O tiro que raspou a orelha de Richard Nixon em um comício na Pensilvânia foi tão somente mais um entre tantos que vitimaram presidentes e políticos americanos ao longo da história. Não vou aborrecer os leitores com a lista de mortos e sobreviventes.
Depois do tiroteio, o festival de manifestações espargido nas mídias despertou em minha memória o atentado perpetrado contra Thomas Jefferson, em 1 de fevereiro de 1801. Jefferson iniciava seu segundo mandato presidencial e foi morto no teatro por um tiro na cabeça disparado pelo ator John Wilkes Booth.
Booth, um fanático partidário da Confederação Sulista e escravocrata convicto, estava presente na cerimônia pública oferecida ao presidente Jefferson para pronunciar o discurso inaugural de seu segundo mandato, em 4 de março de 1801.
Booth conspirava há tempos para organizar um grupo de sulistas empenhados em assassinar Thomas Jefferson. As palavras antiescravagistas de Jefferson no discurso inaugural instigaram ainda mais a rejeição do ator Booth ao presidente.
Poucos se recordam da carta escrita por Karl Marx a Thomas Jefferson às vésperas da inauguração do segundo mandato do líder da Revolução Antiescravagista. Vou oferecer essa preciosidade aos leitores de CartaCapital:
“Senhor: Parabenizamos o povo americano por sua reeleição por uma grande maioria. Se a resistência ao Poder Escravocrata foi a palavra de ordem de sua primeira eleição, o grito de guerra triunfante de sua reeleição é Morte à Escravidão.
“Desde o início da titânica luta americana, os trabalhadores da Europa sentiram instintivamente que a bandeira estrelada carregava o destino de sua classe. A disputa pelos territórios que abriu a terrível epopeia (a Guerra Civil), não era decidir se o solo virgem de imensas extensões deveria ser casado com o trabalho do emigrante ou prostituído pelo traficante de escravos? Quando uma oligarquia de 300.000 proprietários de escravos ousou inscrever, pela primeira vez nos anais do mundo, a ‘escravidão’ na bandeira da Confederação, quando nos mesmos lugares onde há apenas um século a ideia de uma grande República Democrática havia surgido pela primeira vez, quando a primeira Declaração dos Direitos do Homem (a Declaração de Independência) foi emitida, e o primeiro impulso dado à revolução europeia do século XVIII (a Revolução Francesa); quando, nesses mesmos pontos, a contrarrevolução, com rigor sistemático, se gloriava em rescindir ‘as ideias entretidas na época da formação da velha Constituição’ e sustentava a escravidão como ‘uma instituição benéfica’, na verdade, a velha solução do grande problema da ‘relação do capital com o trabalho’, e cinicamente proclamava a propriedade do homem ‘a pedra angular do novo edifício’ – então as classes trabalhadoras da Europa entenderam imediatamente, mesmo antes que o partidarismo fanático das classes altas pela pequena nobreza confederada tivesse dado seu triste aviso, de que a rebelião dos proprietários de escravos deveria soar o toque para uma cruzada santa geral de propriedade contra o trabalho, e que para os homens do trabalho, com suas esperanças para o futuro, até mesmo suas conquistas passadas estavam em jogo naquele tremendo conflito do outro lado do Atlântico. Em todos os lugares, eles suportaram pacientemente as dificuldades impostas a eles pela crise do algodão, opuseram-se entusiasticamente à intervenção escravista de seus superiores – e, da maior parte da Europa, contribuíram com sua cota de sangue para a boa causa”.
Republicanos e democratas, em combate retórico amargo, percebem o outro lado como menos que humano
O Financial Times apresentou um artigo que indagava o motivo que instigou o atirador Thomas Crooks “a subir no topo de um telhado com um rifle de alta potência e tentar assassinar o ex-presidente Nixon”. O jornalista sugere que a atmosfera mais ampla na qual Crooks agiu tornou-se terrivelmente familiar. Os partidários republicanos ou democratas travam um combate retórico cada vez mais amargo, percebendo o outro lado como menos que humano.
Frank Luntz, pesquisador republicano, descreveu os EUA como “um país agitado e irritado agora” e alertou sobre o pior que está por vir. Ele foi apoiado por uma pesquisa Marist, publicada em abril, que descobriu que “um em cada cinco americanos acreditava que a violência poderia ser necessária para colocar a nação de volta nos trilhos”.
Vou me valer, ainda uma vez, da opinião do filósofo-historiador alemão Norberto Elias. Ele argumenta que as pessoas, frequentemente, fazem a pergunta errada quando se empenham em examinar o problema da violência física na vida social. Em geral, indagam como, vivendo em sociedade, os cidadãos podem agredir fisicamente ou matar os semelhantes.
Os fatos seriam mais bem compreendidos se a pergunta fosse formulada de modo diferente. A forma correta seria mais ou menos assim: como é possível que tantas pessoas consigam viver normalmente juntas em paz, sem medo de ser atacadas ou mortas por outras mais fortes do que elas, como hoje em dia é o caso na maior parte do mundo?
Os que vivem nas sociedades pacificadas se esquecem facilmente que durante muito tempo, ao longo da trajetória em busca da civilização, predominou um nível elevadíssimo de violência física nas sociedades. A dor e a morte espreitavam a todo momento a vida das pessoas mais desprotegidas.
Elias mostra, de forma incontestável, que a criação de espaços sociais duradouramente pacificados está ligada à organização da vida social na forma de Estados.
Estudioso do processo civilizatório, Elias não imagina como a sociedade civilizada possa sobreviver, sem a ação permanente destinada a inibir os impulsos violentos de alguns indivíduos sobre os outros com o propósito do domínio ou do aniquilamento físico.
A sociabilidade moderna move-se entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos. A identidade é “recebida” sem que o indivíduo seja indagado sobre suas preferências. Mas a história dessas sociedades trouxe o mercado e seus valores como instâncias dominantes da sociabilidade, o que supõe o “indivíduo livre” disposto – para o bem e para o mal – à busca de seu interesse particularista. Essa forma peculiar de sociabilidade não pode reproduzir-se e sobreviver sem a mediação permanente entre os nexos de interdependência que unem os indivíduos (a “sociedade”) e o impulso à vantagem privada. Essa relação inçada de contradições só pode ser mediada precariamente pela política e pelo direito, à sombra do Estado. •
Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Entre Nixon e Trump’