Desde 2022, os moradores de Bauru, no Centro-oeste Paulista, têm visto crescer a violência estatal. Não é coincidência que a situação comece a piorar no período em que assumem o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário de “insegurança” pública Guilherme Derrite (PL).

Se há três anos o município contou 2 mortes provocadas por intervenção policial, em 2023 o número foi de 8 e, em 2024, 14. A cidade é a 18° em população no estado, mas a 8° em assassinatos cometidos pela polícia.

Mas quando olhamos apenas para números, não é possível ver o que isso significa na vida das famílias que perderam um ente querido. Em sua maioria, essas mortes são de jovens trabalhadores. Cada um tinha um sonho e uma família que se vê destruída por esse genocídio contra a população negra e periférica promovida pelo Estado brasileiro.

“Eu tirei o Guilherme de São Paulo para que ele fosse criado aqui, por ser calmo. Eles [BAEP] vieram aqui, na rua da minha casa, tirar a vida dele”

Já se tornou rotina na polícia paulista justificar qualquer morte com o argumento de que houve confronto. No caso de Guilherme Alves Marques Rodrigues, 18, e Luís Silvestre da Silva, 21, não foi diferente. 

Os jovens caminhavam em uma zona de mata do bairro onde moravam, quando levaram mais de 20 tiros de fuzil de policiais do 13º Batalhão de Ações Especiais da Polícia (BAEP) que passavam pela região. Segundo a versão oficial, os agentes teriam sido surpreendidos por disparos efetuados por duas pessoas. Porém, as armas que teriam sido usadas não foram encontradas na cena do crime, aparecendo somente após a perícia pela mão de policiais.

No dia do assassinato, ao chegar no local, vizinhos e familiares de Guilherme e Luis pediram por informações, porém, Nilceia nos conta que os policiais reprimiram quem chegava perto dizendo serem vagabundo, vagabunda, nóia, eles xingavam e ameaçavam com as armas, né, falavam que iriam atirar”. Além disso, os próprios policiais falaram que tinha um morto e um semimorto, mas não deixaram o SAMU entrar no isolamento e socorrer. 

O que ainda estava vivo era o Guilherme. Nilceia Rodrigues, mãe dele e uma das lideranças do coletivo local Vozes da Periferia, conta que o filho era “um adolescente assustado com a polícia” devido às histórias de violência que eles ouviam desde São Paulo. “Sempre que tinha operação ele logo entrava pra dentro de casa”, revela.

A pergunta que fica é: qual ameaça essas pessoas que tentavam se aproximar representava aos policiais? Por que evitar que o SAMU ajudasse as vítimas? A verdade é que só podemos especular, se ao menos usassem câmeras corporais, poderíamos tirar a prova se falam a verdade ou não. Mas a própria polícia se recusa a usar as câmeras. O 13° BAEP, inclusive, não utiliza câmera corporal. Se eles dizem que houve confronto, por que não usar câmera e provar com imagens?

“Eu comecei essa investigação particular. Eu fui pra cima”

Nilceia conta que precisou ela mesma começar a investigar o crime, pois a polícia civil não havia feito uma perícia decente. “E eu fui no local da morte, da onde acharam o corpo dele, onde pegaram o corpo dele, e só tava umas coisinhas. Eu falei: mas cadê a roupa dele? E eu fui achar num outro local. E eu tirei foto e fui na Civil. Falei, vocês voltem lá e me façam uma perícia decente, porque eles arrastaram meu filho”.

É o caso de diversas mães e familiares que têm filhos mortos pela polícia: perdem o filho e o direito ao luto. Precisam tornar-se investigadores já que as perícias oficiais muitas vezes trabalham para justificar o ocorrido, não para solucionar o caso. Ela continua: “As coisas, o chinelo dele, a camiseta dele, tava num local e o corpo dele foi achado em outro. E aí a gente foi, eu comecei essa investigação particular. Eu fui pra cima. E eu consegui que a civil descesse lá e realmente visse toda a cena...”

Protesto de familiares de vítima da violência policial em Bauru | Foto: Guilherme Matos/Divulgação

“Falou que mora na periferia já perde todos os seus direitos e razão”

Em uma simples busca no Google sobre o assassinato dos garotos, vamos encontrar palavras como “suspeitos”, “mortos em confronto” e todo tipo de palavras que logo acobertam e distorcem os fatos, levando em consideração apenas a visão dos policiais. 

A grande mídia, antes de tudo, procura absolver o Estado brasileiro e condenar antecipadamente os filhos da classe trabalhadora que são vitimados por essa guerra racista.  Os garotos morrem duas vezes, pelas mãos da polícia e pelas mãos da mídia, que os transformam em monstros. Nilceia nos conta que não deram a chance de ouvir o lado dela, quando ouviam escreviam o contrário.

“Mas o que mais me deixou desapontada é o quanto as emissoras são mentirosas, sabe? O quanto elas juntam tudo e nos massacram também. Porque eu acho assim, tudo que chegou lá foi dúvida. Vamos ouvir as duas partes? Não. E ela simplesmente foi lá e falou tudo ao contrário e continuou colocando como um confronto com a polícia. A mídia hoje em dia tá vendida, né? Vamos dizer assim, não tem mais o profissionalismo, vamos falar a verdade? Então vamos dar razão pra eles, né? Porque eles são mais poderosos, né? Então quer dizer, todo mundo tá na mão dessa polícia assassina, né? Falou que mora na periferia e já perde todos os seus direitos e razão. 

“Mal chegou o corpo do meu filho e os policiais começaram a rir e falar que o sistema venceu”

O caso do Guilherme e do Luís ganhou atenção da mídia por um episódio lamentável: a polícia invadiu o enterro dos rapazes e ainda agrediu fisicamente os presentes. Nilceia nos relata que ao chegar o corpo, a polícia chegou acompanhando, como se estivesse escoltando. No velório, um dos policiais zombou falando que “O sistema venceu”. E como se não bastasse, o seu filho mais velho foi agredido e preso no dia do velório.

Para Nilceia eles queriam evitar que familiares e amigos vissem as diversas marcas pelo corpo de Guilherme, que evidenciava que ele havia sido torturado: “Eu falei: gente, a prova tá aí, não tem confronto. Eu falar que meu filho nunca mexeu com arma, ninguém vai acreditar. Mas se eu mostrar essas fotos, que ele tá ferido. A polícia teve chance de deixar meu filho viver. Por que eles mataram? Por que eles torturaram meu filho? Algemou meu filho e depois o matou? E eu fiquei com isso na cabeça…” 

Além do episódio no velório, Nilceia teve diversas faixas de protesto queimadas pelos policiais. Tudo isso para tentar pôr medo. Já se tornou um protocolo da polícia paulista: faz a chacina e depois aterroriza os familiares e o bairro para que não busquem seus direitos.

“O povo cansou de sofrer, o povo acordou aqui nessa cidade”

Porém, após a morte e o que aconteceu no enterro, os vizinhos de Nilceia se revoltaram e saíram às ruas em seu apoio. Ela diz que os anos que morou em São Paulo ensinaram que o povo só é ouvido quando sai às ruas e assim o fizeram. 

Logo a polícia reprimiu à bala e com bombas de efeito moral. Inclusive, deixaram cair uma bomba carregada no chão que foi encontrada no outro dia por uma criança, que começou a brincar e a bomba explodiu amputando o dedo da criança. Essa é a Polícia Militar do Estado de São Paulo. 

Eu não vou aceitar a morte do meu filho calada. Eu não vou aceitar. Eles mexeram com a mãe errada. Meu filho estava no portão da minha casa. E eles fizeram isso. Não deu direito a nada. Eles deram na perna, ele tava ali. Por que não deixou socorrer? Porque? Brincou com a vida do meu filho? ao ponto de tirar a vida dele. E depois eles iam fazer o quê? queriam esconder o corpo? O que eles queriam fazer? Quando eles viram que fizeram merda, que o meu bairro começou a gritar e botafogo em tudo, eles se desesperaram”.

Desde esse dia, Nilceia passou a conhecer diversas mães que estavam passando pela mesma situação, com seus filhos mortos pelo BAEP, mas que não sabiam o que fazer para obter justiça. É o caso de dona Maria Helena, de 75 anos, que perdeu o filho. 

 “Fui comprar pão com meu netinho e o BAEP estourou o cadeado do meu portão, e fuzilou o Elias no sofá de casa”, conta. Os policiais militares também alegam terem sido recebidos a tiros pelo rapaz. “É mentira que os meninos saíram pra rua e tava trocando tiro com eles. Mentira”, defende. De fato, os vizinhos falam que Elias estava no sofá apenas mexendo no celular. 

O assassinato foi a culminação de uma história de violência. Por ter passagem pela prisão, era perseguido constantemente por policiais militares e chegou a ser torturado em uma abordagem, tendo uma hérnia estourada devido a chutes e socos. Até o filho de Elias, de apenas 7 anos, conta que no dia da morte de seu pai um agente disse que mais tarde subiria na casa para matá-lo. Depois disso, dona Maria Helena passou a se organizar. 

“Ela [Nilcéa] estava convidando as mães, né, da periferia, que teve o mesmo caso. Aí eu falei, aí tá, eu orei tanto a Deus, E Deus já abriu o caminho, vamos entrar. Vamos entrar também na comunidade. E vamos fazer a nossa reclamação também. Contar a nossa história para algum repórter, algum advogado, alguma pessoa que entende. Porque a gente não tem estudo. Eu estudei até a quarta série. A minha filha também até a quinta série. Nós não conhecíamos ninguém que orientasse. Eu comecei a pedir a Deus, para iluminar um caminho. Para ela reclamar uma providência. 

“Eu quero ter o direito de voz e de justiça”

Os moradores de Bauru passaram a se organizar no Vozes da Periferia de Bauru. A proposta do movimento é lutar por justiça e principalmente para que não ocorram novos casos. 

Hoje a gente levanta essa bandeira e eu falo: meu filho não vai voltar, mas eu não quero mais ninguém neste grupo. Eu não quero ter que acolher nenhuma mãe mais desse grupo, sabe? Nesse movimento. Eu não quero ter que ir em nenhum velório mais, a gente já foi em dois. Não, não quero mais isso. Então o que eu puder é gritar, sapatear para que essa polícia mude aqui em Bauru, já que ela não é daqui, tira daqui.”

Hoje o movimento luta por justiça, mas também procura organizar a juventude das periferias. “Eu decidi fazer algo diferente daqui pra frente. O nosso movimento trazer cultura para dentro da nossa comunidade e buscar melhoria também para nossa comunidade, como iluminação e outras coisas. Porque não adianta só pedir justiça e não fazer uma melhoria ali, né, pros jovens. E a gente trouxe o pessoal do grafite, hip-hop, movimentos de rua, pra trazer isso também pra nossa comunidade, uma cultura que precisa muito. Porque o governo só dá escola, ele não dá outras opções para o jovem fazer outras coisas”.

O exemplo das mães, familiares e ativistas de Bauru tem se repetido em todo o Brasil, com mais familiares e movimentos de bairros se organizando de forma independente. Se governos como do Tarcísio(Republicanos), Ratinho Jr (PSD) e Jerônimo Rodrigues (PT) dão carta branca para suas polícias matarem, inclusive com o silêncio absoluto do governo Lula(PT), cabe à classe trabalhadora e ao povo pobre nos organizarmos em defesa das nossas vidas e de nossos jovens.

Somente unidos, organizados e com independência dos governos conseguiremos avançar na batalha contra a violência policial. Vitórias como essa, assim como a luta pela desmilitarização das polícias e o fim da guerra às drogas, nos fortalecem rumo à construção de uma segurança pública que de fato atenda às necessidades dos trabalhadores.

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Last Update: 24/03/2025