Entre a Memória e a Justiça: O STF e a Reconstrução da Verdade na Guerrilha do Araguaia

por Bianca Porto e Luiz Felipe

A impunidade que ainda marca a forma como o Brasil lida com os crimes da ditadura, é reflexo de uma Justiça de Transição inacabada, fruto da conciliação com forças conservadoras e militares, que perpetraram a violência institucional do período. Um exemplo claro é o caso da Guerrilha do Araguaia, ocorrida na região do Bico do Papagaio entre 1966-1975, onde integrantes de um grupo de resistência foram duramente reprimidos, mortos e tiveram seus corpos ocultados pelo Estado. A falta de respostas e a sucessiva omissão dos poderes públicos em responsabilizar os culpados levaram o caso à instância internacional. Pelo fato do fim do regime ter sido, em parte, conciliado com as próprias forças conservadoras, não se concretizou uma verdadeira Justiça de Transição.

Nesse contexto, o caso foi levado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos sendo julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no processo Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil para responsabilizar o Estado brasileiro. Em 2010, o país foi condenado a investigar, julgar e, se necessário, punir os responsáveis, além de indenizar as famílias das vítimas. Além disso, determinou medidas de reparação simbólica, como a preservação da memória e garantias de não repetição. Um ponto central da decisão foi a crítica à Lei de Anistia, considerada incompatível com os tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil ratificou. Na prática, a Corte afirmou que essa lei não resiste a um controle de convencionalidade e, portanto, não pode ser usada para blindar autores de graves violações de direitos humanos sob o argumento da soberania nacional.

Ainda Estou Aqui (2024), baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, insere-se na literatura de testemunho ao narrar, de forma íntima, as marcas deixadas pela ditadura militar brasileira sobre, não somente sobre o Rubens Paiva, desaparecido e morto, mas as dores de sua família e de milhares de mortos e desaparecidos do regime. Embora não retrate diretamente da Guerrilha do Araguaia, a história do filme se conecta à de muitas outras vítimas da repressão, como os guerrilheiros, em um processo de violência e apagamento promovido pelo Estado.

Revela não apenas o horror da violência de Estado, mas também a permanência do sofrimento diante da negação do direito à memória e à verdade. Esses direitos, é uma exigência concreta de milhares de famílias que há décadas buscam enterrar com dignidade seus filhos, pais e irmãos. Tais violências não se encerraram com o fim formal do regime, mas se perpetuam na omissão do Estado em reconhecer plenamente o direito à verdade, à memória e à reparação histórica das vítimas e de seus familiares.

O julgamento do ARE 1.501.674/PA pelo Supremo Tribunal Federal insere-se justamente nesse contexto, marcando mais um capítulo na longa história da transição democrática brasileira. O caso trata da possibilidade de aplicação da anistia ao crime de ocultação praticado durante a Guerrilha. Muito além de uma disputa sobre o alcance da Lei da Anistia, o julgamento expõe os limites estruturais da justiça brasileira em lidar com a memória, a verdade e a reparação, como instrumentos de enfrentamento dos silêncios institucionais que marcam nosso tempo.

A questão jurídica apresentada ao STF era objetiva: seria possível reconhecer a anistia a um crime permanente como a ocultação de cadáver, cuja execução começou antes da Lei da Anistia, mas continuou após sua vigência? A resposta, contudo, envolve muito mais do que a simples leitura de um marco temporal, ela exige enfrentar os fantasmas do autoritarismo e as heranças da impunidade que atravessam a transição brasileira. A Lei de Anistia é uma das principais demandas da luta por justiça de transição no Brasil, já que essa interpretação concede anistia ampla, tanto para os torturados quanto para os torturadores, impedindo avanços no campo da responsabilização criminal, onde é criado um impasse entre o direito internacional e o direito interno.

Relembrar e reparar as vítimas dos crimes da ditadura é a condição mínima para qualquer projeto democrático digno. O desaparecimento forçado de pessoas, especialmente no contexto de perseguição política, não há lei que o apague, não há decisão judicial que o justifique. Destaca Misi (2023, p. 70), “a memória também é uma experiência coletiva, que configura identidades também coletivas, e assim se constrói nos diferentes grupos que se criam no curso da vida em sociedade. Do mesmo modo, é também disputada numa escala mais ampla de identidade social, como é o âmbito nacional”.

A ausência de uma política de memória consistente sobre a ditadura civil-militar no Brasil revela não apenas o descaso institucional com o passado, mas também a persistência de uma cultura de apagamento histórico. Uma articulação séria entre memória e políticas culturais, a fim de incentivar produções que enfrentem o negacionismo e questionem as estruturas de poder herdadas desse período. Sem essa integração, continuaremos a conviver com narrativas distorcidas e com a fragilidade de uma democracia que evita olhar para as próprias feridas. Evento que também ajuda a explicar o avanço da extrema-direita no país, materializado no bolsonarismo e nos novos – e ao mesmo tempo antigos – pedidos de anistia.

Ao insistir na proteção da anistia, mesmo diante de crimes permanentes, o STF corre o risco de perder uma oportunidade histórica de afirmar que justiça de transição e democracia são inseparáveis. Neste contexto, cabe ao Supremo decidir se opta pela reparação e pela justiça ou pela via da impunidade, com custos irreparáveis para a memória, a verdade, a dignidade humana e a democracia.

REFERÊNCIAS:

MISI, Márcia Costa Coelho; NATALIE, Resumo Coelho. Direitos humanos II: a normatividade dos direitos humanos no direito brasileiro. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2023. eBook. Especialização em Direitos Humanos e Contemporaneidade (EAD). Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/38329. Acesso em: 26 jun. 2025.

CAMPOS, Déo; LOUREIRO, Sílvia Maria da Silveira. A declaração de inconvencionalidade da Lei de Anistia Brasileira pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia). Revista dos Tribunais [recurso eletrônico]. São Paulo, v. 920, pág. 183-203, jun. 2012. Disponível em: https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/25901. Acesso em: 12 jan. 2018. Acesso em: 25 de jun. de 2025.

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Last Update: 05/07/2025