Entre votar e democraciar, por Damares Medina

Entre votar e democraciar

por Damares Medina

A narrativa política brasileira tem sido enquadrada como uma permanente disputa entre os Poderes da República: o Legislativo que ensaia anistias e PEC da Blindagem, o Executivo que se protege indicando seus advogados para o Supremo, e o Supremo eleva quóruns e restringe instrumentos de controle externo, modificando a arquitetura de impeachment de seus ministros. A aparência é de interferências sucessivas, como se cada Poder buscasse invadir o outro. Mas essa descrição produz uma falsa clareza. O que se observa não é um conflito estrutural entre funções estatais, e sim um movimento articulado de blindagem recíproca entre elites que dialogam apenas entre si, mantendo a sociedade à margem do processo decisório. Trata-se de uma dinâmica de fechamento institucional que reduz a esfera pública a um cenário periférico, no qual o povo reaparece apenas no momento eleitoral para renovar a legitimidade do próprio arranjo excludente.

Nesse contexto, o voto é tratado como um gesto suficiente para autorizar quatro anos de exercício descompromissado de mandato. Campanhas deixam de ser contratos políticos e transformam-se em rituais simbólicos sem qualquer exigência de coerência posterior. O eleito não presta contas de suas promessas; o eleitor não dispõe de mecanismos permanentes de cobrança; e as instituições atuam como se a democracia estivesse integralmente contida no ato das urnas. Essa intermitência da participação corrói o sentido republicano, porque o republicanismo pressupõe responsabilidade contínua, prestação de contas, comunicação clara entre representantes e representados. Pressupõe, sobretudo, a existência de espaço público e não apenas de poderes estatais.

A ausência desse espaço se agrava diante da ascensão de novos atores políticos impulsionados por redes sociais, capazes de mobilizar milhões de pessoas com velocidade e intensidade desconhecidas pelas instituições tradicionais. Fenômenos como o de Nicolas Ferreira evidenciam que a energia política real se deslocou para ambientes digitais, onde agendas são definidas em tempo real, emoções são amplificadas, identidades são reorganizadas e conflitos ganham forma antes mesmo de chegarem ao debate parlamentar. Não se trata de um problema em si, mas de um sintoma: a sociedade encontrou canais de participação fora do Estado porque o Estado não oferece canais dentro dele.

Em vez de demonizar essa dinâmica, é preciso compreendê-la como evidência de que a democracia demanda novos instrumentos. A tecnologia que sustenta a polarização também poderia sustentar formas permanentes de consulta, deliberação e acompanhamento institucional, desde que inserida em arcabouços responsáveis e transparentes. E é aqui que ganham relevância os mini públicos consultáveis: grupos sorteados, representativos e instruídos, convocados periodicamente para deliberar sobre temas de alto impacto, com acesso equilibrado a informações técnicas, contraditório e mediação qualificada. Eles não substituem o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário, mas introduzem um eixo adicional de legitimidade, capaz de restituir ao povo um papel contínuo no processo decisório.

Ao contrário das consultas digitais fragmentadas, dos plebiscitos emocionais ou da opinião pulverizada das redes, esses mini públicos operam com densidade deliberativa e rigor procedimental. São uma resposta institucional a uma sociedade que já participa intensamente, mas sem estruturas de tradução entre mobilização e decisão. Incorporar essa lógica é reconhecer que a democracia contemporânea não pode depender exclusivamente de eleições periódicas nem de negociações internas entre cúpulas estatais, sobretudo num país em que cada Poder desenvolveu mecanismos próprios de autoproteção, frequentemente em detrimento do interesse público.

O desafio brasileiro não reside em conter interferências entre Poderes, mas em reconstruir a mediação entre instituições e sociedade. A pergunta central permanece sem resposta: onde está o povo nesse arranjo? A sensação de que o debate político se tornou um diálogo privado entre elites — blindadas por prerrogativas, salários elevados e acordos tácitos — demonstra que a crise não está dentro dos Poderes, mas fora deles. Sem mecanismos de participação contínua, sem deliberação pública estruturada, sem estruturas de acompanhamento cidadãs, o Brasil permanecerá preso a um modelo em que a legitimidade democrática se esgota no ato do voto.

Os mini públicos consultáveis, apoiados por tecnologias auditáveis e metodologias de deliberação qualificada, oferecem um caminho possível para reinserir a sociedade no centro do processo político. Não se trata de substituir o que existe, mas de completar o que falta: uma arquitetura institucional que devolva ao povo a posição que a Constituição lhe atribuiu e que a prática política progressivamente esvaziou. Reconstruir essa ponte é condição para que a democracia brasileira recupere tanto vitalidade quanto responsabilidade, e para que possamos superar o vazio republicano em que hoje nos encontramos.

Damares Medina é professora de Direito Constitucional do IDP, doutora em Direito com pós doutorado em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, fundadora do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

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