Marina merece respeito. Muito respeito. Essa frase foi o trend das últimas horas. Justamente por isso, as gerações futuras haverão de nos agradecer se a colocarmos na perspectiva mais ampla — que ela também merece.
Marina já merecia respeito em 2010, mas faltou um tantinho, não é mesmo? Quantas vozes de coxia se ergueram em Brasília naquela época, dizendo que Marina era uma liberal inconfiável, sobretudo depois que Lula apontou para Dilma. Ok: partidos políticos são “ordens unidas” organizadas para a competição eleitoral, com base em projetos distintivos. Mas há limites. Em 2010, ouvi de um intelectual razoavelmente engajado no debate que Marina era uma ambientalista ingênua, capturada pelo greenwashing do sistema financeiro. Como dizia meu velho pai, certas coisas a gente só ouve calmamente porque seria pior ser surdo. Tenho dúvidas.
Marina Silva, de um modo ou de outro, é há anos personagem central do século brasileiro
O espancamento de Marina por João Santana, em 2014, foi o cume do processo iniciado em 2010 e atingiu níveis de imoralidade retumbantes. Alguns que apertaram o 13 no segundo turno daquela eleição o fizeram com enorme dificuldade ética — embora a coalizão ao redor de Marina pudesse, com alguma razão, ser considerada precária. Para os mais jovens, vale lembrar: nos últimos dias do primeiro turno, Marina estava simplesmente possessa. Há registros audiovisuais de suas falas em palanques, dirigindo-se a Dilma Rousseff — mãe do PAC, mãe do progresso. A disputa era de princípios e visões sobre o desenvolvimento. Se quiserem voltar mais, remontam aos instantes priscos, quando a esquerda se dividiu entre a centralidade da questão ambiental e a (suposta) centralidade da questão distributiva.
Mas eis o que realmente importa: quem venceu a eleição de 2014, ou quem derrotou Marina? Alguns dirão que ela perdeu para a própria soberba, ao assumir a candidatura do finado Eduardo Campos. Outros, que foi derrotada pela engrenagem popular do PT — o único e verdadeiro partido orgânico da classe trabalhadora, sempre capaz de ressurgir na hora da fênix beber água.
Vá lá, eis o ponto, fim de papo: desde quando a classe trabalhadora foi ambientalmente responsável? Deixo a pergunta no ar. O MST, nesse sentido, tem muito a ensinar ao mundo.
Marina Silva, de um modo ou de outro, é há anos personagem central do século brasileiro. Pauta-se por uma agenda objetiva — e foi essa agenda que a fez “perdoar” o esculacho petista de 2014. Foi por disciplina política e ideológica que ela voltou ao ministério. Sua ficha segue sem máculas de corrupção. Marina transita fora do substrato trágico-fáustico que, gostemos ou não, une a esquerda e a direita no Brasil: a agressão contumaz ao meio ambiente e o amor pelo gigantismo. É, por isso, a figura perfeita para um novo espancamento — agora vindo da direita, com a silenciosa anuência da bancada à esquerda.
O problema é que Lula e o PT não podem defendê-la plenamente. Lula carrega a cuca do operariado modernizante; seu prisma, nos melhores momentos, ainda é guiado pela utopia do esforço desenvolvimentista periférico — o ideário que estruturou a esquerda brasileira no século XX. Esse esforço ainda é decisivo, mas não mais suficiente. Lula convida Marina a produzir políticas públicas ambientais que, na sua cabeça, estão mais para mitigação de danos do que para uma mudança real de rumo. A conversa com Xi Jinping deveria ter sido outra: como (ou se) o socialismo chinês abandonou o crime ambiental para se tornar QUIÇÁ uma síntese — crescimento, equidade e modos ecológicos.
A classe política brasileira, por sua vez, se aglutina — quase toda — em torno da defesa de uma acumulação primitiva que EXIGE, percebam, EXIGE a desregulamentação de tudo. E exige também, por óbvio, a eliminação (o “enforcamento”, como quer o asqueroso senador) de Marina Silva — a única voz graúda na política brasileira genuinamente comprometida com essa racionalidade de futuro. Não se perca de vista: o tirambaço contra ela vem da esquerda e da direita, de cima e de baixo. No enredo político do Brasil de hoje, shakespeareanamente, Marina é a “cabeça” que incomoda a todos. Heroína? Dramaturgicamente, sim. Resta ver se alguma personagem ainda nos surpreende nos próximos atos.