Na série sobre os presidentes do Banco Central, é impossível não incluir o nome de Ernane Galvêas, que desempenhou um papel estratégico durante a ditadura até 1985, quando a democracia liberal burguesa substituiu a ditadura, com consequências nefastas para o país, sentidas até o presente.
Em sua entrevista à série Histórias Contadas do Banco Central do Brasil, o ministro e tecnocrata da ditadura Ernane Galvêas revela como o controle sobre o Banco Central a favor do mercado financeiro sempre serviu como estratégia do imperialismo e da grande burguesia nacional.
O capitalismo dependente brasileiro na segunda fase do regime autoritário após o Ato Institucional número 5 (AI-5) e na mudança de rumo da política econômica sob a batuta de Delfim Neto à frente do Ministério da Fazenda passa a adotar ações de cunho desenvolvimentistas diante da crise de estagnação devido em grande parte a política contracionista anti-inflacionária e também dos próprios entraves da economia mundial.
No segundo momento, o imperialismo avalizou um modelo mais dirigista desenvolvimentista como forma de expandir os investimentos, principalmente a partir de aportes financeiros internacionais e demais políticas que absorvessem o capital externo na economia brasileira.
O Banco Central teve um papel intenso de adequação às novas demandas do mercado financeiro, as preocupações com o controle inflacionário, o equilíbrio do déficit público e da dívida externa. Essa adequação também diz respeito à elevada entrada de capitais externos e à expansão do crédito internacional.
Segundo a Coleção História Contada do Banco Central do Brasil V. 6 (2019, p. 76-78):
A gestão da economia de 1964 a 1969 Que avaliação, de caráter geral, poder-se-ia fazer sobre as diferenças que marcaram as políticas econômico-financeiras dos governos Castelo Branco e Costa e Silva? Em princípio, eu diria que houve uma continuidade na política econômica – até escrevi alguns trabalhos a esse respeito.10 É evidente que, no governo Castelo Branco, foi preciso promover a reconstrução de muitas coisas que, visivelmente, não estavam funcionando bem, ou que haviam sido destruídas nos períodos anteriores. Então, sob a liderança do doutor Bulhões, na Fazenda, e do Roberto Campos, no Planejamento, foi feito um trabalho de peso para a renovação dos institutos jurídicos. Surgiu um grande número de novas leis, de decretos, e fizeram-se várias reformas, para colocar os fundamentos de uma nova orientação na política econômica.11 E isso se fez com um sentido bastante privatista e liberal, numa posição que confrontava com muitos aspectos da política anterior, em especial, mas não apenas a que foi desenvolvida por João Goulart. Desde 1950, vínhamos assistindo a um processo de maior ênfase na intervenção do Estado no domínio econômico, com a criação de muitas instituições públicas. A nova orientação do governo Castelo Branco visava deter a marcha desse processo de estatização, dar maior ênfase à privatização, à iniciativa privada, e abrir uma política liberal, de maior participação dos empresários e menor ingerência do governo nas atividades econômicas.
Apesar do depoimento de Galvêas apontar os acertos do regime autoritário de uma maneira pouco distante, algumas das suas considerações contribuem para explicar os momentos distintos da economia brasileira entre meados da década de 1950 até a entrada da década de 1970 numa política que combina desregulamentações e liberalizações do mercado financeiro e do comércio com um dirigismo estatal através da criação de empresas e investimentos públicos a partir da tomada de crédito internacional em grande escala.
Segundo a Coleção História Contada do Banco Central do Brasil V. 6 (2019, p. 84):
A equipe do Banco Central permaneceu a mesma? Nada mudou na equipe do Banco Central, com exceção do Carlos Brandão, que eu trouxe da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac). Era um homem do [Ignácio] Tosta Filho, que também foi diretor da CACEX, e muito organizado, muito disciplinado, muito criativo. Então, resolvi trazê-lo, mesmo não sendo economista, porque havia vários economistas no Banco Central, mas nenhum com o perfil que me parecia adequado para reorganizar o problema da dívida pública. Achei que, embora ele não fosse economista, eu poderia prepará-lo e, com o tempo, ele acabaria aprendendo as coisas do mercado. Mas era um grande disciplinador, tinha um bom comando sobre os funcionários, e tudo isso eu vi nas diversas vezes em que nos encontramos nas visitas que fiz à Bahia, a Ilhéus, a Itabuna, onde ele trabalhava, cuidando de cacau. Bom, trouxe o Brandão para o Banco Central em princípios de 1969, e começamos a fazer uma reorganização. Organizamos a biblioteca de mercado aberto, preparamos os funcionários, demos cursos, trouxemos economistas do Fed dos Estados Unidos e do Banco da Inglaterra para fazer conferências no Banco Central.
Essa passagem do depoimento de Ernane Galvêas explica de maneira clara a relação de proximidade entre o imperialismo estadunidense e britânico quando da chegada de tecnocratas vindos desses países para oferecer o treinamento em técnicas do mercado financeiro e lançar serviços mais sofisticados para esse mercado. Técnicos brasileiros em “mercado aberto” foram formados a partir dessa parceria com os bancos centrais dos EUA e da Inglaterra e aperfeiçoamentos de gestão na política monetária foram feitos.
As negociações com títulos públicos e letras do Tesouro Nacional como formas de financiar o déficit público e a própria administração da dívida pública foram conduzidas de uma maneira mais técnica a partir da década de 1970, principalmente num momento que a economia brasileira começava a experimentar a sua fase de maior crescimento econômico; a despeito da austera política de arrocho salarial e da manutenção de enormes incentivos fiscais aos industriais e a classe dominante doméstica e transnacional. De um lado uma necessidade de aperfeiçoamento técnico por parte dos gestores da política econômica e de outro a continuidade dos mecanismos costumeiros da burocracia estatal autoritária, com suas práticas e atores políticos preferidos.
Como foi presidente do Banco Central por duas vezes e ministro confiável da ditadura, o político e tecnocrata Ernane Galvêas apresenta a face mais perversa da ditadura, que frequentemente sempre aderiu ao imperialismo, com sua política econômica e diversos braços institucionais tecnocráticos a favor do capital privado nacional e principalmente estrangeiro. Essas passagens que revelam como funciona o esquema de concentração de poder através dos braços do imperialismo comprovam que a ditadura de nacionalista nem se quer deveria passar pelo pensamento daqueles que ainda tinham uma ilusão histórica sobre os caminhos do país na década de 1970.