Anderson Pires*
Uma vez, li um poema de Mia Couto com os seguintes versos:
“Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença”.
Expor entranhas com sutileza é a arte do poeta. A doença envergonhada é ofuscada pela obrigação das alegrias, pela exposição do sucesso e a supressão das fragilidades. Não que a vida seja apenas um amontoado de tristezas. Mas além da vergonha que geram, são um sentimento antipático.
A empatia tão propalada, muitas vezes, vira um mero instrumento retórico, quase que uma caridade psicológica, nos mesmos moldes daqueles que divulgam pequenas doações aos miseráveis. É mais publicidade que um ato humanitário: tá vendo como sou legal? Serve para alimentar a vaidade e disfarçar a própria doença envergonhada.
Antes, isso estava restrito aos com notoriedade, hoje, não existe mais essa barreira. As pessoas publicizam suas alegrias, conquistas, vitórias e raramente expõem as fragilidades. É uma espécie de pandemia da prosperidade. Os sentimentos desagradáveis são escondidos e a superexposição de um mundo feliz, cria um falso estado de felicidade generalizada.
Muitos se frustram e questionam: por que não fui contaminado? Dessa forma tentam embarcar no mesmo modelo e criam seu próprio estado fictício de alegria. A doença envergonhada segue mantida. Mas o que importa é a percepção do outro. Ainda mais quando isso serve para aglutinar novos amigos, seguidores e, consequentemente, inserção social.
É claro que não existe nada de errado em se apresentar a parte que parece mais interessante em nós. Mas isso atende mais aos espectadores que a quem divulga. Imagine que essa ode vira uma obrigação para se manter aceito. A dopamina precisa ser alimentada com likes e comentários legais, que inflam o ego. É como um vício: efêmero, fictício e que, provavelmente, não terá como sempre suprir.
E, assim, os estragos internos seguirão e a doença ficará ainda mais envergonhada. Parece esdruxulo, mas é só mais uma das incoerências que praticamos. Afinal, é tão difícil a gente se aceitar, imagine os outros, se escancararmos nosso lado sombrio.
E onde fica a poesia nisso tudo? Ah! O poeta é o oráculo. O mais sensível dos seres, que presta esse serviço inestimável de desavergonhar sentimentos por mais desagradáveis que possam parecer.
O poeta é um tradutor da humanidade. Um ser diferenciado capaz de pinçar sensações com delicadeza ou nos enfiar uma estaca no peito, que faz explodir em sentimentos.
A poesia é a terapia por escrito. É um alento quando não vemos perspectivas nesse mundo artificial. Ela nos revela o quão humanos somos e que ser frágil é parte da nossa essência. E isso não pode parecer estranho, porque gente é assim.
A superficialidade chega a parecer soberana, impositiva. Mas aí vem Leminski e diz:
“viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície”.
Daí, voltamos à doença envergonhada. Identificar os sinais em meio a superfície não é tarefa fácil. São tantos anteparos e filtros que decifrar sentimentos se transforma num exercício de suposições, num jogo de adivinhação.
Pra subverter, ainda tem poetas como Manuel de Barros, que escancara as insignificâncias e derrama sem qualquer pretensão versos assim:
“Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia”
E completa:
“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia”.
Sentir é humano. Da mesma forma que a alegria é aceita, a tristeza é um sentimento. O que é parte do ser não pode parecer estranho a quem padece da mesma poesia que é viver.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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