Com o título “Fora PT na Medicina”, um grupo de médicos conservadores assina um panfleto que circula pelas redes sociais, convocando a categoria a rejeitar as chapas progressistas e votar nos candidatos conservadores para o Conselho Federal de Medicina. “Não vamos deixar que eles ‘tomem’ também essa eleição”, prossegue o libelo, em aparente alusão à fake news bolsonarista de fraude na vitória eleitoral de Lula em 2022. Na outra ponta, em oposição à atual direção da entidade, claramente alinhada à extrema-direita, várias chapas apoiadas pelo Movimento Muda CFM apresentam-se como opção ao negacionismo e em defesa da ciência. Fica claro que a polarização no cenário político nacional está refletida no pleito, previsto para os dias 6 e 7 de agosto, quando os profissionais devem eleger 56 conselheiros para um mandato de cinco anos.
Cada estado terá dois representantes no CFM, um titular e um suplente. Outros dois assentos estão reservados à Associação Brasileira de Medicina. Apenas em Rondônia e Alagoas não haverá disputa, pois uma única chapa foi registrada em cada estado, com as candidaturas à reeleição do atual presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, e do terceiro-vice-presidente, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, respectivamente. O acirramento maior será no Rio de Janeiro, onde cinco chapas brigam pelas duas vagas, quatro delas fruto de um racha do grupo que comanda o CFM e uma de oposição, a Pró-Médico. Uma das chapas da direita é encabeçada por Raphael Câmara, atual conselheiro do colegiado e ex-secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde do governo Bolsonaro.
Durante a pandemia, assim como fez o próprio CFM, Câmara avalizou o kit para o “tratamento precoce” de Covid com cloroquina e ivermectina, sem comprovação científica da eficácia dos medicamentos contra o Coronavírus – na verdade, estudos provaram a ineficácia das substâncias e apontaram efeitos colaterais potencialmente graves em pacientes com quadro de insuficiência respiratória. Ele estava no cargo na época da crise de oxigênio no Amazonas, quando mais de 60 pacientes morreram em decorrência da falta do insumo e da letargia do governo no socorro ao estado.
Câmara também foi o relator de uma resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio, que exigia boletim policial para o atendimento ao aborto legal em caso de estupro, medida adotada pelo Ministério da Saúde quando era assessor. O conselheiro é ainda coautor da resolução do CFM, aprovada em abril, que proibia o uso de assistolia fetal a partir da 22ª semana de gestação, embora o procedimento seja recomendado pela Organização Mundial da Saúde nos casos de abortos tardios. A medida foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, mas ganhou sobrevida no PL 1940/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante, a restabelecer a restrição e ainda impor uma pena de até 20 anos de prisão às mulheres que abortam após 22 semanas de gestação, mesmo que tenham sido vítimas de violência sexual.
O presidente do CFM é um ardoroso defensor da resolução. “Até que ponto a prática da assistolia fetal em gestação acima de 22 semanas traz benefício? Só causa malefício. Nesse campo, o direito à autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a vida de qualquer um”, discursou Gallo, na audiência pública que debateu, em junho, o PL 1940 no plenário do Senado, um show de horrores montado por parlamentares fundamentalistas, a incluir encenação de um feto agonizando no ventre materno e exibição de bonecos de borracha.
O presidente do CFM classifica como cruel o uso de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro, mas garante que o “CFM nunca teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em hospitais da rede pública”. Ele também nega que o Conselho tenha participado do governo Bolsonaro ou qualquer outro e cita a autonomia médica para justificar a posição do Conselho sobre o uso do kit Covid. “Nunca, em nenhum momento, o CFM defendeu o uso de uma ou outra substância, e também não obrigou a sua utilização. O médico tem autonomia para prescrever e autonomia de não prescrever também. O paciente também tem a sua autonomia para exercer; ele pode acolher ou rejeitar.”
Inspirado em resolução do Conselho, deputado propôs a proibição de abortos tardios, até mesmo para as vítimas de violência sexual
Não é bem assim, rebate o obstetra paraibano Roberto Maglia. “Com o aval da atual direção do CFM, o médico passou a prescrever um medicamento baseado em opinião política, a tomar decisão com relação ao aborto e outras situações baseado em convicções religiosas. Você pode ter a sua religião ou convicção política, mas o que a ciência entrega para a medicina não tem nada a ver com isso. Eu não posso operar um paciente ou adotar determinadas práticas baseado nas minhas crenças. Parte importante da diretoria do Conselho é simpatizante de Jair Bolsonaro e, evidentemente, isso contribuiu para uma condução da pandemia não baseada no conhecimento científico, e sim na ideologia política e na religião.”
A tendência é de que a extrema-direita faça a maioria dos conselheiros federais, já que saiu vitoriosa nas eleições dos Conselhos Regionais, ocorridas no ano passado. Apenas no Distrito Federal a chapa progressista derrotou os conservadores. Muitos candidatos não disfarçam o alinhamento com teses fundamentalistas, como a Chapa 1 de Goiás, que tem entre suas propostas “proteger a vida desde a concepção” e acabar com o Mais Médicos, programa criado por Dilma Rousseff para suprir o déficit de profissionais em áreas remotas do País, inclusive por meio da contratação de estrangeiros, caso as vagas não sejam preenchidas pelos nacionais.
A médica Maria Tereza Camargo, diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, o Cebes, defende a total renovação do colegiado. “Não se trata de uma polarização ideológica, como eles colocam. A polarização é entre ciência e negacionismo, entre ética e antiética. Todo o esforço que se fez para o Brasil ter o nível de vacinação aceitável foi comprometido com o aval do CFM, que manifestou objeções à vacina da Covid. Isso trouxe reflexos na aceitação de outros imunizantes”, critica Camargo, uma das coordenadoras do Movimento Muda CFM. “A poliomielite está batendo à porta, uma coisa que a gente já tinha erradicado nos anos 1990. Estamos brigando para eleger chapas pró-ciência.”
Em 2018, logo após Bolsonaro derrotar o petista Fernando Haddad nas eleições presidenciais, Gallo publicou um texto afirmando que a esperança tinha vencido o medo. Em 2022, o CFM também baixou uma resolução restringindo o uso terapêutico do canabidiol, comprometendo a continuidade do tratamento de vários pacientes. “Assistimos, nos últimos anos, um claro alinhamento da atual direção do Conselho Federal e de alguns Conselhos Regionais a uma postura anti-ciência, sob a desculpa de defender a autonomia da classe médica, criando uma situação de polarização e de desgaste entre os profissionais do setor. Nesse momento de recuperação do SUS, de reabertura do Ministério da Saúde para a ciência, é importante que os médicos reflitam sobre a sua importância na sociedade como profissionais e como atores políticos”, diz o médico sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde. “Precisamos de um Conselho que esteja totalmente alinhado à ciência e completamente afastado das brigas político-partidárias.”
Em janeiro, o CFM propôs a realização de uma pesquisa sobre a obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11 meses. Após a repercussão negativa, desistiu da consulta. Alguns conselheiros chegaram a apoiar o 8 de Janeiro, caso da segunda-vice-presidente Rosylane Rocha, que nas suas redes comemorou a invasão às sedes dos Três Poderes. Rocha é candidata à reeleição pelo Distrito Federal. “O Conselho Federal tem conduzido a nossa instituição de regulação da profissão de uma forma equivocada, enviesada, politizada e partidarizada, levando nossa categoria para o campo da direita”, critica Ana Costa, médica sanitarista e diretora do Cebes. “Isso não traduz os interesses humanísticos, éticos e científicos da atuação médica.” •
Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título