A ideologia neoliberal tem deixado suas digitais não somente nas tragédias ambientais catalisadas por ação humana, mas também no ambiente de negócios criado em meio à mobilização para “reconstruir” as regiões afetadas por esses desastres, como acontece no Rio Grande do Sul, o estado alagado que já recebe assessoria de consultorias como Alvarez & Marsal, McKinsey e EY.
Críticos têm alertado que empresas estrangeiras oferecem seus serviços em caráter pro bono ao poder público em momentos de crise e comoção para, entre outros motivos, terem acesso a dados sensíveis e sob domínio do setor público, e depois utilizá-los em nome de seus próprios interesses privados.
Professor de estudos de política educacional na Universidade de Illinois em Chicago (EUA) e autor do livro “Capitalizando desastres”, Kenneth Saltman disse à reportagem do Jornal GGN que “há certamente razões para esperar tal curso de ação” em relação ao Rio Grande do Sul.
Há décadas, Alvarez & Marsal e outras consultorias, fundações e organizações internacionais têm atuado globalmente para criar um ambiente propício à penetração do capital privado em setores públicos que deveriam estar blindados, mas que acabam apresentados à opinião pública como ineficientes. É o caso da educação, um direito que deveria ser universal, mas que em locais por onde a A&M já passou, nos EUA, acabou privatizada.
“A evidência mostra que isto tem sido esmagadoramente destrutivo, ao agravar as desigualdades educativas e a segregação racial e ao minar o acesso universal. Os lucros visam drenar dinheiro dos sistemas públicos para que possam enriquecer os investidores”, disse Saltman.
Saltman aceitou falar sobre a A&M e seu trabalho de pesquisa sobre a capitalização de desastres em troca de e-mails com a reportagem do Jornal GGN. Na entrevista a seguir, o especialista fala da tendência global de empresas que procuram lucrar com o setor público em meio a tragédias, detalha o caso da Alvarez & Marsal nos EUA, e avalia por que a ideologia neoliberal tem focado no rearranjo da educação pública para obter lucros, com apoio acrítico da imprensa e sem obstáculos legais à sua atuação flagrantemente conflituosa.
Acompanhe a entrevista:
Jornal GGN – Na sua opinião, por que a Alvarez & Marsal teria interesse em prestar consultoria gratuita para o Rio Grande do Sul? O que a empresa ganha com isso?
Kenneth Saltman: A&M é uma empresa com fins lucrativos. Em Nova Orleans recomendaram milhões em cortes de despesas e depois cobraram milhões em taxas, ou seja, os seus próprios lucros.
GGN – Você poderia nos dizer onde e quando a A&M começou a investir em cidades destruídas por catástrofes?
Saltman: Sua história de capitalizar desastres naturais e causados pelo homem é anterior ao furacão Katrina em 2005. Eles também estiveram envolvidos em Baltimore, Nova York e St. Louis. Como saliento na minha investigação, isto faz parte de uma tendência global mais ampla de empresas que procuram lucrar com o setor público e, mais especificamente, com as escolas públicas.
GGN – Como estão hoje as cidades onde a A&M ofereceu consultoria? Como Nova Orleans, onde a A&M prestou consultoria antes e depois do furacão Katrina. Ou Saint Louis, onde a A&M trabalhou na reformulação do sistema de transporte escolar público. Fique à vontade para mencionar outros exemplos.
Saltman: Antes do Furacão Katrina, as Escolas Públicas de Nova Orleans sofriam de um subfinanciamento radical devido, em parte, ao fracasso do setor empresarial em apoiar as escolas e a um sistema de financiamento baseado na riqueza imobiliária. O desmantelamento total das escolas públicas (apoiado pela A&M) fez parte de uma estratégia da comunidade empresarial para desapropriar os pobres e as famílias predominantemente afro-americanas das comunidades mais atingidas pela tempestade.
GGN – No Brasil, alguns críticos da parceria entre A&M e Rio Grande do Sul apontam que o interesse da empresa em oferecer seus serviços de forma pro bono seria acessar dados e informações privilegiadas dentro do estado, e depois “vendê-los” para o setor privado. O que você acha dessa avaliação? Você conhece algum caso em que a A&M tenha feito isso antes?
Saltman: Há certamente razões para esperar tal curso de ação, considerando que os dados sobre a educação são uma grande direção da A&M para a atividade lucrativa e considerando que a privatização da educação digital é a nova fronteira na privatização da educação.
GGN – Por que, na sua opinião, consultorias estrangeiras como a A&M contam com o apoio acrítico da imprensa e não parecem enfrentar fortes obstáculos legais ao seu trabalho no setor público, apesar de seus negócios serem marcados por óbvios conflitos de interesses?
Saltman: Parte disto tem a ver com a persistência zumbi da ideologia neoliberal que enquadra mal o setor privado como sempre eficiente e eficaz e enquadra o setor público como inevitavelmente sobrecarregado burocraticamente.
Produção e tradução: Dolores Guerra (GGN)
Edição: Cintia Alves (GGN)
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