Entre Contingências e Códigos
Da utopia skinneriana ao tecno-behaviorismo algorítmico no capitalismo da fricção zero
por Reynaldo Aragon e Wagner de Lara Machado
Numa época em que algoritmos preveem nossos passos antes que sequer ousamos caminhar, este ensaio percorre a distância entre a utopia de uma engenharia comportamental democrática e a captura silenciosa de nossas vontades pelo tecno-behaviorismo global. Entre contingências vivas e códigos preditivos, ergue-se o maior desafio de nosso tempo: resgatar a práxis, a hesitação e o conflito como trincheiras da liberdade, antes que nos tornemos apenas dados obedientes de uma máquina sem rosto.
Introdução.
A ideia corrente de um controle comportamental ao nível macrossocial não é algo novo, que surge com a popularização da internet e, principalmente, das redes e mídias sociais. Em 1948, pouco após o fim da II Guerra Mundial, Skinner publica seu romance utópico Walden Two, no qual descreve uma sociedade baseada na engenharia comportamental. Para entendermos o contexto e a relevância desta obra, alguma introdução se faz necessária.
Skinner foi professor de Harvard e um dos mais brilhantes nomes da Psicologia e das ciências comportamentais. Seus postulados sobre a análise do comportamento estão presentes em diversas áreas, desde a psicologia clínica até as neurociências comportamentais. De forma muito abreviada, sua teoria propunha que os comportamentos são definidos (condicionados) por suas consequências. Comportamentos que resultam em consequências negativas (punições diretas ou remoção de estímulos prazerosos/agradáveis) tendiam a extinção, ao passo que comportamentos com consequências positivas (reforço direto ou remoção de estímulo aversivo/negativo) teriam maior probabilidade de ocorrência. Do ponto de vista neuropsicológico, a via mesolímbica (que integra a área tegmental ventral e o sistema límbico) é responsável por essa aprendizagem associativa, isto é, a relação entre prazer, reforço e motivação (para repetir o comportamento). Quando algo prazeroso ocorre (consequência positiva do comportamento) a dopamina (neurotransmissor) é liberada pela área tegmental ventral, chegando aos receptores no sistema límbico (especialmente o núcleo accumbens), essas duas estruturas interagem com o córtex pré-frontal (este, responsável pela tomada de decisão, engajamento, regulação emocional e motivação). Todo esse circuito cerebral também é chamado de “sistema de recompensa”. Cabe aqui uma pequena digressão: é justamente este circuito que têm sido bastante estudado na relação de como o conteúdo e o desenho (interface do usuário) de redes e mídias sociais condicionam nosso comportamento.
Skinner sempre alertou que o controle aversivo do comportamento (baseado em punições ou coerções) deveria ser evitado, pois gerava efeitos contraproducentes como o alto nível de estresse e emoções negativas, o uso da mentira para evitar consequências negativas e a supressão temporária do comportamento. Em seu romance (Walden Two) Skinner idealizou uma sociedade regida pelo reforço positivo aos comportamentos socialmente desejáveis, pró-sociais e alinhados aos valores comunitários. Sua proposta era que a tecnologia comportamental assumiria o papel hoje delegado à ação política e regulação do Estado. Sua idéia era que este modelo levaria a sociedade a maximizar o bem-estar, manter a harmonia social e a distribuir o trabalho e ganhos de forma equitativa. Skinner propôs um modelo no qual as práticas sociais seriam testadas, avaliadas e corrigidas à luz de objetivos compartilhados, submetidas a processos éticos e continuamente reavaliadas. Como se pode imaginar, a obra (e modelo) de Skinner foi alvo de críticas na academia e no público em geral. Questionamentos sobre a falta de liberdade, escolhas individuais e sobre a legitimidade de quem faria o “planejamento social” logo foram estabelecidos. A utopia (muito bem intencionada – opinião do autor) de Skinner logo foi rotulada de distopia. É compreensível, já que naquela época eram rádios, jornais e revistas os principais “meios de comunicação de massa”. A internet seria criada dez anos mais tarde para fins militares. Hoje, sabe-se que o conteúdo e o desenho de interface do usuário de redes e mídias sociais está intrinsecamente alinhado aos conhecimentos do condicionamento comportamental, desde os princípios da análise comportamental de Skinner até os recentes avanços nas neurociências comportamentais.
Em Walden II, B. F. Skinner ousou vislumbrar uma sociedade capaz de transformar a engenharia comportamental em projeto emancipador. Sua utopia experimental apostava na possibilidade de que a ação humana, deliberada e supervisionada, pudesse reconstruir a vida coletiva por meio de contingências culturais projetadas conscientemente. Em vez de confiar ao acaso, à tradição ou ao mercado a regulação da conduta, Skinner concebeu um modelo em que as práticas sociais passariam por experimentação, análise e ajustes orientados por metas coletivas, sendo submetidas a formas moderadas de escrutínio ético e revisadas de modo contínuo. Dentro dessa perspectiva, a liberdade não significaria a eliminação de todos os condicionamentos, mas sim a elaboração de contingências sociais capazes de ampliar a autonomia funcional. Assim, os indivíduos poderiam agir alinhados aos propósitos comuns, livres de imposições arbitrárias.
Setenta anos depois da publicação de Walden II, a promessa de uma engenharia comportamental deliberada se converteu em seu avesso. A revolução algorítmica, sustentada pela ideologia da fricção zero, reconfigurou a gestão da ação e da experiência em direção a um automatismo tecnicamente gerido, intransparente e não deliberativo. Os chamados metaintermediários algorítmicos (inteligências preditivas capazes de antecipar, modular e automatizar comportamentos) se tornaram os novos engenheiros de nossa subjetividade, erguendo uma forma superior de controle comportamental, muito mais difusa e silenciosa que qualquer panóptico tradicional. Não se trata mais de supervisionar práticas por meio de um coletivo crítico, mas de dissolver o espaço da deliberação, substituindo a práxis pela fluidez operacional, esvaziando o erro, o conflito e a mediação, que são, paradoxalmente, as condições para a autonomia.
Este ensaio se propõe a investigar, com rigor e sem concessões retóricas, a passagem histórica e técnica que nos trouxe de Walden II ao capitalismo informacional da fricção zero. Nosso argumento parte de uma hipótese central: a proposta de Skinner consistia em uma engenharia comportamental democrática, baseada em metacontingências deliberadas e supervisionadas, enquanto a ideologia da fricção zero converte essa engenharia num modelo automatizado de controle, alienando a própria experiência humana por meio de ciclos de reforçamento tecnicamente geridos, e amputando a possibilidade de ação consciente. Em outras palavras, se Walden II representou uma aposta na experimentação coletiva, os metaintermediários algorítmicos representam a captura dessa mesma experimentação pela lógica de mercado, transformando a liberdade funcional em aderência passiva, a supervisão comunitária em vigilância algorítmica, e a deliberação política em um fluxo de comandos preditivos.
A escolha de examinar este contraste a partir do materialismo histórico-dialético não é casual. Só esta abordagem permite desnudar a relação entre técnica e poder como síntese contraditória de forças históricas, situando o controle algorítmico dentro da totalidade social dominada pela racionalidade do valor. A ideologia da fricção zero não nasce de uma fatalidade técnica, mas de um projeto político-tecnológico que reorganiza a mediação entre sujeito e mundo, dissolvendo toda hesitação, todo espaço de crítica, toda possibilidade de práxis, para melhor moldar a experiência humana ao imperativo da eficiência e da previsibilidade. Nesse sentido, a crítica aqui desenvolvida recusa a visão ingênua de que a inteligência artificial e seus metaintermediários seriam meros instrumentos neutros, pois opera a partir do princípio de que a técnica é sempre, ao mesmo tempo, mediação e dominação, campo de disputa e de captura.
Nosso itinerário percorrerá, portanto, quatro movimentos principais: primeiro, reconstruir a utopia de Skinner e suas bases conceituais; segundo, analisar os fundamentos técnicos e ideológicos da fricção zero; terceiro, comparar criticamente esses dois paradigmas de engenharia comportamental; e, por fim, propor uma reconstrução dialética da mediação, capaz de restituir a agência e a deliberação enquanto horizontes políticos irredutíveis à automação. Em cada etapa, buscaremos revelar não apenas as continuidades históricas entre o behaviorismo e o tecno-behaviorismo algorítmico, mas também as rupturas radicais que inauguram, na sociedade da informação, uma forma inédita de alienação de segunda ordem, aquela que não apenas modela a ação, mas redefine a própria ontologia do agir.
Entre Walden II e o capitalismo da fricção zero ergue-se, enfim, um campo de batalha conceitual, no qual a luta pela soberania cognitiva se tornou uma exigência civilizatória. É nesse terreno que o presente ensaio se inscreve, não para oferecer respostas fáceis, mas para iluminar as contradições e interrogações que precisam ser trazidas à tona, se ainda quisermos recuperar o sentido crítico de nossa humanidade.
Walden II: a utopia da engenharia comportamental deliberada
Walden II emerge como uma das mais radicais experiências literárias de imaginar a engenharia comportamental não como aparato de dominação, mas como possibilidade de emancipação social. Publicado em 1948, o romance de B. F. Skinner inscreve-se na tradição das utopias modernas, mas desloca seu eixo normativo da política para a técnica, propondo uma comunidade regida por contingências cuidadosamente planejadas, testadas e reajustadas em função do bem-estar coletivo. Ali, a liberdade deixa de ser entendida como livre-arbítrio incondicional e passa a ser concebida como liberdade funcional: a capacidade de agir sem coerções arbitrárias, dentro de arranjos culturais projetados para promover comportamentos socialmente desejáveis.
o cerne de Walden II está a noção de metacontingências, ainda não formalizada à época, mas presente em estado germinal na visão skinneriana de cultura como rede de contingências que molda padrões de interação. Diferentemente das contingências individuais, que mantêm o comportamento pela relação entre estímulos antecedentes, respostas e consequências, as metacontingências operam no plano supra-individual, preservando ou transformando práticas culturais pela retroalimentação de consequências agregadas. Em Walden II, esse princípio se manifesta na forma de normas comunitárias ajustadas de modo contínuo, evitando a cristalização de tradições autoritárias. Skinner propõe, assim, uma espécie de democracia experimental, onde os arranjos institucionais não são imunes à crítica, mas ao contrário, vivem sob constante escrutínio dos próprios participantes, uma arquitetura de deliberação permanente.
Ainda que Skinner tenha sonhado com uma engenharia comportamental ética, sustentada por sanções brandas e pelo consentimento dos membros da comunidade, seu projeto revela tensões não resolvidas. A primeira diz respeito ao risco de transformar a liberdade funcional em mera adaptação: ao condicionar os indivíduos para agir “livremente” dentro de contingências pré-configuradas, a comunidade corre o risco de substituir a liberdade política substantiva por um simulacro de autonomia, ainda que sob vigilância benevolente. Essa contradição reflete um ponto sensível do behaviorismo radical: a dificuldade de lidar com a historicidade do conflito, do dissenso e do antagonismo social. Ao reduzir o erro e a contradição a falhas do arranjo contingencial, Walden II se aproxima perigosamente de uma utopia sem negatividade, onde a mudança se dá apenas pelo reajuste técnico de práticas, e não pelo embate político entre projetos de mundo inconciliáveis.
Apesar dessas ambiguidades, a proposta skinneriana oferece uma provocação ainda atual. Ao apostar na possibilidade de que o comportamento coletivo pode ser transformado racionalmente, sem apelos místicos ou fatalismos de mercado, Skinner resgata a noção de que a cultura é obra humana, passível de crítica, experimentação e reconstrução. Ele antecipa, de certo modo, a luta contemporânea contra as formas opacas e automáticas de modulação social que se instalam no capitalismo digital. Ao recusar o espontaneísmo e defender uma supervisão coletiva deliberada das contingências culturais, Skinner pavimenta um caminho que, mesmo marcado por limites, aponta para a importância de restituir a práxis como dimensão inegociável da organização social.
Em síntese, Walden II encarna uma utopia tecnológica orientada pela supervisão humana, na qual o controle do comportamento não exclui o debate, mas o incorpora como eixo da governança cultural. Sua promessa radical, no entanto, reside justamente naquilo que a atual racionalidade algorítmica obliterou: a crença de que as contingências podem ser continuamente redesenhadas pelos próprios agentes, e não automatizadas por sistemas externos e opacos. Se Skinner pode ser criticado por seu tecnicismo, não se pode ignorar sua lição: a transformação cultural é, antes de tudo, uma questão política, e não uma fatalidade imposta pelo progresso técnico.
Metaintermediários algorítmicos e a ideologia da fricção zero
Se Walden II imaginava uma engenharia comportamental deliberada, ancorada em supervisão ética e no reajuste coletivo de normas, a contemporaneidade nos entrega uma versão automatizada e maquinal desse sonho: a ideologia da fricção zero. Essa racionalidade técnico-política, consolidada no interior do capitalismo informacional, opera a partir de uma promessa de eficiência total, suprimindo hesitações, conflitos e mediações em nome de uma experiência contínua, previsível e otimizada. Seu horizonte não é a emancipação consciente, mas a adesão passiva, um tipo de obediência tornada invisível, porque programada no nível pré-reflexivo do agir.
No coração dessa ideologia se erguem os metaintermediários algorítmicos, arquiteturas digitais que transcendem a velha mediação técnica baseada na interação explícita. Diferentemente das interfaces gráficas ou dos motores de busca de primeira geração, os metaintermediários assumem funções proativas, interpretando sinais, antecipando demandas e tomando decisões antes que o sujeito sequer formule uma intenção consciente. É uma mediação que não media, mas antecipa; que não negocia, mas prediz. O resultado é a dissolução da práxis: o espaço de ação, de escolha, de conflito e de reinvenção passa a ser recodificado como ruído, falha ou desperdício de tempo. O algoritmo, ao capturar padrões comportamentais e projetar reforçamentos em tempo real, transforma a experiência vivida em um fluxo de respostas automáticas, esvaziando a deliberação e colonizando a subjetividade pela lógica da fluidez.
Essa operação não é neutra, nem apenas técnica. Ela expressa a consolidação de uma forma superior de alienação, alienação de segunda ordem, em que não apenas a atividade produtiva ou comunicacional do sujeito é subsumida ao capital, mas a própria ontologia do desejo, da percepção e da linguagem se torna terreno de gestão preditiva. Ao antecipar e modular emoções, preferências e expectativas, os metaintermediários convertem o campo da experiência humana em matéria-prima de um projeto de dominação algorítmica, onde a liberdade funcional dá lugar à adaptação automatizada, e a autonomia cede espaço à adesão maquinal.
O capitalismo da fricção zero, assim, leva às últimas consequências a noção behaviorista de reforçamento: não se contenta em condicionar comportamentos pontuais, mas reprograma a própria infraestrutura da cognição, transformando a hesitação, essência da liberdade, em falha sistêmica. Se Skinner acreditava que as contingências deviam ser continuamente ajustadas pela coletividade, aqui elas são definidas a priori, inscritas no código, imunes ao escrutínio democrático. É a vitória da engenharia comportamental sem sujeitos, onde a deliberação desaparece porque se torna supérflua.
Sob o prisma do materialismo histórico-dialético, a ideologia da fricção zero revela-se como uma racionalidade de captura total: ela naturaliza a tecnologia enquanto destino, oculta as relações de poder embutidas no código e transforma a mediação técnica em campo de normalização, esvaziando a negatividade crítica. Trata-se de um projeto político-tecnológico sofisticado, que desloca o conflito para a infraestrutura e pacifica a rebeldia pela eficiência. Ao tornar a práxis redundante, instaura-se uma nova forma de hegemonia, em que a espontaneidade se confunde com a servidão e a fluidez com a liberdade.
Por isso, entender a ascensão dos metaintermediários algorítmicos não é apenas descrever sua arquitetura técnica, mas historicizá-los enquanto parte de uma estratégia global de governamentalidade automatizada, na qual a gestão do comportamento humano se articula à extração de valor, ao colonialismo cognitivo e ao esvaziamento do dissenso. É nesse ponto que se torna imprescindível retomar a lição de Skinner: nenhuma engenharia comportamental pode prescindir da crítica, da supervisão coletiva e da abertura ao conflito. O tecno-behaviorismo da fricção zero, ao contrário, se constrói justamente negando essas dimensões, instaurando uma forma de controle que não apenas organiza as ações, mas captura a própria potência de agir.
Conexões, analogias e rupturas: Skinner e o tecno-behaviorismo
O encontro conceitual entre Walden II e o capitalismo da fricção zero não se esgota na analogia superficial de ambos mobilizarem técnicas de engenharia comportamental. Ao contrário, revela um campo de tensões e contradições que ilumina o percurso histórico do controle social: do condicionamento supervisionado ao condicionamento automatizado; da metacontingência coletiva ao metaintermediário algorítmico. A hipótese que atravessa este ensaio é que, embora compartilhem a ambição de modelar comportamentos, Skinner e o tecno-behaviorismo contemporâneo partem de premissas políticas e epistemológicas radicalmente distintas e, por isso, produzem efeitos antagônicos na constituição da subjetividade.
Em Walden II, a experimentação comportamental surge como projeto democrático, orientado pela deliberação comunitária, no qual a supervisão ética e a crítica coletiva preservam a plasticidade das contingências. É a comunidade, enquanto sujeito histórico, que decide como regular seus padrões de interação, sempre aberta à revisão e ao erro. A práxis, nesse contexto, é inseparável da engenharia comportamental: agir é testar, corrigir, remodelar, num movimento dialético de retroalimentação entre cultura e comportamento. O erro não é falha a ser extirpada, mas elemento essencial da aprendizagem coletiva.
O tecno-behaviorismo da fricção zero, por sua vez, sequestra essa racionalidade experimental e a converte num sistema automatizado de captura. Aqui, a mediação desaparece enquanto campo de negociação simbólica e se transmuta em processo de predição algorítmica, onde o conflito, a dúvida e a hesitação passam a ser interpretados como ruídos. Os metaintermediários não toleram a negatividade; dissolvem-na em fluxos de reforçamento automático, pré-programados, otimizados para a adesão instantânea. O sujeito já não experimenta, mas é continuamente interpretado e conduzido, sem margem real de deliberação. O espaço político se transforma, assim, em um circuito fechado de modulação comportamental, no qual a agência é substituída por microajustes invisíveis.
Essa ruptura tem implicações profundas. Skinner, ainda que criticável por seu tecnicismo, preservava a dimensão comunitária e política da regulação comportamental. Sua utopia admitia a mudança, a crítica e a pluralidade, ainda que subordinadas a um horizonte de eficiência cultural. O tecno-behaviorismo algorítmico, ao contrário, anula a política pela técnica, suprimindo a contingência viva em favor de um determinismo cibernético, programado para manter a previsibilidade a qualquer custo. O que Skinner concebia como processo coletivo e ético se converte, na racionalidade dos metaintermediários, numa dominação silenciosa, que não demanda consentimento explícito porque opera abaixo da consciência, no nível da pré-ação.
Nessa passagem, vemos delinear-se uma mudança de paradigma na história do controle social. Se o behaviorismo clássico ainda requeria sujeitos participantes, capazes de refletir, mesmo que sob contingências planejadas, o tecno-behaviorismo contemporâneo transforma o sujeito em variável de ajuste, apagando a dialética entre indivíduo e coletivo. Não se trata mais de educar para a autonomia funcional, mas de produzir aderência maquinal, administrada como fluxo de dados. O resultado é a consolidação de uma alienação ontotecnológica, na qual o campo da experiência se torna terreno de gestão preditiva, e a linguagem, antes espaço de mediação e crítica, converte-se em interface funcional para comandos.
Por isso, mais do que comparar Walden II e a ideologia da fricção zero, é preciso explicitar sua clivagem estrutural. A proposta de Skinner, embora limitada e por vezes autoritária, ainda reconhecia a potência transformadora do conflito, do erro e da revisão cultural. Já os metaintermediários algorítmicos instauram uma nova forma de governamentalidade, na qual a gestão técnica suprime qualquer abertura para o dissenso, naturalizando a servidão como se fosse liberdade. Essa clivagem marca a passagem de um projeto ético de engenharia comportamental para um projeto de alienação integral, que captura não apenas o que fazemos, mas o que somos, antes mesmo que possamos querer sê-lo.
Guerra informacional, colonialismo cognitivo e tecno-behaviorismo global
A radicalização do tecno-behaviorismo, expressa nos metaintermediários algorítmicos, não pode ser dissociada de um contexto geopolítico mais amplo. O capitalismo da fricção zero não apenas reorganiza subjetividades em escala individual, mas integra uma arquitetura global de poder, na qual a informação se tornou arma estratégica de captura. Vivemos sob o signo de uma guerra informacional permanente, em que a disputa pelo controle da atenção, do desejo e da linguagem se articula a projetos de dominação transnacional, capazes de operar sem tanques nem exércitos, mas com a mesma capacidade de devastação social e política.
Nessa guerra, o metaintermediário algorítmico emerge como soldado silencioso: ele recolhe dados, antecipa padrões, modula afetos e filtra percepções, intervindo diretamente na formação de valores, atitudes e crenças. Seu poder não se limita a otimizar escolhas de consumo; estende-se à moldagem de narrativas, à normalização de comportamentos e à legitimação de estruturas de poder. É a própria formação do sentido, tradicionalmente alicerçada em processos coletivos, que passa a ser gerida como serviço técnico, terceirizado a plataformas de alcance planetário. O resultado é uma mutação civilizatória que desloca a mediação política para a infraestrutura tecnológica, instaurando um colonialismo cognitivo: as linguagens, os afetos, os saberes e as memórias de populações inteiras passam a ser extraídos, monetizados e reprogramados segundo a lógica de acumulação do capital informacional.
No Sul Global, essa dinâmica assume contornos ainda mais perversos. Sociedades marcadas por desigualdades históricas, dependência tecnológica e frágil soberania informacional tornam-se laboratórios privilegiados para a experimentação de modelos de modulação comportamental. O tecno-behaviorismo algorítmico, nessa chave, funciona como prolongamento de antigas formas de colonialismo, atualizando-as para a era da automação preditiva. A dependência de plataformas estrangeiras, a captura de dados sensíveis e a internalização de racionalidades técnicas alienígenas conformam um novo imperialismo, mais difícil de perceber porque se infiltra no cotidiano, na linguagem, nos hábitos e até nos sonhos.
Do ponto de vista materialista histórico-dialético, este processo revela sua natureza de classe: a automação da mediação não é um simples avanço técnico, mas um projeto político de reconfiguração do trabalho, do consumo e da própria subjetividade. Ao transformar a ação humana em fluxo de dados, os metaintermediários despolitizam a experiência, deslocando o conflito social para algoritmos imunes à crítica. Essa alienação de segunda ordem não apenas administra comportamentos, mas bloqueia a própria capacidade de questionar, transformando a práxis em performance, a deliberação em adesão e a linguagem em interface.
Frente a esse cenário, a guerra informacional não pode ser compreendida apenas como disputa de narrativas, mas como um embate pela ontologia do agir. O colonialismo cognitivo contemporâneo avança justamente porque substitui a construção coletiva do sentido por sistemas opacos, programados para moldar desejos sem mediação. É nesse ponto que a comparação com Walden II se torna ainda mais reveladora: Skinner sonhava com uma engenharia cultural que ampliasse a autonomia funcional de sujeitos conscientes, enquanto o tecno-behaviorismo global suprime essa autonomia pela captura integral da cognição. O que poderia ser experimentação deliberativa converte-se em submissão automatizada, esterilizando a imaginação e neutralizando toda potência de resistência.
Portanto, a luta contra o tecno-behaviorismo algorítmico não é apenas técnica ou regulatória. É uma luta civilizatória, que demanda recolocar a mediação no centro da experiência social, resgatando a política, a linguagem e o dissenso como trincheiras indispensáveis diante do avanço do colonialismo informacional. Só assim será possível reabrir o espaço do erro, da hesitação e do conflito, sem os quais não existe verdadeira liberdade.
Perspectivas críticas e reconstrução dialética da mediação
Diante da captura tecnocêntrica promovida pelos metaintermediários algorítmicos, pensar alternativas implica retomar radicalmente a noção de mediação como campo político, ético e cultural. O desaparecimento da práxis, substituída por processos automatizados de antecipação e reforçamento, não é um detalhe técnico: representa uma regressão civilizatória, na qual a condição humana se rebaixa ao estatuto de variável operacional, domesticada para aderir, consumir e repetir. Se Walden II nos ensinou que a cultura pode ser conscientemente projetada e supervisionada, a crítica contemporânea deve avançar ainda mais, situando essa supervisão no terreno da deliberação democrática e da tecnodiversidade.
Reconstituir a mediação significa resgatar a linguagem como espaço de conflito e invenção, rompendo a lógica do fluxo contínuo que naturaliza a adesão e dissolve a hesitação. Significa defender o erro, o tempo lento, a negatividade, como dimensões constitutivas de toda experiência autêntica. Nenhum algoritmo, por mais sofisticado que seja, pode substituir o ato humano de interpretar, hesitar, deliberar. Ao contrário: a reconstrução de um horizonte emancipatório depende de devolver à linguagem seu poder de recusa, à política seu poder de invenção, e à coletividade seu poder de negociação, que são, em última instância, as garantias mínimas de liberdade.
Essa reconstrução crítica demanda, por consequência, a formulação de diretrizes normativas claras. Uma delas é a ética da fricção: reconhecer que a fricção, longe de ser um defeito, é condição de autonomia, pois nela habita o espaço de discordância, de crítica e de reinvenção. Outra é a tecnodiversidade: romper com a uniformização das plataformas e estimular ecossistemas tecnológicos pluralistas, abertos ao controle social e à experimentação democrática. E, finalmente, a soberania cognitiva: reivindicar que dados, linguagens e afetos não sejam transformados em matéria-prima de algoritmos alienígenas, mas permaneçam sob governança coletiva e transparente.
materialismo histórico-dialético nos ajuda a enxergar que a técnica, por si só, jamais será neutra. Enquanto expressão histórica de relações sociais, ela carrega as marcas do capital e das disputas de poder. Por isso, não basta sonhar com regulações protocolares ou códigos de ética de gabinete: a transformação efetiva supõe reconstruir as condições políticas de apropriação da técnica, reposicionando a mediação no centro da luta social. É nessa arena que a crítica de Skinner, ainda que ingênua em certos aspectos, dialoga com as urgências do presente. Ao insistir na possibilidade de controlar as contingências culturais de forma coletiva e consciente, Skinner abriu uma fresta para pensar a técnica como espaço de experimentação democrática. Essa fresta não deve ser fechada, mas radicalizada, para impedir que a história da engenharia comportamental seja sequestrada em favor de um automatismo predador e anti-humano.
Reconstruir a mediação, portanto, não é nostalgia de uma era perdida: é projeto de futuro. Um futuro onde a linguagem não seja apenas interface, mas território de disputa; onde a deliberação não seja simulada, mas vivida; onde a subjetividade não seja programada, mas construída, negada, refeita, num movimento dialético constante. Recuperar a potência política da mediação é, em última instância, resgatar a dignidade da experiência humana contra a redução comportamentalista extrema, seja ela administrada por psicólogos iluminados ou por algoritmos que pretendem ser deuses silenciosos.
Conclusão
Entre Walden II e a ideologia da fricção zero, ergue-se um abismo histórico que revela mais do que uma diferença de técnicas: denuncia uma mudança profunda na ontologia do agir. Skinner, com todas as ambiguidades de seu behaviorismo radical, ainda acreditava na plasticidade da cultura, na potência transformadora da crítica coletiva, na possibilidade de redesenhar contingências sob supervisão ética e democrática. Sua utopia comportamental podia ser tecnicista, mas não era cega ao valor da deliberação e da experimentação humana. Via no erro, na revisão e na negociação a base para reinventar a liberdade, mesmo que esta fosse funcional, mesmo que fosse limitada.
O tecno-behaviorismo contemporâneo, sob o signo da fricção zero, perverte essa ambição. Ao deslocar a engenharia do comportamento para plataformas algorítmicas opacas, elimina o espaço do dissenso, esteriliza a dúvida, neutraliza o erro. Converte a práxis em fluxo programado, subtraindo do sujeito até a chance de desejar livremente. É a culminação de uma alienação de segunda ordem: não apenas nos condiciona, mas nos reprograma, reorganizando nossos afetos, nossa linguagem, nossos próprios modos de existir. Sob a aparência de liberdade total, constrói-se uma servidão maquinal, polida e silenciosa, a antítese perfeita do projeto skinneriano, que ao menos exigia que a comunidade participasse de sua própria modelagem.
A hipótese que sustenta este ensaio, portanto, se confirma: vivemos a passagem de uma engenharia comportamental democrática, fundada em metacontingências deliberadas, para um modelo de controle automatizado, administrado pelos algoritmos de um capitalismo que transforma a experiência em dado e a autonomia em obediência previsível. A fricção, que outrora representava hesitação, reflexão e reinvenção, foi recodificada como falha a ser eliminada, e com ela se extingue também a dimensão trágica, imprevisível e potente da ação humana.
O que está em jogo não é apenas uma tecnologia. É a própria possibilidade de nos constituirmos enquanto sujeitos históricos. Por isso, retomar a crítica dialética da mediação, defender a ética da fricção, apostar na tecnodiversidade e resgatar a soberania cognitiva não são tarefas acessórias, mas atos fundamentais de resistência civilizatória. Não se trata de rejeitar a técnica, mas de politizá-la radicalmente, impedindo que ela se converta em forma suprema de colonização do espírito.
Walden II nos lembra que toda engenharia social deve permanecer aberta ao conflito, ao erro, à reinvenção, pois é no inacabamento que se preserva a dignidade do humano. A ideologia da fricção zero, ao negar essa abertura, ergue uma nova prisão, mais perigosa que qualquer disciplina autoritária do passado, porque dissolve as grades na suavidade de suas interfaces e nos faz esquecer que ainda podemos escolher.
Se há uma lição final a extrair deste contraste, é que a luta pelo direito de hesitar, de pensar, de agir contra a corrente, por mínima que seja, tornou-se hoje o ato mais revolucionário que podemos sonhar. Pois nesse direito habita a possibilidade de reconstruir a liberdade, não como fluidez automática, mas como conquista sempre inacabada, sempre crítica, sempre humana.
Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.
Wagner de Lara Machado. Psicólogo, Doutor em Psicologia. Pesquisador Bolsista Produtividade do CNPq. Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Disputas e Soberania Informacional (INCT – DSI). Coordenador do grupo de pesquisa Avaliação em Bem-estar e Saúde Mental (ABES) e professor nos níveis de graduação e pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Tem atuado nas áreas de estatística e machine learning, desenvolvimento de intervenções e medidas em contextos clínicos, educacionais, laborais e da saúde.
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