Entre Washington e Brasília: a instrumentalização da Lei Magnitsky como arma ideológica contra o STF brasileiro

por Gisele Agnelli e Luciana Bauer

            Nos últimos dias, o cenário internacional foi surpreendido por uma iniciativa inusitada e perigosa: o deputado republicano Cory Mills, da Flórida, pediu formalmente ao governo dos Estados Unidos que aplique sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil. O pedido, feito durante audiência com o Secretário de Estado Marco Rubio, baseia-se em alegações de “censura generalizada” e “perseguição política” contra opositores, em especial Jair Bolsonaro, cuja “iminente prisão politicamente motivada” foi evocada como exemplo de repressão estatal.

            Esse movimento integra uma articulação coordenada entre parlamentares da ala mais radical do Partido Republicano, como Maria Elvira Salazar, Rich McCormick e Rick Scott e atores bolsonaristas no Brasil, em especial Eduardo Bolsonaro, que tem atuado como ponte estratégica com o Congresso norte-americano. Trata-se de uma tentativa clara de deslegitimar o STF, enfraquecer os mecanismos que barraram a escalada golpista de 2022 e internacionalizar a retórica da extrema-direita brasileira.

            A ofensiva se ancora na Lei Global Magnitsky, legislação aprovada em 2016 nos EUA, que permite a imposição de sanções unilaterais como congelamento de bens, proibição de vistos e exposição pública a estrangeiros acusados de violações graves de direitos humanos ou corrupção significativa. A lei já foi aplicada contra agentes dos regimes de Vladimir Putin, Xi Jinping, Nicolás Maduro e dos militares birmaneses. Nunca, no entanto, foi utilizada contra um magistrado de um país democrático, em pleno exercício de suas funções constitucionais. Aplicar tal sanção a Moraes seria juridicamente simples, mas politicamente complexo, na medida em que, tanto criaria um precedente diplomático como abriria uma crise institucional grave entre Brasil e Estados Unidos. Mais do que isso, revelaria a instrumentalização explícita da política externa americana como extensão da guerra cultural travada por movimentos extremistas dentro e fora dos EUA.

            O pano de fundo imediato dessa tentativa é o papel do ministro Moraes na condução dos inquéritos sobre desinformação, milícias digitais e os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Essas ações, embora alvos de críticas e polêmicas legítimas, estão ancoradas na Constituição Federal e visam a proteção da ordem democrática brasileira. Moraes tem agido, essencialmente, para conter a corrosão institucional promovida por atores que rejeitam os resultados eleitorais e alimentam campanhas de ódio digitalizadas.

            A acusação de “censura” não resiste a uma análise comparada. A atuação do STF, nesse campo, encontra paralelo direto com a regulação das Big Techs na União Europeia. Desde 2024, o Digital Services Act (DSA) obriga plataformas digitais a removerem conteúdos ilegais em até 24 horas, sob pena de multas que podem chegar a 6% do faturamento global. Só em 2023, a UE aplicou mais de €1,7 bilhão em sanções por violações ligadas à desinformação e à proteção de dados.

            No Brasil, o STF tem ocupado esse vácuo legislativo com base em sua responsabilidade de guardião constitucional. Os inquéritos conduzidos por Moraes, desde 2019, enfrentam as engrenagens de um ecossistema de desinformação que minou a confiança pública e ameaçou a estabilidade democrática. O ministro já declarou, inclusive, que a regulação das redes é “fundamental para o fim da impunidade digital”, um posicionamento em consonância com os princípios da Carta de Direitos Digitais da ONU e com a própria Constituição brasileira.

            A resistência das Big Techs a esse tipo de regulação é compreensível do ponto de vista comercial. O Brasil é um dos maiores mercados do mundo para plataformas como Meta, Google e TikTok. Em 2024:

            •          YouTube contava com 144 milhões de usuários brasileiros;

            •          Instagram, com 134 milhões;

            •          TikTok, com 98 milhões;

            •          X (antigo Twitter), com 22 milhões.

            O país representa, portanto, uma fatia lucrativa da economia digital global, e, regular esse mercado ameaça diretamente os modelos de negócio baseados na coleta irrestrita de dados e no engajamento algorítmico com conteúdo polarizador.

            É nesse contexto que a teoria da “era do capitalismo de vigilância”, proposta por Shoshana Zuboff, torna-se essencial. Segundo a autora, plataformas digitais extraem dados comportamentais para prever e manipular ações humanas: um processo que “desdemocratiza” o espaço público e compromete a autonomia cidadã. Zuboff alerta que, sem regulação estatal forte, essas empresas operam acima das leis e moldam a verdade segundo interesses privados.

            As ações do STF, portanto, não configuram censura, mas sim ALGUMA resposta institucional à lógica extrativa e desinformacional das plataformas. Enquadrar isso como violação de direitos humanos revela uma inversão perversa da lógica democrática.  A proposta de sanção contra Alexandre de Moraes, ainda que com baixa probabilidade de implementação concreta (haja vista que o Brasil não parece ser prioridade no difícil cenário político-econômico estadunidense), já cumpre um papel simbólico significativo no cenário político interno Brasileiro: desgastar a imagem do Judiciário brasileiro, intimidar futuras iniciativas regulatórias e alimentar a base radical da extrema-direita; em ambos os países

            O estopim narrativo usado por parlamentares bolsonaristas e aliados nos EUA para justificar a ofensiva contra Alexandre de Moraes tem sido a suposta violação à liberdade de expressão, princípio fundacional protegido pela Primeira Emenda da Constituição americana. Casos como os dos comentaristas Rodrigo Constantino e Paulo Figueiredo Filho, ambos residentes permanentes nos EUA e com perfis suspensos por ordem judicial brasileira, têm sido utilizados como exemplo de “censura extraterritorial”. A retórica é eficaz: ela mobiliza uma simbologia poderosa na cultura política dos EUA:  o direito de dizer qualquer coisa, contra qualquer autoridade. Mas ela também distorce o debate. O que está em jogo não é o direito de opinião, mas o uso sistemático e coordenado de plataformas digitais para incitar rupturas democráticas, manipular o discurso público e corroer a confiança institucional.

            Mas esse é apenas o topo do iceberg….. O que está abaixo da superfície é um conflito de interesses muito mais estrutural, que envolve a resistência de plataformas digitais americanas — como Meta, Alphabet, X e Rumble — à exportação de modelos regulatórios como o europeu ou o brasileiro, ambos em expansão. A ofensiva contra Moraes, nesse sentido, funciona como um gesto simbólico de dissuasão: ao punir um magistrado que ousou confrontar os monopólios digitais, envia-se um recado aos demais reguladores do Sul Global. Trata-se, em última instância, de um embate entre o enforcement democrático de soberanias nacionais e o poder transnacional das Big Techs, que buscam operar acima de leis locais e longe da responsabilidade pública. No caso brasileiro, isso é ainda mais sensível: o país é não só um mercado crucial para essas empresas, como também um dos primeiros a tentar implementar mecanismos concretos de responsabilização, como o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet e as medidas do STF contra redes de desinformação.

            Neste tabuleiro, os parlamentares bolsonaristas e seus aliados republicanos nos EUA agem como vetores ideológicos de interesses corporativos mais amplos, mesmo que inconscientemente. O uso da Primeira Emenda como escudo é eficaz no debate doméstico americano, mas se revela, na prática, uma estratégia de contenção regulatória global: não é a liberdade de expressão que está em risco, mas sim a liberdade dos algoritmos para explorar, polarizar e lucrar sem limite.

@giseleagnelli

@jusclima

@fatosdeprimentesdasemana

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Last Update: 22/05/2025