Quem acompanha o noticiário e a atual crise política pode ter a impressão de que o governo Lula luta para taxar os ricos, enquanto o Congresso Nacional sabota essas medidas supostamente progressivas, e finca o pé para manter seus privilégios.
Pelo menos é essa a impressão que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quer passar quando afirma que quer atingir só os “moradores da cobertura“. Ou quando o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) declara que “pela primeira vez, o governo apresenta um ajuste fiscal que protege o trabalhador e bota a conta no colo de quem pode pagar: os ricaços“.
Nada poderia ser mais falso que isso. O ajuste fiscal do governo Lula, apoiado pelo Congresso Nacional de Alcolumbre e Hugo Motta, tem um único e certeiro alvo: os trabalhadores e os mais pobres. Como foram todos os “ajustes fiscais” da história. Todos estão unidos para cortar gastos sociais, acelerar uma nova reforma da Previdência e medidas como a desvinculação dos pisos constitucionais da Saúde e da Educação, para manter o arcabouço fiscal. Em outras palavras, mais dinheiro para banqueiro através da dívida pública.
O problema é que o governo Lula tem um pepino na mão: para cumprir as regras do arcabouço que ele mesmo criou, precisa cortar ainda mais gastos e aumentar a arrecadação. O Congresso Nacional, por sua vez, incluindo aí a base do governo que abarca o centrão e a direita como o PP e o União Brasil, vê nisso uma possibilidade maior de barganha, vendendo mais caro por votos que ele mesmo é a favor, e abocanhando parte cada vez maior do orçamento. E de quebra acenando para um setor da burguesia ultraliberal que defende um governo à lá Milei no Brasil.

Ministro da Fazenda, Fernando Haddad Foto Lula Marques/Agência Brasil
Juntos
Entre tapas e beijos
No final de maio, Haddad junto com a ministra do Planejamento, Simone Tebet, anunciaram um bloqueio no Orçamento de R$ 31,3 bilhões, o maior já realizado durante o mandato de Lula III. Lembrando que no ano passado o governo já havia aprovado um pacote de maldades que incluía a redução das regras de recomposição do salário mínimo a fim de enquadrá-lo no arcabouço fiscal, além de regras mais rígidas ao BPC (Benefício de Prestação Continuada), o benefício destinado a idosos carentes que não puderam contribuir e eleito pelo governo como o grande vilão da crise fiscal.
Pois bem, se um corte bilionário que vai afetar áreas essenciais do serviço público como a Educação ganhou aplausos do próprio mercado, que nem esperava tanto, o mesmo não pode ser dito por outra medida anunciada por Haddad, o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Apesar de mínimo, com a expectativa de arrecadar R$ 18 bilhões em 2025 (praticamente a metade do corte de gastos públicos e sociais), a Faria Lima olhou torto para uma medida que poderia fisgar um naco quase imperceptível de seus fundos de investimentos e operações de crédito e, no mesmo dia, Haddad recuou.
A partir daí o governo correu para elaborar alternativas para compensar a redução do IOF. Haddad se trancou com o presidente da Câmara, Hugo Motta, durante um final de semana e acertou um conjunto de medidas, entre as principais delas a taxação do LCI (Letras de Crédito Imobiliário) e do LCA (Letras de Crédito do Agronegócio). Motta apertou a mão de Haddad, mas poucos dias depois, com a pressão do mercado e do parlamento, voltou atrás.
Qual o enrosco agora? Esses tipos de investimentos vão para financiar o agronegócio e o setor imobiliário, e são hoje isentos, uma espécie de subsídio a esses setores. Haddad quer taxá-los em módicos 5%. A questão é que, com a popularização desse tipo de investimento, a grande maioria dos “investidores” nestas modalidades não é composta pelos “ricaços”. Das 6,48 milhões de contas que existem hoje, 4,12 milhões não entram na classificação de “alta renda”, em geral utilizada para quem bota mais de R$ 5 milhões nisso.
Isso significa que a medida de Haddad não vai pegar os que moram nas “coberturas”, mas, sobretudo, o trabalhador remediado e a classe média. E os realmente “ricaços”, os bilionários de verdade, evidentemente também não querem colocar a mão no bolso, ainda que eles saibam que, ao fim e ao cabo, são eles próprios que vão se beneficiar com a manutenção do arcabouço fiscal. Ou seja, o pouco que pagariam agora voltaria, multiplicado, com os juros da dívida turbinados por uma das maiores taxas do mundo, de 14,75% (lembrando que o Banco Central, quem define essa taxa, está nas mãos de Gabriel Galípolo, indicado por Lula).
Nem a promessa do governo em atacar o programa Pé de Meia (voltado a alunos do Ensino Médio), o Atestmed (antigo auxílio-saúde) ou a restrição do Seguro Defeso, com a “economia” de R$ 4,3 bilhões em 2025, satisfaz essa gente. O mercado não quer saber. Cobra o que chama de “medidas estruturantes”, a saber, reforma da Previdência, a destruição do BPC, a desvinculação dos pisos da Saúde e da Educação e a redução dos gastos com o Bolsa Família. Haddad, por sua vez, promete apresentar esse pacote “estrutural” enquanto tenta convencer Motta e o centrão a aceitarem pagar essa mixaria para manter o arcabouço e conquistar o tão sonhado déficit zero.
Enquanto isso, o projeto de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil continua parado, a inflação dos alimentos não arrefece e a classe trabalhadora, além de não ter picanha, mal consegue comprar café ou até mesmo ovo (produtos nas mãos de grandes empresas e monopólios que estão rindo à toa enquanto a mesa do povo está cada vez mais vazia).
Saiba mais
Proposta de taxação do governo se concentra na classe média
Tradicional | Alta renda | Private (mais de 5 mi)
LCI* 2123,6 380,7 38,2
LCA** 1392,4 756,5 37,9
*Letra de Crédito Imobiliário
**Letra de Crédito do Agronegócio
Abaixo o arcabouço
Arcabouço fiscal impede qualquer conquista e pavimenta mais ataques
A briga entre o governo e o Congresso Nacional não tem nada a ver com taxar ou não rico. Isso nenhum deles quer fazer. O que está em jogo é uma disputa por parte do orçamento, incluindo aí a volta de pelo menos parte do Orçamento Secreto, e, por parte do centrão, sua perpetuação no poder, seja quem for o próximo governo. Se vier um Tarcísio ou até um improvável Bolsonaro, tudo bem. Já o governo Lula se equilibra numa corda bamba: faz tudo o que a burguesia quer, impõe o arcabouço e luta por ele com unhas e dentes, enquanto torce para que a economia melhore lá na frente e garanta sua reeleição.
Seja qual for o cenário, é certo que veremos ainda mais crises e escaramuças entre o governo e o Congresso Nacional, com divisão no centrão, entremeados por acordos pontuais com o próprio governo num cenário de instabilidade e crise política.
Em sua tentativa de afagar o centrão, a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT-PR), que era até ontem presidente do PT, chega ao cúmulo de defender Hugo Motta de críticas de ministros do próprio governo. Lindbergh Farias, que também era crítico do ajuste fiscal, passa a mão na cabeça do presidente da Câmara: “Hugo Motta tem sido uma peça fundamental para ajudar na aprovação de projetos prioritários”, declarou. Apesar dessa postura de vergonhosa subserviência e vassalagem, enquanto fechávamos esta edição Motta atuava para derrubar o pacote de Haddad na Câmara.
De qualquer forma, seja qual for o resultado dessa disputa, o certo é que o ajuste fiscal continuará.
Mas nesse jogo de vai e vem, o governo vem se desequilibrando, dentro do tabuleiro institucional (termo bonito para politicagem dentro das regras desse regime burguês) que ele próprio aceitou. Segundo apontam as últimas pesquisas, nunca Lula contou com tanta rejeição, e o preço dos alimentos, que pega em cheio as famílias mais pobres, não tem sinal de se reverter tão cedo. A extrema direita, junto com parte do mercado e da burguesia, esfrega as mãos sonhando com 2026 e uma alternativa que seja uma espécie de Milei na economia e um Bukele na segurança pública (encarceramento em massa de pobre e aumento da matança de jovens negros das periferias).
Pelo fim do arcabouço fiscal
Caso o governo Lula “ganhe” a batalha no Congresso e consiga impor suas medidas, será para manter o arcabouço fiscal. Se o centrão “ganhar”, conquistando a volta de parte do Orçamento Secreto e acelerar as tais “medidas estruturantes”, também será para manter o arcabouço fiscal, ainda que de forma mais hipócrita (esbravejando por austeridade fiscal enquanto nada em supersalários e emendas, e na escandalosa proposta de sobrepor seus já altos salários com suas aposentadorias integrais).
Enquanto vigorar o arcabouço fiscal, a pressão será por cortar mais e mais. Por mais reformas da Previdência, o fim do BPC e demais benefícios sociais. E, mesmo que passe a isenção do Imposto de Renda no Congresso Nacional, isso será completamente anulado mais à frente. O fim do arcabouço fiscal é, desta forma, pressuposto para enfrentar os ataques do governo e do Congresso Nacional.