Pouco depois, ela mudou de expressão, tentando levar Trump para um terreno conversacional mais “sério”.
Assim floresce a extrema direita: entre restos, ruínas e medos sedimentados. Não porque ofereça soluções, mas porque promete inimigos; por converter a insegurança e a incerteza — material, emocional, simbólica — em uma guerra permanente contra um outro. O medo de não ter o que comer se entrelaça com o medo de não ter identidade, pelo temor de ter “sua” identidade devorada. Devora-se o cão, não por fome real, mas porque sua figura encarna a ameaça da desordem, do incontrolável, do que não se alinha com o discurso dominante. O autoritarismo desses projetos não apenas administra o medo: ele o estetiza. E, ao fazer isso, fabrica indivíduos inseguros que encontram na punição ao diferente uma falsa sensação de pertencimento a um mundo de segurança ontológica afirmada pela rejeição da alteridade.
Tudo isso alimentado pelas vias intermináveis das incertezas. O século XXI talvez seja qualificado no futuro como a “Era da Incerteza”! Pela desregulação climática, diante da grande peste da COVID e a maior pandemia global vivida pela humanidade, face aos efeitos da revolução cibernética na economia dos regimes de verdade, no aparato mental e cerebral humano e no esfacelamento das categorias sobre/do mundo compartilhadas em um ambiente relativamente estabilizados por determinados consensos sobre fatos e coisas, em tempos outrora. Isso produz severas consequências para a vida social na democracia.
Afinal, convergir sobre o fato de que um copo é um copo é o mínimo do desejado em um ambiente coletivo; divergir sobre sua serventia é o nutriente para a constituição de um espaço heterogêneo de ideias e valores. O problema é que não só divergimos sobre as utilidades diversas do copo, por meio de defesas polarizadas, extremadas, impermeabilizadas à comunicabilidade com a diferença, como igualmente borramos no mundo globalizado e hiper conectado as fronteiras da política democrática ao discordarmos que um copo é mesmo um copo!
Nos terrenos das incertezas, extremismos são como ervas daninhas a liquidar os jardins da democracia. Um jardim que vem sendo já há algumas décadas descampado por tratores da intolerância, mas que especialmente nos últimos tempos tem proliferado as flores espinhosas da extrema direita. E ela se fertiliza novamente no terreno global. No cenário da história do último século ela sempre figurou nos horizontes. Estamos vivenciando um ciclo, para muitos, é verdade, duro de se viver, no qual sua singularidade diz respeito a conectividade, rapidez de comunicação e capacidade aglutinadora de uma legião de milhões de pessoas ao redor do mundo. Sem contar sua capacidade na atualidade de tornar-se projetos políticos de Nações por meio do sufrágio universal, ou seja, o voto popular. Donald Trump que o diga, eleito Presidente duas vezes no símbolo ocidental democrático moderno: os EUA. O problema não é sua existência num campo diverso de cores e valores, mas a sua consequência para o florescimento de formas divergentes às suas num jardim plural de cores e flores!
Terrenos da intolerância
Embora possamos reconhecer formas diversas de expressão dos movimentos conservadores e/ou de extrema direita no mundo, há dimensões que fazem convergir as heterogêneas maneiras de se engajar neste ambiente da vida social contemporânea. Uma delas é a relação com o mundo virtual, o manejo das ferramentas cibernéticas e seus efeitos nas representações e visões sobre o outro, em particular o outro diferente. Olhando os distintos contextos mundiais, é possível identificar uma bandeira e ação comum contrária aos direitos e reconhecimento das lutas de grupos historicamente excluídos como minorias raciais e étnicas, de mulheres na luta pela igualdade, de grupos LGBTQIAPN+, dentre outros.
Trump, assim que assumiu a Casa Branca, suprimiu os programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) do Governo, como noticiado pela grande imprensa em março de 2025. Na Europa vemos as faces do nacionalismo batendo nas portas que se fecham para os imigrantes, mesmo em países governados por outras linhagens políticas, assim como uma onda de xenofobia e formas de discriminação que se propagam como pólen pelo ar.
Do outro lado do Equador, na Argentina, o Presidente Milei personificou a luta contra a diversidade. De forma veemente e agressiva, discursou em Davos, no Fórum Econômico Mundial. Propalou suas agressividades ao enunciar que “(…)_ do conceito de liberdade como a proteção fundamental do indivíduo contra a intervenção do tirano, passamos ao conceito de liberação por meio da intervenção do Estado. Sobre essa base, foi construído o wokismo, um sistema único de pensamento”. Segundo ele, tal agenda não só “distorceria causas nobres”, bem como implicaria em desajustar a igualdade. Atacou, na ocasião, diversas pautas importantes como o da violência contra as mulheres afirmando que a luta pela tipificação do feminicídio implicaria no estabelecimento de que a “vida de uma mulher vale mais do que a de um homem”.
A rejeição à diversidade se mostra principalmente como um projeto afetivo, no qual a extrema direita cultiva ressentimentos. Como alertou Umberto Eco, o fascismo não precisa de uma doutrina fechada; basta um conjunto difuso de emoções regressivas. Nesse novo cenário, o ódio não se explica, se sente: é compartilhado. Se transforma em comunhão de semelhantes em seus valores e razões. E, nessa atmosfera de pulsões sem mediação, o rosto do diferente se torna uma ameaça.
A diversidade se torna um adversário para quem deseja uma vegetação monótona, de cores limitadas às formas e padrões do jardim dos sonhos daqueles que, como diz a letra da música de Caetano Veloso, “acham feio o que não é espelho”. Isso é um ponto de inflexão importante com relação a todo processo e luta de gerações e gerações pelo reconhecimento da igual dignidade humana em suas diversas formas de expressão de humanidade. O migrante, a feminista, o jovem dissidente, o quilombola ou o indígena deixam de ser sujeitos de direito para se tornarem anomalias de uma ordem que se quer restaurar. Assim se impõe a política do espelho narcisistico: só é legítimo quem é igual a mim.
A diferença já não é tolerada nem discutida: é combatida. É patologizada. É expulsa. Neste regime afetivo, a ideia de cidadania é reduzida a um contrato emocional entre semelhantes que partilham os mesmos temores, as mesmas perdas e os mesmos ódios. Reside nesse universo uma negação das singularidades das expressões humanas, do reconhecimento do papel dos diversos grupos na formação social e na sua contribuição histórica e, sobretudo, dos direitos diferenciados de cidadania que desenharam os espaços públicos das democracias ocidentais.
Sementes da guerra
O combate à diversidade se traduz, em grande medida, no combate ao diferente. E com o diferente não se convive, não se compartilha o comum, mas pelo contrário o elimina simbólica ou fisicamente. O discurso da guerra anima os terrenos conservadores e semeia a violência como forma de resolução de conflitos. O genocídio perpetrado em Gaza pelo Governo de Benjamin Netanyau, com a anuência americana e o silêncio global, a guerra entre Israel e Irã apoiado pelos EUA são as espetacularizações das ações de lobos em pele de cordeiros! Por meio de sua rede social, Truth Social, Donald Trump declarou em tom ameaçador “sabemos exatamente onde o chamado “Supremo Líder” está escondido. Ele é alvo fácil, mas está seguro- não vamos pegá-lo (matar!), pelo menos não agora”. Na mesma mensagem “mas não queremos mísseis disparados contra civis, ou soldados americanos. Nossa paciência está acabando” e finaliza como se tratasse de um oficio governamental “obrigado pela atenção a este assunto”.
A extrema direita de hoje não precisa só de tanques: precisa de likes. Atualmente, a guerra é comunicacional, emocional, totalizante. E nesse cenário, a linguagem bélica se torna a única forma de falar ao mundo. As palavras não descrevem mais: elas antecipam, prefiguram, possibilitam a violência. O discurso do “eles ou nós” não é uma metáfora: é um mantra operacional. Os discursos em prol da guerra não só dinamizam o mercado trilhardário da indústria bélica, mas alimentam todo um ecossistema político e social que precisa do “outro inimigo” para a sua própria retroalimentação.Não se trata só de justificar bombardeios, mas de legitimar diariamente o extermínio moral do adversário. O desejo de aniquilar o outro — real ou simbolicamente — vira uma paixão compartilhada, uma economia afetiva da punição. Intoxicam o solo da democracia e concedem lugar à naturalização das práticas dos extermínios de outras vidas: tudo em nome da proteção da “civilização” e dos valores da “grande família ocidental”.
Como nos antigos rituais de sacrifício, o sistema precisa de sangue para se renovar. Mas, dessa vez, não se trata de deuses, e sim de algoritmos. Não se pede obediência: exige-se fidelidade afetiva. A guerra não é mais travada só com armas, mas com afetos deslocados, que transformam cada diferença numa ameaça à segurança existencial por meio do espectáculo cibernético.
Propriedades da razão
É verdade que nos caminhos das incertas linhas do futuro, há uma significativa transformação nas formas da razão humana. Num ambiente em que tempos outrora florescia a dúvida, hoje nascem com raízes profundas os terrenos privativos da certeza. São tão profundas tais raízes, que tornam nebuloso o espaço do debate, das discussões e das possibilidades de consensualizações sobre os fatos, os fenômenos e os problemas locais ou planetários comuns. Estamos vivenciando um outro regime do pensamento, no qual as formas de acesso às informações no universo cibernético propiciam alterações significativas no plano da política no seu sentido mais amplo. Como temos apontado em nossos textos, a razão cismática semeia um novo terreno na vida humana.
Por um lado, a proliferação de informações dilui o terreno da comunicabilidade e argumentação consertativa. Com cada qual editorializando seu mundo, por meio de suas restritas comunidades informacionais, a divergência de pontos de vista, ideias se torna intangível. Vivemos num arquipélago de solidões informacionais, onde a lógica do algoritmo substitui a deliberação e a argumentação dialógica pela reação. Não existe mais esfera pública, mas sim câmaras de eco que recompensam a indignação e castigam a dúvida.
Perante essa avalanche, surge uma razão hermética e desconectada da dúvida, que transforma toda diferença em perigo. A política torna-se então gestão do medo: não para resolvê-lo, mas para redistribuí-lo sobre os corpos mais vulneráveis. Perde-se o terreno comum a partir do qual se constroem as dissidências democráticas. Agora, quando discordamos que um copo é um copo nos encaminhamos para o campo da incomensurabilidade comunicativa. Discordar sobre a natureza de um copo pode não ter implicações tão graves à vida coletiva, mas quando discordamos sobre o que é uma guerra, genocídio, intolerância, racismo, xenofobia chegamos a um ponto crítico para o horizonte da democracia. Só restam relatos em disputa, cada um na sua ilha de entendimentos ensimesmados e cismados, cada um com seu próprio Deus, sua própria vítima e sua própria cruzada. O que está em jogo não é só a verdade, mas o próprio sentido do que é comum esfacelado na aridez do pensamento.
A democracia não morre mais nas sombras: ela se dissolve na névoa. Como já tratamos em artigos que publicamos, o problema não é só a mentira, mas a fragmentação radical da experiência do comum. Parafraseando Hannah Arendt, no seu livro “Condição do Homem Moderno”, não é a alienação de si, como supunha Marx, que caracteriza a época moderna, mas sim a alienação com relação ao mundo. No mundo borrado das incertezas, talvez essa seja mesmo uma grande verdade! O jardim democrático, antes cheio de imperfeições e brotos dissonantes, foi sendo tomado pelo mato. Quem clama por ordem só cultiva o deserto. E no meio da poeira, ainda ressoa um aviso (do poeta Vinícius de Moraes).
“Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada”.
No entanto, entre os escombros, surge outra pergunta: ainda pode nascer algo em meio a tanto medo? Quem vai plantar sem certezas? Quem vai cuidar do jardim se não tem mais flores, nem sombra? Talvez a tarefa não seja mais restaurar o que foi, mas imaginar o que ainda não existe. Habitar os restos sem nostalgia, encontrar formas de estar juntos sem espelhos nem reflexos. Porque mesmo nas terras mais áridas, há sementes adormecidas. E o comum, embora disperso, embora ferido, ainda espera ser pronunciado. Essa é, talvez, a condição trágica — e também emancipadora — do nosso tempo: não há garantias, nem mapas, nem refúgios estáveis. Só incertezas. Mas nessa intempérie, nesse vazio de sentido compartilhado, pode surgir outra política: uma que não administre o medo, mas que o reconheça; que não negue a fragilidade, mas que a tome como ponto de partida. Diante das certezas autoritárias que prometem ordem em troca de exclusão, intolerância e violência talvez a única resposta possível seja uma ética do cuidado sem promessas. Uma política do incerto. Um gesto, por menor que seja, de voltar a olhar para o rosto do outro — não como uma ameaça -, mas como uma imagem de um eu-em-nós no terreno fértil da coexistência.
Fabio Reis Mota é professor/pesquisador do Departamento de Antropologia/NUFEP/PPGA/INCT-InEAC da Universidade Federal Fluminense.
Gabriel Bayarri Toscano professor/pesquisador na Universidad Rey Juan Carlos (Espanha). Foi Newton International Fellow da British Academy no Centre for Latin American and Caribbean Studies da University of London.
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