O Brasil possui, em seus mais de 500 anos de história, processos sociopolíticos marcados por profundas violações de direitos humanos e desigualdades, assim como de descontinuidade democrática, invisibilização e apagamento, que foram formulados e executados com o objetivo de manter uma hegemonia de poder no país: homens brancos, cisheterossexuais e possuidores de riquezas em posse das decisões.
Dessa forma, os interesses defendidos e protegidos não são e nunca foram efetivamente para o bem-viver da população, em sua esmagadora maioria formada por pessoas negras e pobres, por mulheres, trabalhadores e trabalhadoras negras, que sustentam nosso país desde sua fundação e os primeiros regimes de organização política. Neste cenário, aqueles e aquelas que defendem os interesses populares e ousam ocupar a política institucional se encontram entre o desejo de mudança e o medo de perder a vida.
Nesta perspectiva, o protagonismo de mulheres negras, defensoras dos direitos humanos, no nosso sistema político eleitoral, embora histórico e em ascensão tardia, carrega consigo o peso da violência que tem como objetivo excluí-las desses espaços e impedir o avanço de suas agendas para construção de uma democracia plural, verdadeiramente participativa, antirracista, antimachista e LGBTfóbica. Esta realidade, ancorada e sustentada por decisões políticas discriminatórias e por uma desmemorização consciente e objetiva dos processos históricos que construíram e constituíram este país, encontra em fenômenos como da Violência Política de Gênero e Raça (VPGR) terreno fértil para instrumentalizar a exclusão e interromper trajetórias de mulheres negras na política.
Em 14 de março de 2018, testemunhamos um crime que expôs as profundas rachaduras da nossa democracia e a face mais cruel e odiosa da violência política de gênero e raça: o assassinato brutal de Marielle Franco que também vitimou seu motorista, Anderson Gomes. Uma tentativa deliberada de interromper os avanços históricos conquistados por mulheres negras, periféricas e defensoras de direitos humanos em busca de uma realidade mais justa no país.
Até a escrita deste artigo não há responsabilização completa dos mandantes deste crime e não se sabe ainda o porquê encomendaram o assassinato de Marielle.
Desde então, a violência política de gênero e raça tem se mostrado um fenômeno crescente no Brasil, atingindo, de forma particular, mulheres negras, indígenas cis e LBTs. Temos assistido a uma crescente do número alarmante de ataques, ameaças e atentados cotidianamente, e como esse fenômeno vem se sofisticando cada vez mais a fim de impedir que vozes como a de Marielle ocupem os espaços de decisão política no nosso país.
O Instituto Marielle Franco, organização de direitos humanos criada pela família de Marielle, tem desde o primeiro dia da sua criação como um dos principais objetivos o combate à violência política de gênero e raça. E para tal atuamos em diferentes frentes com o mesmo objetivo. Trabalhamos com o acompanhamento de casos de violência política de gênero e raça, na incidência política em instâncias nacionais e internacionais, com produção de conhecimento, e com campanhas a fim de erradicar e combater este problema.
A Organização dos Estados Americanos (OEA), caracterizada a violência política contra mulheres como uma ação, conduta ou omissão, praticada de forma direta ou por meio de terceiros, que “cause dano ou sofrimento a uma ou a várias mulheres e cujo objetivo ou resultado seja prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos políticos” (INSTITUTO MARIELLE FRANCO, 2021).
Essa violência pode se manifestar por meio de agressões físicas, psicológicas, morais, sexuais, virtuais, institucionais, raciais, de gênero, LGBTQIA+fóbicas, entre outras formas, e pode ser cometida contra candidatas, eleitas, nomeadas ou no exercício de funções públicas e que também atinge lideranças coletivas, ativistas, militantes e todas aquelas que atuam politicamente em diferentes espaços e formas de participação social e política.
Não obstante, ao longo dos últimos anos, realizamos três pesquisas sobre VPGR a fim de qualificar a compreensão deste problema, apresentar perspectivas para seu enfrentamento e, consequentemente, fortalecer a democracia brasileira. São elas: a primeira, lançada em 2020, “A Violência Política Contra Mulheres Negras: Eleições 2020”, a segunda, intitulada “Violência Política de Gênero e Raça – 2021: Eleitas ou não, mulheres negras seguem desprotegidas ”, lançada em 2021 e a terceira, “Violência política de gênero e raça no Brasil: dois anos da lei 14.192/2021”, publicada em 2023.
Durante a primeira pesquisa (2020), foi possível identificar que 42% dos casos relatados correspondiam a violências físicas. Nesse contexto, 41,6% das candidatas afirmaram ter temido por sua vida e integridade física durante a campanha eleitoral, e 13,3% relataram ter recebido ameaças de morte. Já entre os 62% dos casos classificados como violência institucional, 32,9% das mulheres receberam menos recursos financeiros de seus partidos, e 50,7% apontaram dirigentes partidários como seus agressores. Esses dados revelam que a Violência Política de Gênero e Raça não é apenas pontual, mas estruturada: operada por agentes e forças políticas que se sentem ameaçadas pela presença e pelo impacto de mulheres negras nos espaços de decisão legislativa e executiva da sociedade.
Além disso, a pesquisa permitiu identificar diversas camadas desse problema. Entre elas, destacam-se as barreiras enfrentadas por mulheres negras dentro e fora dos partidos políticos; a ausência de mecanismos de proteção e segurança — independentemente de estarem ou não inseridas na institucionalidade —; o descaso e a falta de compromisso das estruturas partidárias com o enfrentamento da violência política; e, por fim, os limites da legislação vigente, somados à insuficiência das iniciativas institucionais do Estado para combater e prevenir, de forma efetiva, esse tipo de violência.
Até hoje, partidos políticos brasileiros têm dificuldade para incluir em seu estatuto um protocolo específico de enfrentamento à violência política de gênero e raça, conforme as recomendações da sociedade civil, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Lei 14.192/2021. Apenas um partido votou contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 09/2023, que anistiou legendas que descumpriram as cotas de gênero e raça nas eleições de 2022 e flexibilizou as normas de fiscalização dos partidos.
Paralelamente, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Política de Gênero e Raça, sob responsabilidade do Ministério das Mulheres, ainda não foi publicada. No Congresso Nacional, tramita o projeto do Novo Código Eleitoral, que representa sérios retrocessos para a participação política feminina e negra: além de enfraquecer o debate sobre paridade racial e de gênero na reserva de cadeiras e se acovardar deste compromisso, o Novo Código propõe retirar a obrigatoriedade dos 30% de candidaturas femininas e rejeita todas as emendas voltadas à promoção da equidade racial. Legitimando na prática a manutenção da sub-representação das mulheres, principalmente negras.
Diante disso, embora tenhamos registrado um avanço importante com o maior número de mulheres negras eleitas da história nas eleições de 2022, são evidentes as lacunas para fortalecer e possibilitar mais Marielles vivas na política brasileira, pois lamentavelmente o cálculo e custo desse processo é a própria vida.
Portanto, ainda que seja válido salientar a crença nas instituições democráticas do país e no seu potencial como ferramenta para a transformação social, é urgente que haja segurança e proteção para acesso e permanência das mulheres negras na política institucional para que haja garantia de seus direitos políticos plenos. Não haverá democracia possível enquanto persistir a violência política de gênero e raça. É preciso transformar o “falar” em “fazer” como Marielle Franco, para que mais nenhuma mulher negra seja interrompida!