Nunca experimente a solidão de ficar sem um inimigo. Mas nunca perca a noção do tamanho de quem deve enfrentar. São algumas das lições de manuais básicos de guerra e sobrevivência em todas as selvas da vida, da política aos afetos. É coisa de tutorial de um qualquer.
Pois um dos dilemas das esquerdas brasileiras hoje é saber se já pode trocar de inimigo, enquanto não sabe direito o tamanho do inimigo antigo e talvez superado. Desde que não percam o direito de ter um inimigo forte e que mantenha as esquerdas acordadas.
Continuamos sob tempestade intensa e ninguém se arrisca a calcular o tamanho de Bolsonaro hoje. Vale a pena trocá-lo já, em sonhos, pesadelos e devaneios, por Tarcísio de Freitas ou outro genérico?
Que Bolsonaro é esse apresentado por Valdemar Costa Neto como chefe eterno da facção, porque com ele foram feitos os melhores negócios e por causa dele o PL se expandiu no Congresso?
Que desenvoltura é essa de Bolsonaro, ao reaparecer esses dias em propaganda na TV ainda como líder da direita, para dizer que com ele o Brasil será grande?
Por que não se confirmaram as melhores expectativas de que Bolsonaro estaria morto e cremado um ano depois do fracasso na eleição e no golpe?
São perguntas de uma singeleza inquietante. Que se juntam aos últimos movimentos da reafirmação de que Bolsonaro vive e manda. Como na escolha do coronel da Rota Ricardo Mello Araújo para vice de Ricardo Nunes em São Paulo.
Uma decisão imposta por Bolsonaro, contra tudo e contra todos, para que fique claro que ele é o chefe e para que Tarcísio, ainda vacilante, continue no cabresto.
O governador disse, na aglomeração promovida por Silas Malafaia em São Paulo, em 25 de fevereiro, que não era ninguém antes de Bolsonaro. Valdemar afirma na propaganda do partido na TV que “quem tem voto é ele”, Bolsonaro. O PL grandão existe por causa de Bolsonaro.
Observadores de detalhes devem ter notado que, naquele dia 25 de fevereiro na Paulista, Tarcísio vestia uma camiseta com amarelo desbotado (foto), que contrastava com o amarelo vibrante do resto da turma em cima do caminhão.
Faltava convicção no amarelo de Tarcísio. Mas esse bolsonarista menos intenso só irá adiante se Bolsonaro quiser, já avisa Valdemar. E desde que consiga calibrar seu ímpeto de avançar antes do tempo, completa Silas Malafaia.
E o que Lula, o PT, as esquerdas e a luta antifascismo podem querer? Que Bolsonaro continue vivo, mesmo que inelegível, até as vésperas da eleição de 2026? Que se atravanque por muito tempo no caminho de Tarcísio, Zema, Caiado, Ratinho e Michelle? Que provoque divisões e sequelas irreversíveis entre aliados?
Quem é o inimigo que as esquerdas gostariam de ter hoje, já definido como adversário de 2026, mesmo que, como diria Garrincha, não seja possível combinar com os russos?
O certo é que Bolsonaro está vivo. Todo o seu entorno de quatro anos de poder continua impune. Vive, ainda gorda e corada, toda a estrutura civil fascista que o sustentou, incluindo os financiadores das milícias digitais. Todos impunes, enquanto manadas de manés já foram condenadas pelo STF.
Um bolsonarismo falsamente encabulado, mesmo que com um amarelo esmaecido, irá herdar toda a estrutura ainda intacta dessa extrema direita ainda inalcançada pelo sistema de Justiça.
E pode herdar o que Bolsonaro não teve: o suporte explícito e descarado de Globo, Folha e Estadão. Porque é o sonho desse trio – uma aliança com os herdeiros do espólio de Bolsonaro, para que finalmente, convencida de que não há saída ao centro, a grande mídia se livre de Lula.
Com Michelle, essa é uma missão impossível. Mas não com Tarcísio e com os outros, Zema, Caiado e Ratinho, que ainda jogam na segunda divisão da direita. É o quadro hoje, mesmo que essa seja uma simplificação.
Não há como imaginar como razoável que o próprio TSE com novos integrantes possa tirar a coleira que pôs em Bolsonaro ao torná-lo inelegível. Mas a coleira pode continuar frouxa, como quer a direita e como também deseja boa parte das esquerdas.
Publicado no Blog do Moisés Mendes