No Brasil, não é a exceção que mata: é a regra. A execução de Gabriel Ferreira Messias da Silva, jovem negro de 19 anos morto por um policial militar em São Paulo, inscreve-se no que Achille Mbembe definiu como “necropolítica” — a política da morte, ou o poder soberano de decidir quem deve viver e quem deve morrer. À luz das reflexões de Frantz Fanon e das formulações de Thula Pires sobre a “zona do não ser”, o caso escancara como a política de segurança pública segue estruturada na gestão racializada da morte, transformando corpos negros em suspeitos por princípio e em cadáveres por rotina.

Mbembe ensina que o necropoder é o exercício da soberania que, mais do que controlar a vida, regula a possibilidade da morte — e da morte como espetáculo. A cena captada pelas câmeras corporais dos PMs não revela apenas uma fraude processual. Ela encena a coreografia da impunidade: “vira, vira, vira”, ordena o policial. O gesto é menos um comando e mais um rito — sinal de que o corpo de Gabriel já estava sentenciado; faltava apenas ajustar o cenário. A arma que aparece, empurrada com o pé, não é prova: é alegoria. É também metonímia da construção do “perigo negro”, um artifício performático do Estado para justificar o inaceitável.

Gabriel é símbolo da zona do não ser. Segundo Fanon, retomado por Thula Pires, trata-se do lugar onde habitam os corpos não reconhecidos como plenamente humanos. Os direitos humanos, ao se apoiarem na universalidade abstrata, tornam-se cúmplices da desumanização ao ignorar a especificidade racial da morte precoce. O que se chama de “abordagem policial” é, muitas vezes, a materialização da lógica colonial que naturaliza vigilância, coerção e extermínio da população negra sob o pretexto de preservar a ordem.

A frase “vira, vira, vira pra lá”, tão banal quanto aterrorizante, remete à literatura como ferramenta de revelação do real. A realidade exibida nesse episódio é literária no pior sentido: uma ficção construída para manter invisível a verdade brutal. Ao tensionar essas narrativas, a literatura periférica, negra, indígena e dissidente assume o papel de denúncia e reescrita. Não por acaso, Mbembe aponta que o terror nas ex-colônias assume contornos específicos, em que o medo se torna tecnologia de governo e a “imaginação do castigo” é reciclada para conter revoltas e reafirmar hierarquias raciais.

Usar o direito contra o próprio direito, como propõe Thula Pires, é reconhecer que o aparato legal muitas vezes serve à manutenção da violência, não à sua contenção. Ao denunciar a fraude processual, a Defensoria Pública tenta escancarar um dos muitos mecanismos com que o Estado legitima o extermínio negro. Mas a pergunta permanece: quantos Gabriéis são enterrados antes que a câmera funcione? E quantos agentes do Estado ainda se agacham para “plantar” evidências que sustentem suas narrativas?

Gabriel implorou: “Me ajuda, senhor, por favor”. Essa frase, dita entre o susto e o sangue, não é apenas um pedido de socorro — é uma denúncia histórica. Cada palavra ressoa como testamento de uma juventude negra que resiste a ser apagada. É também uma convocação: que não naturalizemos os dispositivos de morte que operam nas margens da legalidade. Que possamos, como propõe Mbembe, reconstruir o imaginário político a partir da reabilitação da vida — uma vida plena, não apenas sobrevivente. E que, diante do horror reiterado, sejamos capazes de virar, sim — mas o mundo.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 27/05/2025