A revista estadunidense Wired, focada em tecnologia, ciência, cultura, negócios e sociedade, publicou, no dia 23 de julho, uma reportagem com o título “Silicon Valley AI Startups Are Embracing China’s Controversial ‘996’ Work Schedule” (“Startups de IA do Vale do Silício estão adotando o polêmico horário de trabalho ‘9-9-6’ da China”). O texto conta como o setor, antes visto como oferecedor de condições e benefícios vantajosos aos trabalhadores, tem exigido que os funcionários se comprometam com jornadas de 72 horas.

Você gostaria de trabalhar quase o dobro da semana padrão de 40 horas? É uma pergunta que muitas startups nos EUA fazem a potenciais funcionários – e para conseguir o emprego, a resposta precisa ser um sim inequívoco. Essas empresas estão adotando uma rotina intensa, popularizada pela primeira vez na China continental”, diz o texto.

A escala 9-9-6 foi praticada exatamente no país que, por muito tempo, foi visto com maus olhos por suas péssimas condições de trabalho. Os próprios Estados Unidos se valiam da situação para fazer propaganda ideológica contra a China. Não era uma visão sem base real.

Vamos entender um pouquinho desta história.

Que escala é essa?

A escala de trabalho 9-9-6 significa uma jornada que inicia às 9h e termina às 21h, seis dias por semana. São 72 horas – pense que uma semana tem 168 horas – de trabalho formal. Ela foi popularizada na China principalmente com o boom das big techs e do e-commerce, sendo adotada por empresas de tecnologia em geral, startups e outros ramos competitivos.

Não era raro ultrapassar as 72 horas semanais, já que tarefas fora do expediente eram permitidas. Alguns bilionários chineses, como Jack Ma, fundador da gigante Alibaba, a romantizaram como uma “cultura de esforço” e “oportunidade de prosperar”.

Em agosto de 2021, a Suprema Corte Popular e o Ministério de Recursos Humanos e Seguridade Social publicaram um comunicado determinando que a escala 9-9-6 viola a Lei do Trabalho da China, que estabelece jornada máxima de 44 horas semanais e limites rigorosos para horas extras. Essa não foi uma simples concessão do governo chinês.

A decisão foi motivada por vários casos de mortes e colapsos de trabalhadores. Segundo apurou o South China Morning Post, uma funcionária de 22 anos da Pinduoduo morreu em 3 de janeiro de 2021 devido ao excesso de trabalho por horas extras, fato que enfureceu o público. Em 9 de janeiro, apenas seis dias depois, outro trabalhador da mesma empresa se suicidou na cidade de Changsha.

Mobilização

Apesar da ditadura que governa a China com mão de ferro, os trabalhadores encontraram seus meios de luta. Em março de 2019, um grupo de desenvolvedores criou um repositório chamado “996.ICU” no GitHub, plataforma que hospeda e gerencia projetos de software. Foi um grande protesto on-line, que associava a jornada 9-9-6 com o risco real de internação em UTI (daí o nome ICU, Intensive Care Unit). O projeto rapidamente viralizou, ganhando as redes sociais com relatos, provas e uma lista com mais de 150 empresas acusadas de promover esta rotina exaustiva.

Logo surgiu a Anti-996 License, criada por dois desenvolvedores, Katt Gu e Suji Yan. Tratava-se de uma licença de software que estabelecia que qualquer empresa que usasse o código deveria cumprir as leis trabalhistas locais e normas da Organização Internacional do Trabalho. A iniciativa fortaleceu ainda mais o movimento digital por melhores condições de trabalho.

Já em 2021, um grupo anônimo lançou, também do no GitHub, o movimento Worker Lives Matter. Era um formulário público no qual trabalhadores podiam registrar seus horários de trabalho, suas empresas e funções. Até então, mais de 4 mil registros foram inseridos, incluindo funcionários de gigantes como Alibaba, Tencent, ByteDance e outros. Muitos revelaram jornadas de dez a doze horas por dia.

Insatisfação sai das redes e vai à rua

A resposta digital foi tão intensa que, em poucos dias, o 996.ICU virou o projeto mais popular do GitHub, com dezenas de milhares de estrelas, evidenciando seu impacto e a adesão massiva. A campanha gerou um amplo debate nas redes sociais Zhihu e Weibo (o Reddit chinês), além de obrigar a mídia estatal, como o People’s Daily, a defender que quem questiona o modelo 9-9-6 não deveria ser classificado como “preguiçoso”, e suas preocupações deveriam ser levadas a sério.

Mas foram as ações e manifestações físicas que expressaram de uma vez por todas que aquelas condições não podiam continuar. Estatísticas do extinto China Labour Bulletin indicam que 131 protestos de entregadores foram registrados entre 2016 e 2021, muitos deles relacionados a atrasos de pagamento e condições abusivas, questão vinculada à sobrecarga da cultura 9-9-6. Mesmo com todo o controle e repressão do Estado, estes trabalhadores realizaram greves em diversas cidades.

Também aconteceram casos extremos de protesto individual: incidentes dramáticos, como do entregador que ateou fogo em si mesmo em Taizhou, em protesto por falta de pagamento; colapsos e mortes de trabalhadores nas ruas atribuídos à exaustão por longas jornadas; suicídios nas empresas; entre outros.

Movimentos como o Tangping, que defende evitar a cultura de superesforço e resistir ao sistema de competição desenfreada, ganharam força como forma de protesto silencioso, em especial entre jovens que rejeitam essa rotina e buscam uma vida mais equilibrada.

A reação do governo

Foi só em 26 de agosto de 2021 que a Suprema Corte Popular da China e o Ministério de Recursos Humanos e Seguridade Social publicaram diretrizes conjuntas contendo dez casos de disputas trabalhistas relacionadas à 9-9-6. As diretrizes determinaram a ilegalidade dessa jornada de acordo com a legislação trabalhista do país.

A lei chinesa estabelece que a jornada regular máxima deve ser de oito horas por dia, uma média de 44 horas por semana. A jornada só pode ser extendida mediante negociação e não pode ultrapassar 36 horas extras por mês. Em tese, empresas que tentem não pagar hora extra ou impor escalas como a 9-9-6 têm seus contratos considerados total ou parcialmente inválidos conforme o artigo 26 da Lei do Contrato de Trabalho.

Desde então, empresas que mantêm a 9-9-6 podem sofrer processos trabalhistas e multas. Já houve casos em que tribunais deram ganho de causa a empregados que sofreram demissões por recusarem esse sistema ou por não receberem hora extra. Também houve tragédias associadas à cultura de sobrecarga, como o caso do trabalhador que faleceu após um turno de doze horas, cuja família foi indenizada.

A aplicação prática, porém, é desigual: na lei é proibido, mas na prática ainda existe, só que mais disfarçado.

Por que a proibição aconteceu?

Resumindo, a proibição foi uma resposta a mortes (incluindo suicídios), adoecimento e exaustão extrema de trabalhadores sob a 9-9-6 e à pressão dos trabalhadores e à opinião pública, como a campanha 996.ICU no GitHub, que se tornou um símbolo de resistência à cultura de sobrecarga chinesa. Evidentemente, o governo também precisava restaurar a estabilidade social. Coibir práticas trabalhistas absurdamente prejudiciais e impopulares é uma forma de fazer isso.

No entanto, apesar da proibição legal, sua aplicação tem sido desigual. Muitos locais continuam tolerando o 9-9-6, especialmente no setor de tecnologia. No Reddit, é possível encontrar muitos relatos como: “O governo o tornou ilegal, mas a lei trabalhista não é aplicada, então não faz diferença”; “Só é muito comum nas indústrias de alto lucro”; “Trabalhadores são forçados a trabalhar para seu time, empresa ou nação, sob pena de perder tudo”.

Esses relatos evidenciam que, embora ilegal, o modelo ainda está enraizado em setores competitivos e pode ser socialmente imposto. Isso não tira a importância da conquista no terreno legal. Sinais de mudança surgiram em abril deste ano, quando grandes empresas começaram a estabelecer limites objetivos. A Midea, líder mundial na fabricação de eletrodomésticos, por exemplo, implementou um horário fixo de saída às 18h20. A Haier, também do setor de eletroeletrônicos, voltou à semana de trabalho de cinco dias.

São medidas que refletem uma leve mudança, motivada por pressões externas. Mas também precisamos levar em conta que o governo chinês, nas discussões do 15º Plano Quinquenal, que será divulgado em 2026, tem pensado em iniciativas governamentais para incentivar consumo interno – e talvez as empresas tenham percebido que estão destruindo sua própria força de trabalho?

Foto: Olly

Voltando aos EUA

Não há uma lei ou sistema formal oficial de jornada 9-9-6 nos EUA. A jornada padrão é de 40 horas semanais. Porém setores como startups, finanças e advocacia já têm, há décadas, jornadas longas “voluntárias” (muitas vezes esperadas culturalmente, sem pagamento de hora extra).

Contudo, segundo a reportagem da Wired, startups de inteligência artificial do Vale do Silício estão adotando o modelo chinês 9-9-6 na prática. A matéria destaca que, para obter o emprego, muitas vezes é necessária uma resposta categórica: “aceita ou cai fora”.

O empreendedor Adrian Kinnersley, que atua em recrutamento e compliance, comenta: “Está se tornando cada vez mais comum (…) para muitas empresas, um pré-requisito para entrevista é se o candidato está preparado para trabalhar no sistema 9-9-6”.

Há uma cultura de sacrifício e ídolos do hustle. Algumas startups assumem o 9-9-6 como parte da identidade cultural. Na Rilla, startup de desenvolvimento de software para o comércio, quase toda equipe de 80 pessoas segue este modelo.

O head de growth (chefe de crescimento) Will Gao disse à revista: “Existe uma subcultura crescente especialmente da minha geração (GenZ) que cresceu ouvindo histórias de Steve Jobs e Kobe Bryant”.

Nem todos impõem a 9-9-6. Algumas empresas oferecem incentivos a quem aceita de forma voluntária. A Fella & Delilah, que atua com telemedicina, ofereceu 25% de aumento salarial e 100% a mais em participação societária para quem aceitasse. Menos de 10% da equipe aderiu.

Sinais dos tempos (de decadência)?

Enquanto a 9-9-6 foi alvo de protestos e proibições na China, nos EUA está ganhando tração entre startups que querem competir em alta velocidade, em uma disputa que parece superar questões como equilíbrio entre vida e trabalho. Debates em voga trazidos pela pandemia, como burnout e exaustão, agora são substituídos pela pressão por horas intensas, como nos tempos mais extremos de Elon Musk.

Embora seja verdade, é insuficiente atribuirmos a deterioração das condições de trabalho à cultura de hustle, a um subproduto da geração Z (isso nem faz sentido!) ou coisas do tipo. O crescimento dessa cultura está fortemente ligado ao espírito idealizado de sacrifício: essa é a ideologia por trás da batalha dos EUA para manter a hegemonia imperialista mundial. A popularização da 9-9-6 no país não deixa de ser um sinal de sua decadência, hoje representada pela figura de Donald Trump no poder e suas medidas protecionistas.

Avançar em alta velocidade no setor de tecnologia (big techs, IA, robótica, semicondutores etc.) é decisivo, e a China é sua maior ameaça. Não é à toa que a escala chinesa ressurgiu nos EUA com mais força no setor de IA, em startups impulsionadas por competitividade e cultura de hustle, com rotinas extenuantes, salários baixos, equipes reduzidas e pressão por resultado rápido.

Esta é uma batalha em curso, cujo resultado ainda não está definido. No entanto, o que está evidente é que, seja no Ocidente, seja no Oriente, a classe trabalhadora só pode contar com suas forças. A resistência organizada é capaz de arrancar conquistas até de ditaduras. E construir uma sociedade como a almejada por Marx, que tenha como lema: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!

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Last Update: 14/08/2025